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sexta-feira, agosto 22, 2025

A INTERPRETABILIDADE DO KIMBUNDU E O EXEMPLO DE "THUMBA NYI SAMBA"

O Kimbundu, uma das principais línguas bantu faladas em Angola, pode ser considerado uma língua interpretável por excelência, devido à sua riqueza simbólica, estrutura morfológica e forte ligação com a oralidade. Dentre outros elementos, ela possui:

Simbologia e metáfora: muitas palavras e expressões em Kimbundu carregam significados múltiplos, que vão além da tradução literal. Um nome pode conter uma história, uma bênção ou uma advertência ancestral.

Estrutura aglutinante: o Kimbundu forma palavras complexas a partir de raízes e afixos, o que permite decompor e interpretar significados com profundidade.

Tradição oral: a língua é um veículo de transmissão de sabedoria ancestral, mitos, provérbios e ensinamentos espirituais. Isso exige uma escuta atenta e uma interpretação contextualizada.


Um exemplo notável da profundidade interpretativa do Kimbundu é a expressão “Thumba nyi Samba”. As palavras thumba nyi samba, no contexto da expressão, remetem a apoios laterais, como se alguém estivesse à procura de suporte à direita e à esquerda.

A frase “ngene’ami thumba, ngene’ami samba”, frequentemente musicalizada, traduz-se como “não tenho onde me apoiar”, evocando a imagem de um órfão, um desamparado, alguém sem suporte familiar ou social o mesmo que "sem beira nem eira".

Essa expressão aparece em canções, provérbios e lamentos, reforçando o seu uso como uma forma de lamento existencial ou social, muitas vezes ligada à perda, abandono ou solidão.

Por isso, “Thumba nyi Samba” pode ser classificada como:

• Expressão idiomática: o seu significado não é literal; thumba e samba não se referem apenas a lados ou pessoas físicas, mas a apoios simbólicos.

• Adágio ou provérbio: carrega uma lição moral, frequentemente usada para reflectir sobre a importância da solidariedade, da família e da comunidade.

• Aforismo: é uma frase curta e memorável que expressa uma verdade ou princípio, usada em contextos filosóficos ou reflexivos.

• Ditado popular: é de uso comum entre falantes do Kimbundu e transmitida oralmente de geração em geração.

Em suma, “Thumba nyi Samba” ganha força e múltiplos significados em função do contexto e do seu uso. 

Preservar e valorizar expressões como esta é também um acto de resistência cultural e de afirmação identitária, um espelho da alma de um povo, cuja força reside justamente naquilo que desafia a tradução, sendo um exemplo claro de como o Kimbundu é uma língua que exige mais do que tradução — exige interpretação cultural e sensibilidade.

sexta-feira, agosto 15, 2025

OS GÊMEOS NA COSMOGONIA ANGOLANA: O CASO DE KAKULU NYI KABASA (LUBOLU)

Cosmogonia é o conjunto de narrativas, mitos ou crenças que explicam a origem do universo, da vida e das forças naturais. Nas tradições africanas bantu, especialmente em Angola, a cosmogonia está profundamente ligada à ancestralidade, à natureza e à espiritualidade, revelando-se em símbolos como os gêmeos, os montes, os rios e os nomes sagrados.

Mtes Kakulu nyi Kabasa: Gentileza Projeto Libolo

Na cosmogonia bantu, os gêmeos ocupam um lugar especial, sendo vistos como manifestações de equilíbrio, dualidade e força espiritual. Essa simbologia aparece em diversas línguas e culturas do território angolano.

Kimbundu: Kakulu nyi Kabasa

Umbundu: Njamba e Ngeve

Kikongo: Nsimba e Nzuzi

Cokwe: Lweji nyi Cinguli ("Kinguli")

A título de analogia com outros territórios e cosmogonia africanas, na África Oriental, os gêmeos são chamados por Apiyo e Adongo, sendo Apiyo a primeira nascida de gêmeos e Adongo a segunda.

No território ancestral do Lubolu — hoje dividido em três circunscrições municipais — junto ao majestoso rio Kwanza, erguem-se dois montes imponentes: Kalulu nyi Kabasa, que personificam gêmeos na tradição local. A ancestralidade Ngola (Ambundu) passou a nomear os gêmeos como Kakulu e Kabasa.

Nem sempre os gêmeos nascem de sexos diferentes. Quando são do mesmo sexo, ainda assim recebem os nomes tradicionais: Kakulu e Kabasa. O filho que nasce logo após os gêmeos é chamado de: Kaxinda ou Fuxi (Kimbundu), Kasinda (Umbundu) e Landu (Kikongo).

Na visão ambundu, Kakulu é considerado o primeiro a ver o sol, sendo o mais velho no imaginário tradicional — embora, segundo a ciência, seja o mais novo por nascer depois.

Essas designações revelam como os nomes africanos carregam significados profundos, conectando o indivíduo à sua linhagem, à natureza e ao mundo espiritual. Os gêmeos, em especial, são vistos como mensageiros, guardiões ou manifestações de forças cósmicas, e os filhos que os seguem também ocupam papéis simbólicos importantes.

sábado, agosto 09, 2025

O BONÉ E O CRACHÁ

A quentura do sol preguiçoso cedera lugar ao clima frio do cacimbo benguelense. Os raios mais atrevidos _ poucos_  penetravam pelas frestas entre as chapas de zinco do Pavilhão, tingindo de cobre os rostos apressados que cruzavam o recinto. Era fim de tarde, e o murmúrio da cidade e dos feirantes misturava-se ao ranger dos contentores, ao silvo distante do comboio, ao cheiro de peixe fresco e terra poeirenta e reclamar por rega. Ia eu a sair, quando os olhos me levaram a uma cena que parecia suspensa no tempo.

Ali estava ele — o soba — parado como quem procura um caminho entre mundos. Ao seu lado, uma senhora de olhar inquieto apertava a carteira contra o peito, e um jovem, que parecia filho ou seu sobrinho, observava tudo com espanto: as bancadas improvisadas, os tanques de criação, os apriscos, os estábulos, as lavras, as lojas. Era como se o mundo lhe tivesse sido revelado de súbito, sem aviso.

Desci os três ou quatro degraus com cuidado, como quem se aproxima de um altar. Antes de chegar até ele, retirei o boné — gesto simples, mas carregado de reverência.

— Boa tarde, papá. Posso ajudar em alguma coisa?

O soba ergueu o crachá com dignidade, como quem exibe um estandarte.

— Sim, filho. Sou soba daqui. Tive um julgamento e cheguei tarde. Estou com a minha ndona. A mim e a ela disseram que podemos entrar, mas o problema é o meu cunhado. O filho pode ajudar?

— Papá, dá-me um minuto e meio. Vou tentar conseguir um convite.

Ele assentiu com um sorriso cansado.

— Filho, a comichão é minha. Você "endende", nê? Então pode fazer dez minutos. Nós vamos te esperar aqui mesmo.

Entrei apressado, como quem carrega uma missão. Pedi dois convites emprestados e regressei com o mesmo passo urgente, situando o tempo não muito distante do prometido minuto e meio.

— Papá, o seu cunhado já pode entrar. Trouxe dois convites. Se complicarem a mamã, também pode apresentar este aqui. Se não precisar de usar, amanhã ainda poderá usar. Valem até segunda-feira.

O soba olhou-me com surpresa e gratidão.

— Ó filho, muito obrigado! Me fala ainda: você, com esse respeito todo, é daonde? Até te vi que só tiraste o chapéu para vir me cumprimentar.

— Sou do Kwanza-Sul. O meu avô era regedor, portanto seu colega. Via os mais velhos como lhe reverenciavam, e aprendi também na vida a valorizar os nossos papás.

Ele pousou a mão sobre o meu ombro com firmeza.

— Deus te acompanhe sempre, ó filho, e passe essa sua educação aos outros. Se ainda precisar de qualquer coisa, enquanto estiver aqui, é só dar a volta ao campo e perguntar pela casa do soba.

— Muito obrigado, papá.

Mostrei-lhe o caminho para o Stand de Benguela. O soba seguiu com passos lentos, acenando em gesto de gratidão. A esposa vinha atrás, e o cunhado atrás dela, como numa pequena procissão que expunha tambémo modus  vivendi e as relações hierárquicas nas comunidades .

Naquele instante, compreendi que há gestos que não se ensinam — apenas se transmitem. E que, às vezes, basta tirar o boné para abrir portas que não se vêem.


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Nb: Foto feita mediante pedido expresso e autorização.

Publicado pelo Jornal de Angola a 17.08.2025

sexta-feira, agosto 01, 2025

KAMACINQUENTA E KAQUINHENTU: O VALOR DAS OFERTAS E DA TRANSFORMAÇÃO

Lembrei-me de uma canção do rico folclore da Região Lunda, em Angola, que diz:

"Ana mapwo, mweko ko Ndundu kexi kumona bosse mapalika: bosse ngwehe kamacinquenta / mujimba walyeca ngwe longa lya huma!"

Tradução: As moças do Dundu, sempre que vêem o “boss” — alguém afortunado — solicitam: “Boss, dê-me um kamacinquenta (um valor), amolecendo o corpo como se fossem um “prato de barro” (longa lya huma).

Essa música evoca o termo kamacinquenta que, embora remeta ao número cinquenta, carrega um significado muito mais profundo. No universo cokwe, kamacinquenta é uma oferta simbólica — um gesto de reconhecimento, gratidão ou desejo — feito àqueles que ocupam um lugar de destaque ou que, de alguma forma, marcaram a nossa trajectória. Pode ser também um acto de beneficência.

A imagem do corpo que se amolece como longa lya huma — o prato de barro moldado pelo oleiro — é poderosa. Ela representa a vulnerabilidade e a maleabilidade do desejo, mas também a capacidade de transformação. O barro, inicialmente mole, é moldado com cuidado e intenção, e depois endurece, tornando-se útil e durável. Assim também são os vínculos humanos: frágeis no início, mas capazes de se tornar sólidos quando nutridos com respeito e reciprocidade.

Esse gesto de pedir e oferecer algo significativo encontra eco em outras culturas angolanas.

O termo kaquinhentu, cantado por Robertinho no universo ambundu, carrega o mesmo espírito. Embora os números sejam diferentes — cinquenta e quinhentos — o valor simbólico é o mesmo: dar algo que importa, seja material ou afectivo, como forma de reconhecimento.

A canção “Kaquinhentu” reforça esse valor com uma estrofe comovente:

"Se wala nyi kaquinhentu / bana tata, bana tata nyi mama / ene akuvalele/  

Kuxinge mamênu, kubete tatênu / ene akuvalelê, ene akusaselê ..."

Tradução:  Se tiveres um kaquinhentu (algo de valor), dá-o a teu pai e tua mãe (progenitores).  

Não ofendas a mãe nem batas no pai. Foram eles que te geraram e te cuidaram.


Ambos os termos revelam como diferentes etnias expressam, por meio da linguagem e da música, valores comuns de solidariedade, gratidão, desejo e transformação. O kamacinquenta e o kaquinhentu não são apenas números. São gestos que moldam relações, como o oleiro molda o barro!


Texto publicado pelo Jornal de Angola a 03 de Agosto de 2025

terça-feira, julho 29, 2025

O HOLOCAUSTO E A SITUAÇÃO NA FAIXA DE GAZA

(Analogia, causas e consequências)

Introdução
A comparação entre o Holocausto e a situação contemporânea na Faixa de Gaza é objecto de intensos debates acadêmicos, políticos e éticos. Embora ambos os contextos envolvam sofrimento humano em larga escala, suas origens, dinâmicas e consequências apresentam diferenças substanciais.
Esta dissertação propõe-se a analisar, de forma crítica e contextualizada, as semelhanças e dissemelhanças entre esses dois eventos, partindo de seus conceitos fundamentais, causas e impactos demográficos, económicos, políticos e sociais.

Conceitos e Causas
O Holocausto foi o extermínio sistemático de aproximadamente seis milhões de judeus europeus pelo regime nazista entre 1941 e 1945. Trata-se de um genocídio planeado com base em ideologias racistas e antissemitas, institucionalizado pelo Estado alemão sob Adolf Hitler.
Já a situação na Faixa de Gaza refere-se ao conflito prolongado entre o Estado de Israel e o grupo palestino Hamas, intensificado desde 2007, quando o Hamas assumiu o controle do território. O conflito é marcado por bloqueios, operações militares, ataques com foguetes e bombardeios, com graves consequências para a população civil.
Enquanto o Holocausto foi um genocídio com o objectivo explícito de aniquilar um povo, a situação em Gaza é um conflito armado com motivações políticas, territoriais e religiosas, havendo denúncias de violações de direitos humanos e uso desproporcional da força.

Consequências Demográficas
O Holocausto resultou na dizimação de comunidades judaicas inteiras na Europa, alterando drasticamente a demografia do continente. Milhões foram mortos em campos de extermínio e os sobreviventes enfrentaram deslocamentos forçados e diáspora.
Na Faixa de Gaza, a população palestina tem crescido, apesar das adversidades, mas enfrenta deslocamentos internos, destruição de lares e infraestrutura, e um número crescente de mortos e feridos civis, especialmente em ofensivas como a de 2023–2024.

Impactos Económicos
O Holocausto destruiu o capital humano e económico das comunidades judaicas, com confisco de bens, fechamento de empresas e exclusão sistemática da vida económica.
Em Gaza, o bloqueio imposto por Israel e Egipto, aliado à destruição causada por sucessivos conflitos, resultou em colapso económico: desemprego elevado, dependência de ajuda humanitária e infraestrutura precária.

Repercussões Políticas
O Holocausto levou à criação do Estado de Israel em 1948, como resposta internacional à necessidade de um lar seguro para os judeus. Impulsionou ainda a formulação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948).
A situação em Gaza, por sua vez, alimenta tensões regionais e internacionais, polariza opiniões e desafia o direito internacional humanitário. A ausência de uma solução política duradoura perpetua o ciclo de violência e instabilidade.

Consequências Sociais
O trauma do Holocausto moldou a identidade judaica contemporânea e gerou um compromisso global com a memória e a educação sobre genocídios.
Em Gaza, a população vive sob constante trauma psicológico, com impactos profundos na saúde mental, na educação e na coesão social. A juventude cresce em um ambiente de cerco, violência e desesperança.


Conclusão
Embora ambos os eventos envolvam sofrimento humano extremo, o Holocausto e a situação na Faixa de Gaza diferem em natureza, escala e intencionalidade.
Refletir sobre essas tragédias pode fortalecer o compromisso com os direitos humanos, a justiça e a paz duradoura.
= Soberano Kanyanga (com suporte do Copilot)



Todas as reaçõe
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quinta-feira, julho 24, 2025

UMA TERRA "SEM POVO" PARA UM "POVO SEM TERRA"?

Esse era e continua a ser o Slogan dos sionistas que dizimam os palestinianos (e outros povos do Médio Oriente) para se acapararem de suas terras natais.

Vejamos os factos históricos:

1. Os sionistas começaram a comprar terras na Palestina no final do século XIX, com o objectivo de estabelecer um lar nacional para os judeus, especialmente como resposta ao antissemitismo na Europa. 

2. Os sionistas não eram nativos da Palestina, mas sim um movimento (de povos nascidos na Europa) que buscava a criação de um estado judeu naquele território (Palestina). 

3. O Estado de Israel, ao ser estabelecido em 1948, não retoma o território do antigo reino bíblico de Israel em sua totalidade.

4. O movimento sionista, liderado por figuras como Theodor Herzl, surgiu como resposta ao crescente antissemitismo na Europa no final do século XIX. O objetivo central do sionismo era estabelecer um estado nacional para os judeus, e a Palestina era vista como o local ideal, onde o povo judeu tinha laços históricos e religiosos. 

5. A compra de terras na Palestina por sionistas começou no final do século XIX e continuou durante o período do Mandato Britânico, com o objectivo de aumentar a presença judaica e expandir a propriedade territorial colectiva. 

6.  O Fundo Nacional Judaico e a Associação de Colonização Judaica da Palestina foram duas das principais entidades responsáveis pela aquisição dessas terras.

7. O movimento sionista, ao buscar a criação de um estado judeu na Palestina, enfrentou resistência e conflitos com a população árabe local, que já habitava a região. 

8. Os sionistas frequentemente viam (e vêem) a população árabe como um obstáculo ao seu projecto nacional, utilizando slogans como "uma terra sem povo para um povo sem terra" para justificar as suas acções. 

9. A chegada de mais e mais judeus à Palestina, impulsionada pelo sionismo, gerou tensões e conflitos com os palestinos, culminando na criação do Estado de Israel em 1948. 

10. As fronteiras actuais de Israel são resultado de guerras, acordos e ocupações que se seguiram à sua criação. A disputa por território e o controle da região continuam a ser fonte de conflito entre israelitas e palestinianos, com diferentes interpretações sobre o direito à terra e às fronteiras.

11. A questão da Nakba (a "catástrofe" palestina, gerada pela expulsão e fuga de centenas de milhares de palestinianos após a criação de Israel) é um ponto central nas tensões entre as duas partes.

12. Quem é o intruso na Palestina?

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Fontes bibliográficas

1. Edward Said – A Questão da Palestina.

A obra desconstrói o discurso sionista e analisa criticamente o slogan em questão. Said argumenta que a frase nega a existência do povo palestino e serve como ferramenta ideológica de colonização.

2. Nur Masalha – Expulsion of the Palestinians: The Concept of "Transfer" in Zionist Political Thought, 1882–1948.

O historiador palestino documenta como o deslocamento dos árabes palestinos foi planeado e legitimado por discursos como o do “povo sem terra”.

3. Ilan Pappé – A História da Palestina Moderna: Uma Terra, Dois Povos. 

O historiador israelita, oferece uma leitura crítica do sionismo e da fundação de Israel, incluindo a análise do slogan e da Nakba.

4. Rashid Khalidi –

Palestinian Identity: The Construction of Modern National Consciousness. 

Explora como a identidade palestina se formou em resposta ao colonialismo e ao sionismo, com destaque para a resistência à narrativa de “terra vazia”.

5. Anita Shapira – Israel: A History.  

   Embora seja historiadora sionista, Shapira reconhece que o slogan foi amplamente usado no final do século XIX e início do século XX por sionistas europeus.

6. Nina Galvão – “Slogans da Memória: Pertencer e (R)existir na Palestina Histórica” (ANPUH, 2019). 

   Artigo acadêmico que analisa o slogan como dispositivo de memória e disputa simbólica entre sionistas e palestinos. [Leia o artigo completo aqui](https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1564758095_ARQUIVO_Artigofinal.pdf).

7. Walid Khalidi – All That Remains: The Palestinian Villages Occupied and Depopulated by Israel in 1948.

  A obra documenta as aldeias palestinas destruídas durante a Nakba, desmentindo a ideia de “terra sem povo”.

8. Benny Morris – The Birth of the Palestinian Refugee Problem, 1947–1949.  

   Morris fornece dados empíricos sobre a expulsão dos palestinos, ainda que sua interpretação seja criticada por autores como Pappé e Masalha.

9. Artigo da Wikipédia – “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. 

   Embora não seja uma fonte primária, o artigo oferece uma excelente compilação de usos históricos do slogan, desde o século XIX até os dias atuais, com referências cruzadas. [Leia o artigo](https://pt.wikipedia.org/wiki/Uma_terra_sem_povo_para_um_povo_sem_terra).

10. Artigo da Globo Educação – “Conflito entre Israel e Palestina”.  

   Apresenta uma visão didática e cronológica dos eventos históricos que culminaram na criação de Israel e na resistência palestina. [Leia o artigo](http://educacao.globo.com/geografia/assunto/atualidades/conflito-entre-israel-e-palestina.html).

quinta-feira, julho 17, 2025

OHOJI KAYHINDI IHIBA

> O leão não enterra os ossos (do animal de que se alimenta).

Este aforismo leva-nos apensar no quanto a caçada de um leão alimenta outros seres vivos.

O leão caça uma pacaça e, como esta é grande, come apenas o que puder. Depois, chegam as hienas e estas cedem lugar às aves necrófagas que debicam o que podem. Ratos, formigas, moscas, e até pessoas aproveitam os riestos da caçada do leão. 

Que tal se, entre os homens, quem "come uma pacaça" deixasse os outros comerem um pouco e, em cascata, até ao último que se puder beneficiar?

Ohoji kayhindi ihiba [sabedoria munenguese]

sábado, julho 12, 2025

ELEGIA A CARLOS “CAMACOA”

 🕊️ A morte é dura. Impiedosa. O mais poderoso adversário da vida — e aquele que jamais vencemos.


Hoje, 12.07.2025, despedimo-nos de   Carlos Calongo, o nosso Camacoa. Crente da Igreja Metodista Unida, natural de Catete de Cima, companheiro de fé (metodista), ideologia (MPLA) e formação em Comunicação Social. Partiu a 5 de Julho, rumo a uma derradeira viagem sem regresso. A má nova veio de Lisboa, aonde fora em busca de saúde.

Os nossos encontros, presenciais ou digitais, eram fervilhantes de ideias. Concordávamos quase sempre; discordávamos, por birra ou convicção. Mas o bom senso reinava e tudo terminava em meio-termo, regado a amizade.

O último debate girou em torno dos povos que compõem a região de Catete. Ele dizia serem “povos do sul”; eu lembrava-lhe que os avós de Agostinho Neto e Lúcio Lara eram do Libolo — Centro-Oeste — e não sulistas. Ele ripostou: “Catete acolheu gente do planalto, ovimbundu, ao tempo das roças.” Entre risos, provocou: “Eram povos a sul do Kwanza.”  

Respondi: “Nós, do Lubolu, estamos a sul do Kwanza, mas não somos ovimbundu. Sou Ngola, irmão dos Catetenses — de cima, de baixo e dos lados.”  

Rimos com ternura. E ele, com humor:  

— Ó Soberano, fica já assim. Hoje marcaste um golo, mas o nosso jogo terá segunda parte. O Cândido (Fortunato) marcou um segundo Kudisanga kwamakanba e estás intimado a não faltares.”  

— “Está bem delegado!” — Respondi-lhe.  

Agora, delegado... com quem vou debater na próxima tertúlia da CST1-2003?

...

Defendemos causas e percorremos caminhos. OCarlos não foi apenas camarada — foi O Camarada. Alma generosa, colega firme, irmão de jornadas e utopias. As nossas tertúlias navegavam entre o sagrado e o profano, entre política e fé, entre o país e o mundo.

Na UPRA, onde nos graduámos em Ciências da Comunicação (2003-2007), o destino caprichoso marcou nossas defesas para o mesmo dia, com mesma nota.  

— “Porra, Camacoa! Se o tema fosse igual, iam dizer que andámos a kabular!” — brinquei.  

Rimos com cumplicidade. Era laço eterno.

O Carlos liderava na escuta, unia na diferença, erguia pontes entre inquietos, ousados e sábios. Era bússola. Era alicerce.

Em Agosto de 2017, após as eleições, encontrámo-nos em debate acalorado. Ele já era colunista do Jornal de Angola; eu, semeava ideias na Nova Gazeta, Jornal Cultura e Semanário Angolense. Incentivou-me a escrever para o jornal-mãe. Seu incentivo deu frutos: escrevi “Ao debate, depois das eleições” — e entrei.

O Carlos inventou a Ngonguita _ Personagem central de sua prosa ficcionada. Elegeu-me leitor primário. As suas crónicas amadureciam como vinho bom — densas, memoráveis, saborosas.

_ E, agora, quem vai cuidar da Ngonguita?

Antes das eleições de 2022, decidi emprestar a minha modesta contribuição ao Partido. 

_ Camacoa, preciso de material de campanha. Vou dar o peito pelo nosso Partido.”  

Dias depois, recebi a caixa com material de propaganda que foi de grande utilidade. Palmilhei o Lubolu e a Kibala. Conheci Ndal'aXipo (Dala Kaxibo).

Em Junho passado, descobriu que um meu sobrinho trabalhava perto dele. Ralhou-me por não o ter apresentado o rapaz. Rimos. Conversámos. Cultivou, como sempre, paz e afecto. Voltámos a falar sobre os de  Catete _ todos _, dos descendentes do Lubolu e das terras longinquas. Foi o último debate.

Cada vez que um dos nossos parte, algo se extingue em nós. A ausência pesa onde vibrava a presença. E o silêncio grita onde antes trocávamos ideias, gargalhadas e cumplicidade.

Partiu o Camacoa, Carlos Manuel Calongo Adão. Filho da nobre terra de Catete de Cima — como gostava de lembrar.  

O choro estende-se além de Catete. Chora Angola inteira.  

Carlos cresceu por mérito próprio, tornou-se cidadão da Angola total. E do mundo.

Levado pela comoção e revolta interna contra a maldita morte, voltei a adentrar o Cemitério do Alto das Cruzes. É chique, mas não nos devolve o Camacoa e nem nos deixa manter as tertúlias com ele.

O Carlos, nosso eterno delegado de turma, tinha o dom de liderar na escuta, unir na diferença, erguer pontes entre adolescentes inquietos, jovens ousados, profissionais firmes e kotas sábios. Era bússola, era alicerce.

Hoje, estamos mais incompletos e profundamente vazios. A saudade é o que fica. E nas palavras que nos deixou, encontraremos o refúgio para a dor.

terça-feira, julho 08, 2025

A REDENÇÃO DA PALMEIRINHA

Era tempo da pandemia de Covid-19. O meu estimado amigo Tino Cardona contactou-me para informar que já dispunha dos quatro pés de bananeiras — de mesa e de pão — que lhe havia solicitado. Pedi-lhe a localização por GPS, e a tecnologia, em seus avanços recentes, conduziu-me até à sua residência. Levava comigo uma jovem cajamangueira.


No quintal, deparei-me com uma palmeira e alguns rebentos minúsculos, com cerca de dez centímetros de altura. Como quem se entretém, apanhei um deles — quase com desdém — e plantei-o à entrada de um terreno no Zango IV (quando ainda se reconhecia como parte de Luanda).
O tempo foi passando, e a pequena planta erguia-se aos poucos. Meses depois, encontrei-a murcha, arrancada, exposta ao sol por obra de algum traquina qualquer. Triste, quase desolado, tomei-a de novo e replantei-a. Acrescentei-lhe calcário dolomítico, trazido de Malanje. A planta revigorou-se. Hoje, outros traquinas — ou talvez os mesmos de outrora — já se deleitam com os saborosos dendéns que ela oferece.

terça-feira, julho 01, 2025

TOMBE: ENTRE NDALA E NGULUNGU

O caminho (derivado da estrada asfaltada Ndalatando-Golungo Alto e vice-versa) era um atalho que ganhou uma "laminagem" sobre bananeiras e mandioqueiras até à grande pedra que conserva uma cavidade onde, "no passado, se concentrava muita água", conforme palavras do soba Francisco João que, entre mitos e pouca verdade (a meu ver), foi explicando o que sabe de ouvir contar.

_ É preciso cumprir o ritual _ disse, acrescentando que produtos como pão, queijo (substituível pela cola), cervejas, refrigerantes, arroz, açúcar e vinho eram indispensáveis. Na sua prescrição, o jovem soba foi mais além:

_ Todos pagam um valor para aceder à cavidade, porém quem tenha "dormido" com mulher ou homem paga a dobrar _ rematou para o espanto de muitos.

Felizmente, havia poucos minados com crendices e tivessem ou não conscientes de terem pernoitado ao lado de um ente de sexo oposto e exercitado o "vamos ver", ninguém se amedrontou e todos, quase todos, adentraram a cavidade abaixo da parte visível da rocha derivada de argila a que os engenheiros chamam de argilito.

O argilito é uma rocha sedimentar composta principalmente por partículas finas de argila compactadas ao longo do tempo, tornando-se mais dura e resistente. Se houver um grau maior de metamorfismo, pode se transformar em xisto argiloso.

Já uma furna é uma cavidade natural em rochas ou montanhas, podendo variar em tamanho e forma. Essas formações ocorrem devido a processos geológicos como erosão e desgaste ao longo do tempo e podem ser encontradas em diferentes tipos de rochas, podendo apresentar-se em formações como estalactites e estalagmites.

Outras furnas conhecidas e visitadas em angola são:
Furnas do Sassa: localizadas na província do Kwanza Sul, são também conhecidas como Grutas da Santa. Elas estão situadas perto da Aldeia da Pomba Nova, a cerca de 5 km a sudeste da cidade do Sumbe.
Furnas de Pungo Andongo: situadas na província de Malanje, são famosas por suas formações rochosas impressionantes e são um destino popular para turistas que apreciam a natureza e a história.
Furnas do Zanga: localizadas na província do Kwanza Norte, são um destino popular para turismo ecológico.
Furnas e Omaho: situadas no município do Tômbwa, comuna do Iona, fazem parte de complexos turísticos que oferecem um ambiente paisagístico rodeado de montanhas e diversos animais.

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Publicado no Jornal de Angola a 29.06.2025

quinta-feira, junho 26, 2025

ISRAEL vs EUA: QUEM MANDA EM QUEM?


Historicamente, os EUA têm sido o principal financiador militar e diplomático de Israel, fornecendo bilhões de dólares em ajuda anual (em grande parte militar) e defendendo Israel em fóruns internacionais como o Conselho de Segurança da ONU.

Muitos governos israelitas seguem uma linha que não contradiz frontalmente os interesses estratégicos americanos, especialmente no que diz respeito ao combate a adversários comuns como o Irão.
Na prática política, o lobby pró-Israel nos EUA (especialmente o AIPAC – American Israel Public Affairs Committee) é poderoso, influente tanto em ambos os partidos (Democratas e Republicanos) como nas decisões do Congresso e da Casa Branca.
Muitos analistas dizem que os EUA muitas vezes ajustam as suas políticas no Médio Oriente para se alinharem com os interesses israelitas, mesmo que isso aumente tensões com outros países árabes ou com o Irão.
Governos israelitas, como o de Benjamin Netanyahu, demonstraram agir com bastante autonomia e até desafiar presidentes americanos (como Obama), com relativo sucesso.
Quem manda em quem, então?
Em vez de uma relação de mando vertical, o que existe é uma simbiose estratégica com desequilíbrios:
Israel depende dos EUA para sobrevivência militar e diplomática.
Os EUA dependem de Israel como parceiro estratégico no Médio Oriente, como "ponte militar e tecnológica" e como peça-chave no xadrez contra o Irão.
Todavia, em alguns momentos, o lobby israelita consegue exercer mais pressão sobre a política externa americana do que qualquer outro grupo estrangeiro — e isso dá a impressão, não infundada, de que Israel consegue influenciar os EUA mais do que o contrário em certos temas-chave (como ataques ao Irão, ocupação de territórios palestinianos, expansão de colonatos, etc.).

Conclusão:
Não é que um "mande" no outro de forma absoluta, mas a influência israelita nos EUA é muito mais forte do que a de qualquer outro país aliado. O resultado é uma relação em que os EUA continuam dominantes globalmente, mas Israel exerce influência desproporcional dentro da política interna e externa americana — especialmente quando se trata de segurança, Irão e questões palestinianas.
A bibliografia demonstra claramente que:
O lobby israelita está profundamente enraizado nas estruturas políticas americanas (legislativo, executivo, eleitoral).
A influência exerce-se em momentos cruciais — desde ajuda de segurança até decisões sobre Irão — muitas vezes moldando a agenda independente da execução formal dos EUA.
Embora os EUA mantenham a autoridade global, a capacidade de pressão do lobby israelita faz com que Israel actue de forma desproporcional no seio da política externa americana — reforçando a ideia de que, em várias ocasiões, Israel “manda” nos EUA.

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Bibliografia para compreender o acima escrito
1. John Mearsheimer & Stephen Walt – The Israel Lobby and U.S. Foreign Policy (2007).
Na obra rgumenta-se que o lobby pró-Israel é uma “coligação solta” que orienta fortemente a política externa americana em direcção a Israel, muitas vezes em prejuízo dos interesses nacionais dos EUA.
2. Paul Findley – They Dare to Speak Out (1985)
Escrita por um ex–congressista dos EUA, documenta como o lobby influenciou decisivamente eleições e vectou políticos considerados críticos a Israel.
3. Grant F. Smith – Foreign Agents: AIPAC From the 1963 Fulbright Hearings to the 2005 Espionage Scandal.
O livro reúne documentos e testemunhos que mostram AIPAC como um agente não-oficial do governo israelita — e seu impacto nos EUA.
4. Yosua Saut Marulitua Gultom & Hafidz Zaula Miftah – “The Role of the Jewish Lobby Toward US Foreign Policy Making on the 2023 Israel-Palestine War (Case of AIPAC)” (2024).
É um estudo académico que confirma a influência profunda de AIPAC nas políticas americanas recentes, via apoio directo a campanhas e presença em altos escalões.
5. Rizki Maulana Firdaus – “The strategy and effectiveness of The American Israel Public Affairs Committee in lobbying The United States Congress” (2023).
A pesquisa qualitativa documenta a influência de AIPAC no Congresso, nomeadamente ao sustentar o envio anual de cerca de US$ 3,8 mil milhões em auxílio militar a Israel.

domingo, junho 22, 2025

NECESSÁRIAS OU ULTRAPASSADAS PELO TEMPO?

Quem circula(r) por estradas angolanas encontra(rá) muitos escombros destas antigas casas que foram de reconhecida serventia às equipas de manutenção das estradas nacionais.

Distanciavam-se em intervalos aproximados de 50 quilómetros, que se encurtavam em função das condições geológicas do terreno e necessidades de manutenção da rodovia. O tempo, o descaso e alguma pilhagem cuidaram da sua destruição.

A Casa do Cantoneiro era uma estrutura utilizada para alojar trabalhadores responsáveis pela manutenção das estradas, conhecidos como cantoneiros. 

Em Angola, as casas dos cantoneiros serviam como pontos de apoio para os cantoneiros, que realizavam reparos, limpeza e conservação das vias públicas, garantindo a segurança e trafegabilidade das estradas.

Essas casas geralmente pertenciam a instituições ligadas à administração rodoviária, como os antigos serviços de obras públicas ou departamentos de infraestrutura viária. 

Em muitos países, a função dos cantoneiros foi absorvida por empresas privadas ou modernizada com novas tecnologias.

Um exemplo de país que ainda mantém o conceito de cantoneiros é Portugal, onde algumas regiões preservam a tradição dos cantoneiros para a manutenção de estradas secundárias e rurais. 

Em certos casos, as antigas casas do cantoneiro foram restauradas e reaproveitadas para outros fins, como turismo rural ou centros comunitários.

Em Angola, as casas dos cantoneiros eram pertença da JAEA (Junta Autónoma de Estradas de Angola) e, nos anos do meu despertar (início da década de 80 do século XX), eram usadas pelo pessoal afecto ao MCH (Ministério da Construção e Habitação).

A intensificação da guerra, o descaso e pilhagens, nalguns casos, levou à destruição total das casas dos cantoneiros que conheço.

Você que leu o texto e/ou conhece algumas, o que acha?

_ São para reabilitar ou para deixar como estão?

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Foto editada: DR

quarta-feira, junho 18, 2025

A PRIMEIRA VÍTIMA DA GUERRA

"Os bandoleiros a mando do imperialismo atacaram uma aldeia inocente, tendo sido energicamente rechaçados pelas nossas gloriosas forças armadas. Na sua retirada, assassinaram cinco mulheres e nove crenças, roubando 15 cabeças de gado bovino".

Faixa de Gaza

Textos escritos ou oralizados como este (acima) eram comuns no tempo da guerra civil angolana e o discurso mecanizava-se de cabeça a cabeça, de adultos para crianças que o carrega(v)am para toda a vida ou até quando descobrirem a diferença entre propaganda e jornalismo, duas ferramentas de comunicação.

Fiquei ontem a "discutir" com o Copilot, uma ferramenta de IA desenvolvida pela Microsoft, uma empresa americana.

A causa foi o facto de esta ferramenta me ter apresentado como vítimas israelitas (apenas) mulheres e crianças, assim como na Ucrânia também só se fala de mulheres e crianças como vítimas.

Quando perguntei se os mísseis e drones iranianos só escolhiam mulheres e seus filhos menores, a aplicação não respondeu. Fiquei a resmungar, o que levou a mulher a dar-me como enlouquecido.

_ Como te prestas a discutir com uma aplicação digital? _ Questionou.

Hoje, depois de mais uma pesquisa a várias fontes sobre as causas históricas, as acções e a escalada iniciada a 13 de Julho, perguntei ao meu "ajudador" se os media têm sido equidistantes. Veja a resposta (as partes entre parêntesis são meus acréscimos).

_ A equidistância dos media é um tema delicado. Em geral, os veículos ocidentais tendem a enfatizar o direito à autodefesa de Israel e a ameaça representada pelo programa nuclear iraniano (assim como restringir as vítimas a mulheres e crianças); as fontes iranianas e aliadas destacam as vítimas civis, a soberania nacional e denunciam o que chamam de “agressão sionista”;  as agências internacionais como Reuters, BBC ou Al Jazeera tentam manter um tom mais neutro, embora estas sejam frequentemente acusadas de parcialidade — dependendo de quem lê (quem escreve e quem comenta). Ou seja, a percepção que os media nos dão é moldada por filtros culturais, políticos e editoriais. A realidade no terreno é sempre mais complexa do que qualquer manchete.

"Nunca se mente tanto como em véspera de eleições, durante a guerra e depois de uma caçada" (Otto Von Bismark). É verdade! "A verdade é a primeira vítima em uma guerra".


domingo, junho 15, 2025

O KOKOTO[1] QUE DIZIMOU PIOLHO


Um conterrâneo da Kibala, recuando no tempo, narrou episódios da nossa infância que é transversal a uma geografia que envolve os municípios à volta do Libolo e Kibala e num tempo que, se calhar, morre em 2000, podendo prolongar-se em algumas aldeias recônditas. É o nosso feudalismo que pouco há de escrito, dada a fraca imersão na nossa etno-sociologia e etnografia.

Quando nos debruçamos a estudar a história clássica e medieval de Roma e Grécia, recaímos, invariavelmente, em episódios angolanos do Séc. XX, em nossas aldeias interiores.

É exemplo a mãe que "cata" piolhos ao filho, aproveitando adormecê-lo, podendo usar duas fórmulas: cantando e catando.

Vivi esse tempo. Algumas mães, no escuro da noite, sem saber se o achado por seus dedos entre o cabelo alto e sujo é ser vivo ou grão de areia, levavam-no ao dente e largavam depois, um rio de saliva.

Vivi ainda o tempo da bitacaia[2], pulga de javali ou porco doméstico que adentrava os terminais de nossos dedos e calcanhares. A comichão, lenta e incómoda, resultava em dor da ferida escancarada, depois de extraído o animal hóspede oportunista com a ponta de um alfinete ou de um pau aguçado.

Mas o meu conterrâneo contou mais e recordou-me o seguinte:

Noite sem luar na Kibala ou outra aldeia do circuito ambundu kwanza-sulino. Nas terras mais a sul e ou norte o cenário também pode ser idêntico.

O archote é lamparina na cozinha escura. A kizaca, peixe de água doce ou carne de caça ferve na panela de barro. Há fumo largado pela lenha que reclamam por mais dias de seca ao sol. Mas quando a lenha seca rareia em tempo de chuva é a semi-seca que se leva à fogueira. No escuro e fumegante da cozinha a mãe pede:

_ Mwiha mwombya (alumia para a panela)!

Na atrapalhação, o rapaz tanto alumia como deixa cair na panela a ponta do archote ardido, já em forma de cinza.

_ Nzayá, matubá, matondoá![3] -Dispara a mãe impaciente, complementando a emenda com um valente "coco" que mata uma dúzia de piolhos e lêndeas na cabeça do infante.

_  Kwolule (não grita). _ Adverte a mãe, prevenindo para que não se acabem, de uma só vez, os piolhos todos na cabeça com outros kokoritos.

Terminada a confeção do "kondutu"[4], é a vez da panela do funji/pirão. O cuidado é redobrado. Em fuba branca, a cinza preta do archote é vinho tinto em toalha imaculada.

_ Mwiha kyambote. _Volta a advertir a progenitora.

E o infante, com um grito adiado ou reprimido da primeira pancada, lágrimas do fumo nos olhos, comichão na cabeça dos piolhos famintos de sangue, acende, de novo, o archote que aproxima delicadamente à panela de barro para a qual o fogo chia.

_ Mwiha!

_ Ñyi mwiha, a mama!

_ Mwiha kyambote

Depois o repasto: as meninas na cozinha ou fora dela, no terreiro da casa, com a mãe, quando há luar. Os homens na sala ou no njangu. Rapazes juntos.

O rapaz quando não vai à escola da vida, o njangu, volta a reclamar o carinho materno, "lambicando" como cão que se deita sobre a cinza quente da fogueira recente. Dobra-se à frente da mãe que "jijina"[5] lêndeas, piolhos ou grãos de areia escondidos no cabelo a reclamar por uma tesoura.

Contando anedotas, ou canções do seu tempo de menina, a mulher afugenta os males e a infra vida que a pobreza impõe, adormecendo o infante para uma nova aurora e lavoura.

Tal como a geração do último quartel do Séc. XX, as nossas crianças continuarão a ler a história clássica e o feudalismo greco-romano. Quanto às nossas vivências, que são recentes, restarão poucas crónicas!

[1] Golpe na cabeça com o punho cerrado.

[2]  Insecto díptero da família dos tungídeos.

[3] Despautério.

[4] Acompanhante.

[5] Acaricia. Faz cafuné.

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Publicado pelo Jornal de Angola a 13 de Abril de 2025.

sexta-feira, junho 13, 2025

ISRAEL BÍBLICO E O ESTADO DE ISRAEL MODERNO

(Fé, história e geopolítica)

A distinção entre Israel bíblico e o Estado moderno de Israel é fundamental para compreender as complexas relações entre religião, identidade e política no Oriente Médio. Israel bíblico refere-se a um povo e a um território descrito nas Escrituras hebraicas, cuja origem remonta aos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, e que se consolidou como reino unificado sob Saul, Davi e Salomão por volta do século X a.C. Após a divisão do reino e sucessivas invasões, o povo judeu foi disperso em diásporas, mantendo, contudo, uma identidade religiosa e cultural centrada na Torá e na esperança messiânica.

Já o Estado de Israel foi fundado em 14 de maio de 1948, como resultado do movimento sionista, que buscava estabelecer um lar nacional judeu na Palestina histórica. Essa fundação foi impulsionada por fatores como o antissemitismo europeu, o Holocausto e o apoio político de potências como o Reino Unido e os Estados Unidos. A criação do Estado gerou conflitos com a população árabe-palestina local e com países vizinhos, inaugurando uma série de guerras e tensões que perduram até hoje.

No campo religioso, o judaísmo e o cristianismo compartilham raízes comuns, mas divergem em pontos centrais. Ambos são monoteístas e reverenciam o Antigo Testamento (ou Tanakh, no judaísmo), mas o cristianismo acrescenta o Novo Testamento, centrado na figura de Jesus Cristo, considerado o Messias e Filho de Deus. Para os judeus, Jesus não é o Messias prometido, e a espera por esse redentor ainda permanece. Essa diferença teológica é o principal divisor entre as duas tradições.

Os livros sagrados refletem essa cisão: o judaísmo baseia-se na Torá (os cinco primeiros livros de Moisés), nos Profetas e nos Escritos — conjunto conhecido como Tanakh — enquanto o cristianismo adota a Bíblia, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento. A Bíblia cristã reorganiza e interpreta os textos hebraicos à luz da vida e ensinamentos de Jesus.

Quanto aos profetas, Moisés é a figura máxima do judaísmo, considerado o legislador e mediador da aliança com Deus. No cristianismo, Jesus é o profeta supremo, mas também o Messias e Salvador. Ambos reconhecem profetas como Isaías, Jeremias e Elias, que são figuras comuns às duas tradições, embora interpretadas de formas distintas.

As convergências entre judaísmo e cristianismo incluem a crença em um Deus único, a valorização da ética, da justiça e da oração, além da origem comum no Oriente Médio. As divergências, por sua vez, envolvem a cristologia, a doutrina da Trindade, os sacramentos e a escatologia. O cristianismo se expandiu como religião universalista, enquanto o judaísmo manteve-se como uma fé étnico-religiosa.

O Estado de Israel, desde sua fundação, tem recebido apoio político, militar e científico de diversas nações, especialmente dos Estados Unidos, que se tornaram seu principal aliado estratégico durante a Guerra Fria. A aliança inclui cooperação em defesa, tecnologia, inteligência e diplomacia. Israel também desenvolveu uma indústria militar e científica robusta, com destaque para a cibersegurança, a agricultura de precisão e a medicina. A fundação do Estado foi aprovada pela ONU em 1947, com a proposta de partilha da Palestina em dois Estados — um judeu e um árabe —, mas a rejeição árabe à partilha levou à guerra de independência de 1948.

A doutrina do Estado de Israel é moldada por uma combinação de princípios democráticos, identidade judaica e segurança nacional. Embora se defina como um Estado judeu e democrático, essa dualidade gera tensões internas, especialmente em relação aos direitos da minoria árabe-palestina e à ocupação dos territórios palestinos. O sionismo, em suas diversas vertentes, continua a influenciar a política israelense, ora como nacionalismo secular, ora como messianismo religioso.

Assim, a compreensão das diferenças entre o Israel bíblico e o moderno, entre judaísmo e cristianismo, e entre fé e política, revela não apenas as raízes de conflitos contemporâneos, mas também os desafios de coexistência e diálogo entre tradições que compartilham uma origem comum, mas trilharam caminhos distintos.

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Coligido por Soberano Kanyanga (com suporte do Copilot)