Translate (tradução)

domingo, junho 22, 2025

NECESSÁRIAS OU ULTRAPASSADAS PELO TEMPO?

Quem circula(r) por estradas angolanas encontra(rá) muitos escombros destas antigas casas que foram de reconhecida serventia às equipas de manutenção das estradas nacionais.

Distanciavam-se em intervalos aproximados de 50 quilómetros, que se encurtavam em função das condições geológicas do terreno e necessidades de manutenção da rodovia. O tempo, o descaso e alguma pilhagem cuidaram da sua destruição.

A Casa do Cantoneiro era uma estrutura utilizada para alojar trabalhadores responsáveis pela manutenção das estradas, conhecidos como cantoneiros. 

Em Angola, as casas dos cantoneiros serviam como pontos de apoio para os cantoneiros, que realizavam reparos, limpeza e conservação das vias públicas, garantindo a segurança e trafegabilidade das estradas.

Essas casas geralmente pertenciam a instituições ligadas à administração rodoviária, como os antigos serviços de obras públicas ou departamentos de infraestrutura viária. 

Em muitos países, a função dos cantoneiros foi absorvida por empresas privadas ou modernizada com novas tecnologias.

Um exemplo de país que ainda mantém o conceito de cantoneiros é Portugal, onde algumas regiões preservam a tradição dos cantoneiros para a manutenção de estradas secundárias e rurais. 

Em certos casos, as antigas casas do cantoneiro foram restauradas e reaproveitadas para outros fins, como turismo rural ou centros comunitários.

Em Angola, as casas dos cantoneiros eram pertença da JAEA (Junta Autónoma de Estradas de Angola) e, nos anos do meu despertar (início da década de 80 do século XX), eram usadas pelo pessoal afecto ao MCH (Ministério da Construção e Habitação).

A intensificação da guerra, o descaso e pilhagens, nalguns casos, levou à destruição total das casas dos cantoneiros que conheço.

Você que leu o texto e/ou conhece algumas, o que acha?

_ São para reabilitar ou para deixar como estão?

=

Foto editada: DR

quarta-feira, junho 18, 2025

A PRIMEIRA VÍTIMA DA GUERRA

"Os bandoleiros a mando do imperialismo atacaram uma aldeia inocente, tendo sido energicamente rechaçados pelas nossas gloriosas forças armadas. Na sua retirada, assassinaram cinco mulheres e nove crenças, roubando 15 cabeças de gado bovino".

Faixa de Gaza

Textos escritos ou oralizados como este (acima) eram comuns no tempo da guerra civil angolana e o discurso mecanizava-se de cabeça a cabeça, de adultos para crianças que o carrega(v)am para toda a vida ou até quando descobrirem a diferença entre propaganda e jornalismo, duas ferramentas de comunicação.

Fiquei ontem a "discutir" com o Copilot, uma ferramenta de IA desenvolvida pela Microsoft, uma empresa americana.

A causa foi o facto de esta ferramenta me ter apresentado como vítimas israelitas (apenas) mulheres e crianças, assim como na Ucrânia também só se fala de mulheres e crianças como vítimas.

Quando perguntei se os mísseis e drones iranianos só escolhiam mulheres e seus filhos menores, a aplicação não respondeu. Fiquei a resmungar, o que levou a mulher a dar-me como enlouquecido.

_ Como te prestas a discutir com uma aplicação digital? _ Questionou.

Hoje, depois de mais uma pesquisa a várias fontes sobre as causas históricas, as acções e a escalada iniciada a 13 de Julho, perguntei ao meu "ajudador" se os media têm sido equidistantes. Veja a resposta (as partes entre parêntesis são meus acréscimos).

_ A equidistância dos media é um tema delicado. Em geral, os veículos ocidentais tendem a enfatizar o direito à autodefesa de Israel e a ameaça representada pelo programa nuclear iraniano (assim como restringir as vítimas a mulheres e crianças); as fontes iranianas e aliadas destacam as vítimas civis, a soberania nacional e denunciam o que chamam de “agressão sionista”;  as agências internacionais como Reuters, BBC ou Al Jazeera tentam manter um tom mais neutro, embora estas sejam frequentemente acusadas de parcialidade — dependendo de quem lê (quem escreve e quem comenta). Ou seja, a percepção que os media nos dão é moldada por filtros culturais, políticos e editoriais. A realidade no terreno é sempre mais complexa do que qualquer manchete.

"Nunca se mente tanto como em véspera de eleições, durante a guerra e depois de uma caçada" (Otto Von Bismark). É verdade! "A verdade é a primeira vítima em uma guerra".


domingo, junho 15, 2025

O KOKOTO[1] QUE DIZIMOU OS PIOLHOS


Um conterrâneo da Kibala, recuando no tempo, narrou episódios da nossa infância que é transversal a uma geografia que envolve os municípios à volta do Libolo e Kibala e num tempo que, se calhar, morre em 2000, podendo prolongar-se em algumas aldeias recônditas. É o nosso feudalismo que pouco há de escrito, dada a fraca imersão na nossa etno-sociologia e etnografia.

Quando nos debruçamos a estudar a história clássica e medieval de Roma e Grécia, recaímos, invariavelmente, em episódios angolanos do Séc. XX, em nossas aldeias interiores.

É exemplo a mãe que "cata" piolhos ao filho, aproveitando adormecê-lo, podendo usar duas fórmulas: cantando e catando.

Vivi esse tempo. Algumas mães, no escuro da noite, sem saber se o achado por seus dedos entre o cabelo alto e sujo é ser vivo ou grão de areia, levavam-no ao dente e largavam depois, um rio de saliva.

Vivi ainda o tempo da bitacaia[2], pulga de javali ou porco doméstico que adentrava os terminais de nossos dedos e calcanhares. A comichão, lenta e incómoda, resultava em dor da ferida escancarada, depois de extraído o animal hóspede oportunista com a ponta de um alfinete ou de um pau aguçado.

Mas o meu conterrâneo contou mais e recordou-me o seguinte:

Noite sem luar na Kibala ou outra aldeia do circuito ambundu kwanza-sulino. Nas terras mais a sul e ou norte o cenário também pode ser idêntico.

O archote é lamparina na cozinha escura. A kizaca, peixe de água doce ou carne de caça ferve na panela de barro. Há fumo largado pela lenha que reclamam por mais dias de seca ao sol. Mas quando a lenha seca rareia em tempo de chuva é a semi-seca que se leva à fogueira. No escuro e fumegante da cozinha a mãe pede:

_ Mwiha mwombya (alumia para a panela)!

Na atrapalhação, o rapaz tanto alumia como deixa cair na panela a ponta do archote ardido, já em forma de cinza.

_ Nzayá, matubá, matondoá![3] -Dispara a mãe impaciente, complementando a emenda com um valente "coco" que mata uma dúzia de piolhos e lêndeas na cabeça do infante.

_  Kwolule (não grita). _ Adverte a mãe, prevenindo para que não se acabem, de uma só vez, os piolhos todos na cabeça com outros kokoritos.

Terminada a confeção do "kondutu"[4], é a vez da panela do funji/pirão. O cuidado é redobrado. Em fuba branca, a cinza preta do archote é vinho tinto em toalha imaculada.

_ Mwiha kyambote. _Volta a advertir a progenitora.

E o infante, com um grito adiado ou reprimido da primeira pancada, lágrimas do fumo nos olhos, comichão na cabeça dos piolhos famintos de sangue, acende, de novo, o archote que aproxima delicadamente à panela de barro para a qual o fogo chia.

_ Mwiha!

_ Ñyi mwiha, a mama!

_ Mwiha kyambote

Depois o repasto: as meninas na cozinha ou fora dela, no terreiro da casa, com a mãe, quando há luar. Os homens na sala ou no njangu. Rapazes juntos.

O rapaz quando não vai à escola da vida, o njangu, volta a reclamar o carinho materno, "lambicando" como cão que se deita sobre a cinza quente da fogueira recente. Dobra-se à frente da mãe que "jijina"[5] lêndeas, piolhos ou grãos de areia escondidos no cabelo a reclamar por uma tesoura.

Contando anedotas, ou canções do seu tempo de menina, a mulher afugenta os males e a infra vida que a pobreza impõe, adormecendo o infante para uma nova aurora e lavoura.

Tal como a geração do último quartel do Séc. XX, as nossas crianças continuarão a ler a história clássica e o feudalismo greco-romano. Quanto às nossas vivências, que são recentes, restarão poucas crónicas!

[1] Golpe na cabeça com o punho cerrado.

[2]  Insecto díptero da família dos tungídeos.

[3] Despautério.

[4] Acompanhante.

[5] Acaricia. Faz cafuné.

=

Publicado pelo Jornal de Angola a 13 de Abril de 2025.

sexta-feira, junho 13, 2025

ISRAEL BÍBLICO E O ESTADO DE ISRAEL MODERNO

(Fé, história e geopolítica)

A distinção entre Israel bíblico e o Estado moderno de Israel é fundamental para compreender as complexas relações entre religião, identidade e política no Oriente Médio. Israel bíblico refere-se a um povo e a um território descrito nas Escrituras hebraicas, cuja origem remonta aos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, e que se consolidou como reino unificado sob Saul, Davi e Salomão por volta do século X a.C. Após a divisão do reino e sucessivas invasões, o povo judeu foi disperso em diásporas, mantendo, contudo, uma identidade religiosa e cultural centrada na Torá e na esperança messiânica.

Já o Estado de Israel foi fundado em 14 de maio de 1948, como resultado do movimento sionista, que buscava estabelecer um lar nacional judeu na Palestina histórica. Essa fundação foi impulsionada por fatores como o antissemitismo europeu, o Holocausto e o apoio político de potências como o Reino Unido e os Estados Unidos. A criação do Estado gerou conflitos com a população árabe-palestina local e com países vizinhos, inaugurando uma série de guerras e tensões que perduram até hoje.

No campo religioso, o judaísmo e o cristianismo compartilham raízes comuns, mas divergem em pontos centrais. Ambos são monoteístas e reverenciam o Antigo Testamento (ou Tanakh, no judaísmo), mas o cristianismo acrescenta o Novo Testamento, centrado na figura de Jesus Cristo, considerado o Messias e Filho de Deus. Para os judeus, Jesus não é o Messias prometido, e a espera por esse redentor ainda permanece. Essa diferença teológica é o principal divisor entre as duas tradições.

Os livros sagrados refletem essa cisão: o judaísmo baseia-se na Torá (os cinco primeiros livros de Moisés), nos Profetas e nos Escritos — conjunto conhecido como Tanakh — enquanto o cristianismo adota a Bíblia, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento. A Bíblia cristã reorganiza e interpreta os textos hebraicos à luz da vida e ensinamentos de Jesus.

Quanto aos profetas, Moisés é a figura máxima do judaísmo, considerado o legislador e mediador da aliança com Deus. No cristianismo, Jesus é o profeta supremo, mas também o Messias e Salvador. Ambos reconhecem profetas como Isaías, Jeremias e Elias, que são figuras comuns às duas tradições, embora interpretadas de formas distintas.

As convergências entre judaísmo e cristianismo incluem a crença em um Deus único, a valorização da ética, da justiça e da oração, além da origem comum no Oriente Médio. As divergências, por sua vez, envolvem a cristologia, a doutrina da Trindade, os sacramentos e a escatologia. O cristianismo se expandiu como religião universalista, enquanto o judaísmo manteve-se como uma fé étnico-religiosa.

O Estado de Israel, desde sua fundação, tem recebido apoio político, militar e científico de diversas nações, especialmente dos Estados Unidos, que se tornaram seu principal aliado estratégico durante a Guerra Fria. A aliança inclui cooperação em defesa, tecnologia, inteligência e diplomacia. Israel também desenvolveu uma indústria militar e científica robusta, com destaque para a cibersegurança, a agricultura de precisão e a medicina. A fundação do Estado foi aprovada pela ONU em 1947, com a proposta de partilha da Palestina em dois Estados — um judeu e um árabe —, mas a rejeição árabe à partilha levou à guerra de independência de 1948.

A doutrina do Estado de Israel é moldada por uma combinação de princípios democráticos, identidade judaica e segurança nacional. Embora se defina como um Estado judeu e democrático, essa dualidade gera tensões internas, especialmente em relação aos direitos da minoria árabe-palestina e à ocupação dos territórios palestinos. O sionismo, em suas diversas vertentes, continua a influenciar a política israelense, ora como nacionalismo secular, ora como messianismo religioso.

Assim, a compreensão das diferenças entre o Israel bíblico e o moderno, entre judaísmo e cristianismo, e entre fé e política, revela não apenas as raízes de conflitos contemporâneos, mas também os desafios de coexistência e diálogo entre tradições que compartilham uma origem comum, mas trilharam caminhos distintos.

---

Coligido por Soberano Kanyanga (com suporte do Copilot)

domingo, junho 08, 2025

CRIANDO SOBRE A CRISE

Conversavam sobre o futuro da gestão dos seus lares, agora que a economia do país enfrenta dificuldades. Zara e Kuka são comadres e colegas de trabalho.

_ Kuka,sabes quais são os princípios que uma boa administradora de casa precisa ter para cuidar bem das finanças pessoais e educar os de casa? _Questionou Zara que frequentara um curso de economia doméstica.

_ Não, colega Zara. Podes explicar-me? 

Kuka estava expectante, ante as conversas que ouvira durante o percurso de casa ao local de prestação de serviços.

_ Olha bem! _ Começou Zara. _ Mapear os alvos, as metas e a missão é de extrema importância. A isso se junta a visão que aponta o que queremos ser ou fazer e a disciplina que nos permite estarmos focados naquilo que idealizámos. É preciso também coragem e generosidade. _ Explicou à amiga que seguia com atenção.

Zara, percebi algumas coisas, mas, que tal se me deres mesmo uma lição. Sei que és mais ou menos entendida nessas coisas de economia doméstica. – Solicitou Kuka.

_ Planeamento é projectar, tencionar ou elaborar um o plano. Por exemplo, queres diminuir as compras porque a receita ou o que recebes no fim do mês baixou ou o valor nominal se mantém, mas o poder de compra baixou. Nesse caso, tens de fazer um projecto de contenção de custos e eliminação de gorduras e desperdícios.

Zara ainda ia a discorrer, mas a curiosidade de Kuka era tanta que voltou a interromper.

_ E quê isso de gordura?

_ Gordura é tudo o que é a mais e pode ser eliminado nas nossas compras. Se um par de sapatos na caixa custarem mais do que deixar caixa e na mesma ter os sapatos, é um exemplo. Mas temos vários outros. É preciso gastar menos do que se ganha ou ter um equilíbrio entre o que se ganha e o que se deve gastar. Olha que o planeamento financeiro pessoal é um plano de acção que deve acompanhar a vida das pessoas em tempos como os que se avizinham.

_ Já viste, Zara? Estou a compreender aos poucos. Quer dizer que temos de pensar de forma antecipada e pensar melhor no que devemos gastar e como gastar? Devemos ser pessoas organizadas para ter sucesso financeiro na vida? Devemos fazer mais em menos tempo? Devemos obter mais gastando menos e evitar tudo que seja desperdício? _ O interesse e as perguntas de Kuka pareciam não ter fim.

_ Sim. É isso mesmo comadre Kuka. _ Confirmou Zara. _ Planear é administrar com excelência. Para começar, precisamos de colocar numa folha de Excel todos os nossos rendimentos mensais e listar todas as nossas necessidades que envolvam dinheiro e distribuir em percentagens, sem nos esquecermos de uma reserva para as imprevisões. Eu já tenho a minha folha e estou a exercitar a sua implementação. _ Explicou Zara.

_ E qual pode ser o efeito imediato disso, Zara? _ Voltou a indagar Kuka já mais familiarizada com o assunto.

_ Você vê, por exemplo, que só tem dez mil Kwanzas ao mês para a formação do seu menino. Com a distribuição de parcelas do orçamento por rubricas, terá de encontrar um serviço compatível com o dinheiro que tem. É mais um exemplo. _ Reforçou Zara. _Imagine que em sua casa vivam cinco pessoas e que bebam cinco garrafas de gasosa que custam mais do que um pet de litro e meio. Se comprar o pet fica mais em conta. Já viu?

_ Olha, colega, não precisas de ir mais longe na explicação. Obrigada pela aula. Vou começar por cortar os nossos dois nomes: Irei cada vez menos à Zara e usarei cada vez menos a Kuka. Os apadrinhamentos, as festas, os amistosos do seu compadre ficam todos com rubricas e só acontecerão esporadicamente, caso haja cabimentação. Também vou começar a procurar produtos alternativos para aqueles que estejam muito caros ou que sejam de duração muito reduzida. Sabes que barato, às vezes, também sai caro, nê?! _ Ironizou Kuka que estava muito feliz e pronta a transmitir os conhecimentos que obtivera às demais colegas de trabalho e à família.

_ É isso mesmo, Kuka, em tempos de crise nada melhor do que criar. É só retirar o "S". Comigo é: se há CRISE, CRIE! _ Disse Zara, já a entrar para o seu gabinete.

=

Publicado pelo Jornal de Angola a 01.06.2025

domingo, junho 01, 2025

ALDEIA VIÇOSA: ONTEM E HOJE

A caminho do Uige, a faltarem ainda boas dezenas de quilómetros, montanhas e curvas todas (do Bengo) deixadas para trás, há uma aldeia, cujo nome desperta atenção. 

A ttopografia de altitude com vales aonde se fundam as aguas pluviais. A estrada parece rasgar um sopé. As casas foram esplendorosas num tempo que só os idosos sabem contar. Para as criancas e jovens deste tempo, Viçosa parece parada ou a andar (ainda) a passo de camaleão.

_ Ó filho, a aldeia começou a surgir somente assim. Vinha  colono e se instalava. Primeiro fazia fazenda. Ia buscar pessoal no sul para plantar café. Quando já tinha produção, ia buscar mulher e os filhos. Se fosse solteiro procurava já casar. Quando voltassem para a terrw deles vianham com mais alguem: o cunhado, o irmão, o primo, o condenado etc. Mas nós nãosabíamos isso de colonos condenados na terra deles que vinham aqui nos mandar como se fossem gente limpa. Só mesmo a cor deles de brancos é que nos atrapalhou até rebentar o sessenta e um. Como estava a explicar, a primeira casa era na fazenda. Começava pequena e depois fazia já grande, tipo no Puthu, com adobe quaimado e rebocado ou  mesmo tijolos da cerâmica e telha por cima. Quando os filhos já não podiam ficar na fazenda, por causa do estuso, começaram a construir casa na aldeia civilizada, aqui já. Depois veio mais brancos, mais brancos, mais brancos até Viçosa ficar assim (aldeia grande). Até o próprio nome, eles é que deram. Parece que havia nome igual lá no Phutu.

O meu narrador é um idoso de aproximadamente 80 anos que jura ter visto a "Viçosa crescer" e os brancos a enriquecer.

_ Eu trabalhava ali (apontava com a catana) para uma roça. Essa casa, aqui, que fizeram cantina, era a loja do Sô Paulo. Aquela tinha padaria. Aqui tinha muito "muvimento". _ Narrou o mais velho Mpevo para quem o declínio "começou no sessenta e um". O castigo dos brancos contra o mukongo era demais. O irmão Holden e outros irmãos do Miazaza começaram a luta. Ataque nas fazendas, contra os brancos e os trabalhadores deles do Sul. A tropa dos brancos veio acudir e começou a matar o povo que se refugiou nas matas, no Congo e outros se apostaram na Frente. Nenhum branco mais estava a aceitar vir se instalar e outros começaram a viver só nas vilas, até chegar a independência".

A aldeia Viçosa fica no caminho da antiga Carmona, cidade do Uige. 

Tirando tímidas novas edificações,  ela está praticamente "tal qual o colono a deixou", o que não deixa de ser um elogio.

No dizer do mbuta munthi Mpevo, "muita coisa desandou e nem sequer as pinturas, janelas, torneiras ou os pavimentos das antigas casas bistosas foram conservados e ou repostos". Apenas a Total vistoriou a Vila comunal e ergueu, de raiz, um posto de abastecimento de combustíveis que reclama ainda por energia da rede pública para conter os gastos com o gerador de energia que acciona as bombas.

terça-feira, maio 27, 2025

QUANDO AS LÁGRIMAS NOS ACOMPANHAM

No dia 26 de Abril, duas situações de profunda comoção aconteceram e, a mim, não passaram despercebidas:

Depois de dez anos de vivência e cinco meses de ausência física, o Nelson ainda vivia [simbolicamente] em casa da Lena. Ao entregar os pertences de uso particular do esposo finado ela [viúva] estava a retirar de sua casa o que restava do marido. Era a desaparição total [física] do Nelson daquela casa [não da mente dela, isso leva tempo ou mesmo é impossível]. Por isso, a viúva entrou em prantos. Chorei com ela.

Infelizmente, manda a tradição que a viúva ou o viúvo deve apresentar/entregar aos parentes de sangue os pertences de uso pessoal do de cujus.

Quando chegámos ao Rangel, depois de reunir com a tia Maria [mãe do Nelson], o cenário repetiu-se.

A tia Maria nasceu em Luanda, mas glosa um refinado Kimbundu kibalista que provoca inveja a muitos que nasceram lá e se "calcinharam", misturando 70% de português e restos de palavras de que se recordam em Kimbundu kibalista.

Quando a convidei para ver as coisas do filho finado, resgatadas da casa da viúva, onde este morou durante uma década, a tia Maria exteriorizou:

_ Omon'ami watoka'a kwamamô!

Essa expressão, para quem interpreta a língua [e não faz tradução linear] é muito profunda.

Estava a receber, espiritualmente, o filho peregrino.

O Nelson Ferreira Cabanga já não está entre nós desde 27 de Novembro de 2024. A recepção, pela mãe, dos seus antigos pertences foi como receber o que restava do filho. Daí o "watoka'a kwamamô [regressou à casa da mãe]. Foi tão profundo que as lágrimas não me avisaram e seguiram o caminho habitual da tristeza.

sexta-feira, maio 23, 2025

"ME TOCA SE ÉS PESSOA!"

Nos bairros periféricos de Luanda, habitados por gente com descendência rural, e nas comunidades do interland era comum e ainda pode ser que se oiça, em contendas ligeiras ou de forte agravo, a expressão "me bate se és homem completo".

Permita-me a confissão: aos 5 anos troquei os dentes. Dos dentes de leite passei à dentição definitiva e, de 18 passei a 32 dentes (quando me vieram os de ciso. Estava num processo de completamento. Assim, fui homem completo até aos 8 anos. Sim, até aos oito anos. 

Nisso de estar completo ou incompleto, não tenho contado o corte de unhas e cabelo, pois são permanentemente renováveis. Todavia, aquela cerimónia de integração social, chamada circuncisão, fez-me "homem incompleto", pois uma partícula do meu corpo foi removida. A isso se acresceu uma cirurgia ao baço, tendo sido removida parte do vital órgão, embora os médicos admitem a possibilidade de sua regeneração. Portanto, desde os meus oito anos que já não me encaixo na categoria de "homem completo".

Voltando à "vaca fria", não sendo "homem completo, desde cedo", de igual sorte desde muito cedo deixei de disputar completudes ou levantar a mão em querelas sobre quem mais grita ou quem tem a mão mais leve. Sempre que me foi endereçado o pedido "me bate se és homem completo", bati em retirada, preferindo ouvir impropérios como "boelo, fraco, incapaz" etc.

A expressão "me bate se és homem" é frequentemente usada em contextos de provocação ou desafio, geralmente em situações de conflito verbal. Ela carrega uma conotação de incitação à violência, desafiando a masculinidade ou coragem do interlocutor. Esse tipo de linguagem pode perpetuar estereótipos de gênero e incentivar comportamentos agressivos, o que é profundamente problemático.

É essencial repudiar o uso de expressões como essa, pois elas reforçam uma cultura de violência e desrespeito. Promover o diálogo respeitoso e a resolução pacífica de conflitos é fundamental para construir uma sociedade mais harmoniosa e igualitária. A violência, seja verbal ou física, nunca deve ser normalizada ou incentivada.

Por outro lado, "me bate se és homem" reflete e perpetua uma série de implicações sociais que são importantes assinalar e reflectir sobre:

A frase associa a força física à masculinidade, reforçando a ideia de que "ser homem" está atrelado à capacidade ou vontade de exercer violência. Isso não apenas distorce as expectativas em relação ao comportamento masculino, mas também contribui para a manutenção de papéis de gênero limitantes.

Ao desafiar outra pessoa à agressão, a expressão normaliza e banaliza os conflitos violentos, diminuindo a percepção das suas consequências. Essa atitude pode criar um ambiente em que a violência é vista como uma resposta aceitável ou até mesmo esperada.

O uso de expressões como essa desestimula o diálogo respeitoso e construtivo, promovendo confrontos ao invés de cooperação ou entendimento mútuo. Isso pode dificultar a criação de relações mais pacíficas e harmoniosas na sociedade.

Desafios dessa natureza podem pressionar indivíduos a agirem contra as suas crenças ou valores, apenas para se adequarem às expectativas sociais ou para evitar a percepção de fraqueza. Isso pode gerar stress emocional e até mesmo traumas, dependendo das circunstâncias.

A consciencialização sobre o impacto de expressões dessa natureza é essencial para combater a sua aceitação e incentivar práticas linguísticas mais saudáveis e respeitosas. Substituir provocações por diálogos empáticos ajuda a transformar o ambiente ao nosso redor.

É essencial repudiar o uso de expressões como "me bate se és pessoa", pois elas reforçam uma cultura de violência e desrespeito. Promover o diálogo respeitoso e a resolução pacífica de conflitos é fundamental para construir uma sociedade mais harmoniosa e igualitária. A violência, seja verbal ou física, nunca deve ser normalizada ou incentivada.

Já ouvi também homens: crianças, adolescentes, jovens e outros de barba rija e calvície denunciada a se dirigirem a mulheres com a expressão inversa, "me toca se és mulher completa!".

Já escrevi acima que não me considero e nem sou "homem completo". Para quê bater em uma mulher, mesmo que fosse homem completo?

Afinal, diz o ditado popular que "quem evita não é burro!"

Publicado pelo Jornal de Angola a 25.05.25

segunda-feira, maio 19, 2025

IMORTALIZE-SE O TCHOIA!

Nas crónicas, Man Barras era amigo de Mangodinho, assim como Kanyanga esteve ligado ao Tchoia. So closed, como dizem os anglófonos.
Não se foi a tempo de aferir a existência real de Man-Barras. Mangodinho, porém, tinha corpo, nome e morada, embora as acções lhe fossem atribuídas pelo cronista/contista. Ele, pessoa real, emprestara apenas o nome ao personagem.
Tchoia foi o criador do personagem Man Barras. As crónicas merecem estar em um livro e os herdeiros são apelados a isso. Kanyanga criou Mangodinho. Mangodinho morreu. Passam dois anos. O Lauriano Tchoia deixou-nos, hoje, fisicamente. Vamos depositar, esta quinta-feira, 22, os seus restos mortais (detesto essa expressão, mas não encontrei outra melhor). Está a ser um dia muito triste, pesado, saturado. Nada consegue amenizar a nossa dor e tensão que altea.
Depois das boas-vindas, o Lauriano Gabriel Tchoia deve estar a contar as novas estórias terrenas a Mangodinho (o real). Quanto ao Kanyanga, ainda respira, pestaneja, marca passos cada vez mais lentos e trôpegos. Aguarda a sua vez chegar.
=

quarta-feira, maio 14, 2025

AKUKU, MAKAYA YATEMA!

À mesa, um despertador, à corda, barulhava no seu tic-tac-tic-tac a cada segundo que passava. No fundo, ele era também um relógio destinado a marcar apenas a hora do almoço.

Os meus conhecimentos, aos 4 anos, se limitavam à hora treze. Era naquele momento em que ele gritava furiosamente, como um comboio descarrilado.
_ Trimmmmmmmmmmmmmm! vibrava ensurdecedor, às vezes, que a avó Kikumbu, já no limiar da sua maioridade, chegava a não perceber o mundo à volta.
_ Ndeno kamwasene (1), vociferava a velha aflita.
O almoço, este, estava sempre pronto antes daquela sineta que nos punha voluntariamente de pé e a correr, rumo à baixa, ao riacho inseminado de peixe de água doce que meu pai se gabava de ter sido o obreiro.
Estávamos na Fazenda Kitumbulu do meu avô Fernando Dambi ou Ngana Muryango onde se diz me terem encomendado para nascer, no Mbango de Kuteka, no óbito doutro meu avô, o materno, Knyanga Mungongo ou Ñana Ñunji que era soba grande, exercendo o seu poder de régulo a partir da capital do território, Mbanze yo'Teka.
É pena que as minhas vivências com o avô Dambi tenham sido na primeira infância e o meu "saco" do passado carregar muito pouca informação, mas escreverei, um dia, sobre o toque de chamada daquele velho empenhado em trabalhos campestres ou consulta de adivinhação".
Primeiro tocava o despertador a que chamávamos de relógio de mesa, depois alguém tinha que pregar um enorme berro, à distância, com o código secreto:
_ Akukuééééé, o makaya yateméééé! (2)
E lá vinha ele, meio satisfeito por poder matar o bicho, meio aborrecido por não ter terminado a empreitada. E todos, filhos, netos e visitantes que eram frequentes, sentávamo-nos à mesa para o repasto, regado com makyakya(3) para os mais-velhos.
À tarde, normalmente, era passada em conjunto no terreiro (4) ou no corte de ngando (papiro) material para a confecção de esteiras e outros objectos de cestaria.
Aos sábados e domingos, os homens adultos (sempre o avô, o pai, o tio César e outros visitantes) iam à caça com arcos, flexas e cães. Nós, os miúdos, acompanhávamos as nossas mães à pesca com cestos ou aproveitávamos a ausência dos pais para as nossas aulas práticas de armadilhar perdizes, pacas, macacos, pássaros e pescarias com nassas e anzóis carregados de salalé e minhoca.
O Atenção, cão pastor alemão que meu pai tinha conseguido do patrão da Fazenda Roussel, era o que mais caçava e, por isso, o mais querido da comunidade. Mas havia ainda o Tigre, o Tunga Laô, o Kelula e outros de cujas façanhas me lembro pouco. O meu querido Atenção, que teve durante a minha infância muitos xarás, foi morto por uma onça depois de renhida peleja que deixou ambos em estado crítico. Tanto o meu pai o curou, mas, não resistiu aos ferimentos. Teve funeral humano com uma caixa e campa em reconhecimento dos seus feitos. Do lado oposto, os caçadores da comunidade encontraram a onça esquelética debaixo de uma árvore, onde eventualmente tentava, também, curar-se das mordeduras do Atenção.
Às noites, à volta da fogueira, os adultos eram autênticas bibliotecas de secular saber. Contavam-se adivinhas, estórias de animais e histórias de factos ocorridos num tempo de ouvir dizer. Da escrita pouca importância se dava, mas a “oralitura” era obrigatória. Saber desvendar a genealogia era uma perícia apenas dos bons filhos, aqueles a quem se dizia algo, ouviam, interiorizavam e materializavam ou replicavam. Eram esses os interpretes nas conversas adultas e nas longas viagens. Os mais velhos deixavam os monitores começarem com as perguntas e respostas dos mais novos... Uma aprendizagem que se processava por meio da repetição diária de um rosário costumeiro a que os anciãos acrescentavam novos elementos. Novos contos, novas fábulas e novas experiências que complementavam os já absorvidos pelos noviços... E havia pedagogia!
=
1 Vão chamá-lo!
2 Avô, o tabaco à beira do lume quase que queima!
3 Kaporroto.
4-Local onde se secava e ensacava o café
=
Publicado no Jornal de Angola de 19.01.2025

quinta-feira, maio 08, 2025

CONHECENDO VIZINHOS

Há mais de 15 anos que vou ensaiando travessias fronteiriças (por terra), tendo conhecido os postos de Dilolo Gare (Lwaw), Kasanda (Lunda wa kusangu), Luvu (Zadi), Masabi (Kabinda) e Santa Clara (Namakunde). 

O comércio, "motor de maior potência" é que, normalmente, dá vida aos movimentos fronteiriços pendendo estes mais para o lado forte. [Os laços familiares também têm influência, mas não são os que chamam as alfândegas, zungueiros, carteiristas, malabaristas e outros agentes do bem e do mal]. Quem tem mais a dar vende mais e recebe mais dinheiro que robustece a economia do seu país e povo.

Atravessei a fronteira, via Kasamba, saído de Dundo, por duas ou três vezes, tendo comprado bubus, vestidos e camisas congolesas chamado pelo pregão "basin de qualité". As bijuterias, maioritariamente, "banhadas" e passadas como verdadeiras, são deles. A comida, os combustíveis os electro-domésticos e os Kwanza são nossos, mas é deles a praça maior. Ou seja, há maior número de vendedores quando a praça é deles (do lado deles). 
Em Dilolo, a "visita" calhou-me em um dia de mercado aberto. Os angolanos vendiam kakeya, mandioca e outros produtos alimentares que não eram tantos. Os "zaikôs" tinham quinquilharia diversa e vestuário "made at home", apresentando-se ávidos de atravessar e ficar, enquanto os deste lado (mais ao mar), quando passassem os quilómetros permitidos (ou dentro do raio) era para buscar saúde ou visitar parentes. 


Tal encontrei no Luvu [2014], quando a formalização de laços familiares entre o meu irmão e uma moça de Mbanza-a-Kongo me levou ao mercado fronteiriços à compra de "Or", malavu, sapato-sola-seca e outras coisas infalíveis em um pedido de casamento tradicional [bantu]. O gasóleo, petróleo, feijão, arroz, peixe fresco e seco eram nossos. Eles também vendem coisas, mas as habituais e acima descritas. 

Em todos os pontos fronteiriços visitados, há desequilíbrio entre quem vende o quê, mas nunca como vi na fronteira a Sul, onde os que mais vão e voltam somos nós [angolanos]. E dizem que a taxação alfandegária "desregrada?" afugentou os comerciantes empresariais, deixando o posto fiscal à mercê dos revendedores de rebuçados e maçãs. Não tive tempo para confrontar e não pode essa passagem ser tomada como verdade acabada, embora se notem cada vez menos compras empresariais. Isso é verificado e os moradores contam-no de boca desabrida. O que não diminui, porém, são as idas e vindas de angolanos para comprar coisinhas que devíamos já ter para consumo imediato ou encontrar algo que se venda no nosso lado para o consumo deles. Esse é um desejo ardente, mas o que é que eles, namibianos, não têm e que precisam de comprar em Namakunde/Santa Clara?

A planície com escassa vegetação é a mesma [nos dois lados]. A seca no tempo de estiagem e as zonas alagadas quando chove são as mesmas. A estrada sem buracos, as casas [grandes, médias ou pequnas] contruídas de forma ordeira, os campos de masangu e masambala à beira da estrada e das aldeias, as manadas sempre acompanhadas de pastores e fora da rodovia são deles. 







 


quinta-feira, maio 01, 2025

ANTIGAMENTE: NANYI WANGIBONGELA KAMBONGA KA DYALA?

[Quem terá encontrado uma criança de sexo masculino?]

O tambor, uma lata de leite em pó de qualquer marca, agredido por um ferro, um pedaço de madeira ou uma pedra, gritava ao máximo de sua força e potência sonora. Pá-pá-pá-pá.

Atrás do som, uma, duas ou três senhoras, lábios secos e pés empoeirados de tanto gritar e caminhar, soltavam um coro, alegre para a nossa inocência de kandenges e preocupante para as mamães que podiam estar naquela situação um dia, a contar com as nossas travessuras e o seguidismo ao Mam-Brás, ao cavalo-tica-tica, e, sobretudo no tempo de Carnaval [que ainda era da vitória]. Essas, as mamães, confirmavam antes a presença dos seus tumbonga e prestavam-se em passar informação e pedir detalhes sobre o garoto ou garota desaparecida.

- Pá-pá-pá... O gritar intrépido da lata já ampliado ia deixando rasto na rua varrida, manhã cedo, pelas mamães que não permitiam o convívio com a imundície com que nos confrontamos hoje. Nisso de limpeza das ruas, cada mamã ou sua filha, adulta ou adolescente, atacava o seu lado. O lixo tinha lugar, o balde, no quintal, e depois o depósito com ou sem contentor.

Atrás do barulho da lata, ou quase em simultâneo, a manhã aflita e suas companheiras gritavam, quase já sem forças. Animava as apenas a esperança em reencontrar o filho amado.

_Nanyi wangibongela kambonga Ka dyaléééé? E a lata tambor continuava batucando.

É esse o Rangel do meu tempo, século passado, quarenta e cinco anos já.

E o som, as trambiquices, as magoelas na carroça do carro do vizinho ou dum visitante qualquer, as pescarias de "bagudas" na vala Senado da Câmara, junto ao Catetão, as cercanias da DTA para apanhar loiça descartável já descartada, os pinos na Chicala e ou na Praia do Mbungu, as castanhas de caju que só o comboio permitia chegar ao quilómetro trinta de Viana, tudo isso ainda no ouvido e na memória.

- Vocês, estão a ouvir né? É melhor tomarem cuidado. Se calhar quem se perdeu é vosso amigo da bola ou de brincadeiras. Quando a mamã fala não sai é mesmo para não sair.

Qualquer vizinha era tia. Era mamã no aconselhar, no repreender, se necessário, e acarinhar quando injuriado. 

_ Filho 'lheio tem 'mbora razão dele. P'ra quê só fazer no filho da outra quando você também tem kambonga? - Acudiam, quando nos visse injustiçados.

Hoje, com escolas do povo, colégios privados, ATL e creches para todos os bolsos, media e redes sociais para todos, nem o pregão que procura o filho desaparecido, nem as brincadeiras são as mesmas. Tudo mudou. Até às razões das desapropriações dos meninos. Hoje a atenção redobrada é com raptores de menores. Porque a TV os jogos, as escolas e os quintais murados feitos prisões já não as leva tanto a caçar gafas, apanhar peixinhos para guardar em aquário de garrafão cortado, nadar inocentes no perigo da Chicala e Mbungu ou pendurar-se ao comboio para chegar à fonte de castanhas de caju. São outros os males e os remédios também.

=

Publicado pelo Jornal de Angola, a 30 de março de 2025.

terça-feira, abril 29, 2025

DUAS DÉCADAS SEM PARAR

Sede do Gov Prov destruída
pelos sul-africanos


A 29 de Abril de 2005, criei desta página, em Lisboa, na Universidade Católica de Portugal.

O 20° apanha-me em Ondjiva, Kunene, em missão de serviço.

Folgo em comemorar 20 anos de comunicação permanente e diversificada. 

A página, inicialmente "olhoatento" (que equivale a "mesumajikuka", em Kimbundu), deu lugar a outros blogues temáticos como: olhoensaios [ensaios diversos], provérbios [aforismos], atura-liter-atura [esboços ficcionados], agricult'arte [dicas sobre plantio] e 10encantos [poesia].


Dedico esses vinte anos aos meus leitores, os de sempre e os novos.


segunda-feira, abril 28, 2025

LONGA: KWANDU NYI KUVANGU

"Aqui travaram-se encarniçados combates pela defesa da pátria ameaçada. Aqui tombaram camaradas" de várias procedéncias do nosso vasto país". Aqui se conta, nos dias que correm, estórias sobre resistência ao colono, na Sub-zona da terceira Região Político-militar do Glorioso, estórias sobre a resistência heroica contra os invasores sul-africanos quando os homens de Roelof Pik Botha e Pieter Botha pretendiam fazer em Angola um "passeio turístico" militar em socorro a amigos angolanos que a história se encarregou de catalogar. 

Hoje, a luta é reerguer o que se destruiu durantes as várias guerras (contra a ocupação colonial, contra a invasão sul-africana, contra a insurreição interna) e construir coisas novas. É produzir arroz, milho, leguminosas e tubérculos e aumentar o nível académico-cultural dos seus habitantes. 

Longa, com os seus perto de cinco mil almas, é uma comuna que "perdoa o passado lúgrubre", mas que jamais o esquecerá para que não se repitam as atrocidades que apagaram vidas e transformaram em escombros casas, lojas, hospitais e outros haveres.

A carcaça de um helicóptero militar danificado na cabeceira da pequena pista de terra batida da comuna do Longa e alguns edifícios coloniais convertidos em pedaços pela aviação e artilharia "inimiga" são hoje registos históricos que devem ser legados de geração em geração.

Os meninos do Longa contam a História lida nos poucos livros existentes e jogam à bola num pedaço lateral do "campo de aviação". 

A língua que mais se fala é Ngangela, sendo a língua portuguesa a segunda língua, obrigatória apenas na escola que foi,  felizmente, poupada e reconstruída. 

"Outra maior, de 12 salas, construída de raiz, aguarda pela inauguração, devendo elevar o nível de ensino e o  número de alunos escolarizados", contou João Mbambi, profesor do primeiro ciclo do ensino primário que ganhou um [livro] "Relógio do velho Trinta".

Os petizes, uns vestindo calções e camisolas amarelas e outros de tronco à mostra, imitavam, emotivos e sonhadores, os craques do Girabola. 

_ Quero ser como Job ou Ary Papel, disse um deles quando convidados para a foto-testemunho.

O árbitro vestia calças  jeans, uma tshirt e calçava chuteiras, ao passos que os pequenos "artistas da bola" poucos mostraram ter  o privilégio de jogar com os pés calçados. 

Alegres, sem temor, nem represálias. Hora pós-escolar, 5h30 da tarde, girava alegremente a bola no Longa, enquanto me aprumava para a viagem de regresso a Menongue que é longa, cerca de 90 km por cronometrar.

Moisés Sacinene, 14 anos, frequenta a sétima classe. Foi meu companheiro de conversas e fotógrafo de ocasião. Não se fez ao campo por consoderar aquele "um jogo de crianças". O seu campeonato é outro. Naquele pedaço de terreno plano roubado ao aeródromo militar, assiste apenas aos putos a se "trumunarem" ou é convidado a ajuizar os jogos dos kandenges.

"O nosso campo é no lado de lá da estrada, onde os colonos jogavam", contou.

Quem vai de Menongue ao Kwitu Kwanavale, tem no lado difeito do Longa a pista, parte da aldeia e o quartel. Do outro lado da Estrada Nacional 280 ficam os edifícios administrativos e equipamentos sociais como o mercado, as escolas, o posto médico e, por mais incrível que pareça, um campo relvado a reclamar por novas balizas. 

"Esse campo foi sempre assim desde que nasci", conta o professor Mbambi, quarenta anos, mais ou menos. 

"O campo é mesmo do Governo. É ela quem manda cortar  relva quando fica muito alta", esclareceu.

Podem ainda ser vistos, no lado norte, a antiga quadra de jogos de salão e sobras da guerra como tanques blindados e "mwana kaxitu" [lança rokets] já recortados em pedaços e aguardando pelo transporte à siderurgia onde as laças e canhões que serviram a guerra poderão ser "transformados em enxadas e arado" para lutar contra a fome e a pobreza.

Mais abaixo, junto ao rio que dá o nome à comuna e à fazenda que é exemplo nacional em termos de produção de arroz, um vasto prado se espalha em milhares de quilómetros quadrados de área, ladeando longitudinalmente as margens do Rio Longa cujas águas na3o só me convidaram para matar a sede,  mas também para lavar a "Maria Canhanga" [viatura] que me transporta nessa odisseia.

_ Tio não toma banho ali. Visita tem de ser acompanhado. _ Alertou-me um dos rapazes que desafiavam a lei de Pascal sobre a submersão, ao que obedeci. 

Na verdade, embora o Longa me tivesse convidado, a intenção era apenas lavar o rosto e saciar do caudal corrente e límpido a sede que caminhava comigo desde Menongue.

Enfim, conheci a Comuna do Longa, fruto da paz que o povo tanto pedia. E não vim cumprir a "vida Kwemba", nem em serviço forçado numa cadeia pidesca do caputu ou disesca da ressaca revolucionária. Estou a desfrutar Angola e os benefícios da força da razão que sempre lutou mais forte do que a razão da força que fez de todos nós meros objectos. 

Que saibamos todos dizer "tri-ti-ti nunca mais", porque agora que a paz já chegou "vamo mbora no Kwitu". E  a visita ao Kwitu Kwanavale, perto de 100 quilómetros a leste de Longa, fica na agenda por cumprir nas próximas férias.


PS: Talvez a minha Cda Emília Kacongo Kacongo me convide um dia a conhecer a capital da nova província do Kwandu (texto de 2015 revisto a 21 de Fevereiro de 2025).

terça-feira, abril 22, 2025

NÃO SUJE NOSSAS RUAS!

(Andando por Cape Town)

Esse "warning" |Don't rubbish our roads| muito nos serve e, se calhar, mais a nós do que a eles que grande parte da população juvenil e adulta já sabe que "as ruas e a higiene colectiva são para manter e preservar". 

Nem os "bígamos", casados com "Mari & Joana", que por cá abundam, ousam em deitar as beatas em qualquer lugar ou nos contentores plásticos que se acham em boas quantidades ao longo das vias urbanas. 

Os causadores de incêndios, urbanos ou florestais, são exemplarmente castigados e a fama corre, anos afim, em suas "villages" ou "contryside" de origem onde a moral pública não tolera desacatos à ordem social estabelecida. 

Quem quererá ser rotulado como causador de um dano moral público repugnante que tenha chocado a sua família e a comunidade? Há honra a preservar!

Nós, por cá, nas passagens superiores os pedestres efectuam desavergonhadamente as suas travessias sobre a plataforma (via) confiada aos automóveis e, como se as nossas caras fossem tão largas para que nelas não coubesse sequer uma réstia de vergonha, já que sobre valores alguns entendem apenas de pecúnia, alguns agentes reguladores do trânsito automóvel ainda se dão ao desplante de pararem o trânsito para que os preguiçosos e violadores de normas atravessem a via como manadas. Os contentores plásticos, já insuficientes, são queimados por fogo posto. As rodas dos contentores plásticos e metálicos são simplesmente roubadas e vendidas aos olhos dos agentes de segurança e ordem públicas. As redes separadoras das vias como a 21 de Janeiro e Deolinda Rodrigues são desmanchadas, roubadas. Os bens públicos destruídos sob a inacção de quem tem a segurança como tarefa e silêncio dos que deviam denunciar, mas aplaudem com os glúteos. Só mesmo em terra "nostra"!

Mas, isso tem de acabar! Como?

1. Educação da nova geração por via de debates e conteúdos académicos; 

2. Informação da sociedade em geral, por via de anúncios em media, panfletos e outdoors; 

3. Punição, por via de multas administrativas (quando seja possível), trabalhos sociais (temos muitas fossas por desentupir e "montanhas" de lixo por desbastar e valas por desassorear. 

4. A cadeia remota (a exemplo de Bentiaba ou outras colónias que devem ser criadas para os criminosos perigosos e reincidentes) não é excluída nesse exercício. 

Afinal, fomos dotados de semelhantes capacidades intelectuais e desejo de usufruto de vidas seguras e sadias. Rebuçados e porrinhos, quando bem doseados, podem ser bons suplementos!

=

Texto publicado pelo Jornal de Angola, 27.04.2025