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domingo, novembro 29, 2015

A BOCA E O PEIXE

(A boca mordida pelo peixe ou o peixe morto na boca)
Diz a sabedoria secular que da boca de um mais velho saem dentes podres ou cariados mas nunca palavras vãs.
Em momento de lazer, em Cacuaco, numa cacussaria frequentada por idosos, senhores e senhoras de idade e jovens ainda com barba emergente, ouvi alguém, com a cátedra que os cabelos brancos e as rugas no corpo fustigado pelo tempo e pelo vento, a dizer no seu refinado Kimbundu bem conjugado e articulado:
- Uxa dikongo. Kuxye kitadi. Andodijiba! (deves deixar dívida por saldar e não dinheiro aos filhos. Se deixares dinheiro vão brigar ou matar-se).

E o septuagenário não se ficou por aí. Falou ainda mais. Falou sobre um seu coetâneo que, estando acometido de uma doença e sem o apoio esperado dos parentes mais próximos, mandou matar os porcos que possuía na sua pocilga, todos de uma vez, oferecendo a carne à comunidade. "Querem deixar-me morrer para ficar com os meus animais? Não vos darei esse gosto". Terá desabafado, depois de ter vendido uns tantos para com o dinheiro buscar saúde. – Contou num discurso rebuscado, distribuindo expressões entre o seu Kimbundu materno e o Português de verbo fino.
Ao ouvir uma companheira de ocasião, na cacussaria de Catete, a sugerir o sumo de pepino para rejuvenescer o organismo, João Domingos, o idoso, apesar do peso da idade e dos cabelos todos esbranquiçados, não poupou esforços em solicitar a bendita receita.
- Filha, toma papel. Aponta tintim por tintim. Quero experimentar esse sumo e ver se esse corpo ganha força. Apenas o cabelo é que nunca pinto. Jindemba kaná (Kimbundu). -  Sacou ele de um caderno onde apontava as suas contas sobres vendas e créditos de produtos retirados da sua lavra à margem do Kwanza.
- Avo, desculpe paizinho, se o ofendo com o termo avo. É somente respeito. -  Interrompeu, inocentes, o jovens Mangololo que no segundo cacusso empurrado por fresca cevada.
E ele prosseguia:
- Se Mwadyakime uxa mona wofele, tambi y´ota (yand´o tokota) equivalente a se um mais velho deixa um filho menor, o óbito estará quente. Terá assunto para debate (sobre quem cuidará do menor).
João Domingos, o septuagenário, prosseguiu cauteloso, mas sempre desbocado:
- Ukale ngo umbaku, se mona. Tambi ki yando waba (fique infértil, sem filho. O óbito fica sem assunto, sem debates acalorados)!
 
 

terça-feira, novembro 24, 2015

UM GRITO A FAVOR DA FORTALEZA DE KALULU

Construída sobre o Monte Lukulu, que estará na origem da designação da vila de Kalulu, sede do município do Libolo, no Kwanza-Sul, a Fortaleza de Kalulu (ou Calulo nome oficializado nos registos topográficos) foi um dos maiores bastiões da resistência nativa à afixação dos europeus nas terras de Ngola até ao século XX.
Nos tempos da minha infância e adolescência, na década de noventa do século XX, ela cumpria ainda o seu papel militar, sendo o local onde se concentravam as melhores peças de artilharia do exército governamental que fazia face a uma rebelião armada e, por isso, seu último reduto. O entrar e sair de militares era sempre tido como sinal de algum alerta de que o cheio a pólvora podia estar próximo ou sinónimo de novas aquisições em termos de tecnologia militar. Basta ver que o Palácio do Administrador está erguido à entrada do forte.

No tempo da guerra civis entre angolanos a Fortaleza de Kalulu era um local inacessivel a civis comuns, sendo quase místico para a miudagem do meu tempo o que havia e ou acontecia no seu interior, para além das "armas pesadas" e dos "tropas mais cacimbados" que entravam e saíam. Das raras vezes que vi o seu controlo a mudar de mãos, mesmo que fosse por curtos minutos, senti parte da derrota, assim como sentia dor ao ver pedaços de pedra a ela arrancados à força de canhões e morteiros. Mas, dia depois, retornados duma fuga forçada, lá estávamos de novo, a curar as feridas, apagar as cinzas e a contemplar a dureza da nossa Fortaleza contra a qual, infelizmente, a acção voraz do tempo tem sido implacável.
A abertura da Fortaleza de Kalulu ao público aconteceu nos anos de paz efectiva, isto é, depois de 2002. Com a desmilitarização da vila de Kalulu a fortaleza passou a acolher as antenas reprodutoras dos sinais da Televisão Pública de Angola e da Rádio Nacional de Angola.
Embora seja considerada pelos nativos do Kwanza-Sul e por muitos historiadores, que leram sobre ela ou a visitaram, como um "local de memória colectiva", desconheço a existência de um diploma legal que a eleva a património Histórico Nacional, como acontece com outros edifícios classificados, pois não vi nenhuma placa com tal indicação, nem à entrada nem no seu interior.
De uma coisa, porém, tenho plena certeza: a Fortaleza de Kalulu é memória colectiva dos angolanos sobre a resistência oferecida pelos nativos à presença europeia, levando os invasores portugueses a erguer na elevação que se acha no interior da vila um forte em pedra bruta para melhor se defenderem e desferir fogo de artilharia contra os nativos que se revoltavam de tempo em tempo. No seu silêncio, ela conta também o estoicismo dos povos do Lubolu (Libolo) e arredores contra a usurpação de suas terras, subalternização da sua cultura e mutilação de seus usos e costumes. Um povo fraco e submisso que tivesse renunciado a sua organização política, social e cultural não teria merecido tamanha honra dos conterrâneos de Paulo de Navais.
Sobre os anos das refregas entre movimentos desavindos ao sair de Alvor e, depois, entre o Governo instituído no país e a rebelião armada, a Fortaleza de Kalulu guarda outra História e estórias. Vai daí também a necessidade de se redigir tudo quanto ela registou, formar-se jovens guias que recontem estes episódios aos visitantes da sede administrativa do Lubolu que vai conhecendo um crescimento do número de visitantes, sobretudo nos dias de Futebol que é animado em semanas intercaladas pela equipa do Clube Recreativo do Libolo que está na 1ª divisão, ostentando já quatro títulos de campeão nacional.
Depois de ter sido reduzida a depositária das antenas que reproduzem os sinas da Rádio e Televisão Públicas, que caso fossem colocados na elevação maior, Kaliematuji, até dariam maior serventia em termos de alcance dos referidos sinais, a Fortaleza de Kalulu cai aos bocados, como facilmente observará quem para lá se desloca, não se observando movimentação no sentido do seu restauro e ou uma mera reposição dos blocos que se desprenderam do muro, fruto de continuada acção humana ao tempo das refregas e da acção do tempo.
Sabendo que o Palácio do Administrador municipal, que fica à sombra da escadaria da centenária fortaleza, beneficia de restauro, aproveito lançar um SNF (Salvem a Nossa Fortaleza) , procurando que seja lido e alguma alma com poder e apego à memória colectiva se lembre de exercitar a magistratura de influência positiva junto dos poderes político e económico ou mesmo leve mão ao bolso para que se  preserve a Fortaleza de Kalulu.
Já perdemos, com esse andar despreocupado, o Fortim da Kibala cujas pedras foram emprestar força aos alicerces das casas de adobe, não faltando muito para que o mesmo destino seja dado aos blocos que compões a Fortaleza de Kalulu.
Segundo o investigador Carlos Figueiredo, também ele um libolense a prestar docência em Universidades de Macau e Brasil,​ que se juntou a esse apelo, "...com a perda do Fortim da Kibala, infelizmente, apagou-se também uma página importante da História do Libolo. Na altura em que o fortim foi construído, a Kibala era parte integrante do Município do Libolo. No final do séc. XIX e princípio do séc. XX, a localização estratégica de Calulo foi importantíssima. Na Fortaleza de Calulo estava instalado o Posto Militar que funcionava como centro de todas as operações expedicionárias tanto na área do Libolo como nas circunscrições vizinhas da KisSama, do Seles e do Bailundo. O fortim da Kibala foi construído para dar apoio a essas expedições e servir como testa de ferro aos ataques dos nativos da região do Seles e do vale do Longa. O Município da Kibala só foi desanexado do Libolo em 1921, depois de concluída a pacificação da região".
Tornam-se, por isso, imperiosos a responsabilidade moral e o dever histórico-patriótico de todas as mulheres e homens conscientes de toda Angola que devem unir esforços para a preservação do nosso passado comum, em Kalulu e em outros cantos do nosso país.
 

quarta-feira, novembro 18, 2015

GENGIBRE MEU


Há alguns anos. Não muitos anos ainda, quando chutávamos despreocupadamente à bola de trapos ou outro objecto qualquer para aliviar a distância de casa à escola do povo, no dizer das crianças, eram as tias das panelas grandes e brilhantes ao sol de Abril e canecas, também de alumínio brilhante como nunca, quem vendiam kisângwa adocicada com que empurrávamos pedaços de bolinho ou galetes estômago adentro. Só elas também eram vistas a comprar e vender aos pedacitos o famigerado gengibre. As kotas e os tios que pegavam em pedaços de cola, carregada de acidez, ou gengibre ajindungado eram rapidamente rotulados de langas ou outro ganhavam outros epítetos menos honrosos.

- Esse kota deve ser retrô! (alusão aos retornados angolanos, depois de exilio em país vizinho) - Dizia-se em surdina ou num canto distante colado ao ouvido do companheiro.

- Xê pioneiro, cuidado com a língua. Se o mano te ouve vai te dar kibetu ou dar parte na tua mãe. Não queremos bandidos no bairro. - Advertiam as senhoras da Kisangwa, sempre maternalistas mas também policiais, vigiando-nos quase milimetricamente para não descarrilarmos.

Meninos da kangonya e diazepam como hoje quase não havia, tirando aqueles incorrigíveis pela simples censura colectiva, que eram já designados como #os perdidos gregos#, cuja surra do dia a dia  era para eles elogio. Esses sim, eram detestados pela comunidade e até mesmo pelas próprias mães cujo amor que diziam sentir era só de fingimento.

Nas caminhadas, o sol, a poeira, as basulas, só para aborrecer o amigo e companheiro quando se estivesse já próximo de casa, vindos da escola, caminhavam connosco abraçados. Era ao abeirar-se da porta do quintal que a basula ao companheiro se fazia presente, sendo mimoseado com um vai pra aquilo ou uma pedra a beijar o ferro duro do portão.

- Amanhã vou te apanhar na escola, vais ver só, seu feio e faquiri duma figa! - Consolava-se o ofendido. Mas tudo ficava por aí. O dia seguinte seria de outras cumplicidades na fila do apinhado depósito de pão, nas trambiquices da bola no pelado, das inconfessáveis praias no Bungo ou Chicala de que as mães raramente desconfiavam e da cooperação na resolução dos problemas matemáticos da tarefa escolar.

Naquele tempo, de pouco ter e muita procura do ser e da honradez, o lixo não era amigo. Não nos visitava tanto a ponto de connosco pretender morar. O consumismo e a descartabilidade estavam ainda noutros dicionários não acessíveis a todos os angolanos do cartão da loja do povo e das filas nos talhos. Pedaços de madeira descartados no serviço atendiam o carpinteiro dos banquinhos para as tias das kitandas e da Kisângwa à porta de casa ou da escola. Latas de leite eram carteiras quando não faziam panelas chiar nas casas em que a palha da serração fazia o papel de gás e carvão. Até as escolas tinham-nas em quantidade e qualidade que se traduzia nas marcas onde o nido se destacava.
- Xê, fila da goda! Vocês tomaram nido no mês passado? Tô pai já gasta nas lojas francas ou viajou pro estrangeiro? - Perguntavam os petizes  habituados a ver o colega sentado numa lata de marca corriqueira. A atenção dos rapazes, sobretudo, em relação às novidades dos colegas era tão grande que quem aparecesse com roupa ou sapatos novos era logo brindado com felicitações amistosas.
- Xeie, fulano chamou! São novos ou do Asão? Perguntavam, referindo-se ao mercado do Asa Branca, ao Cazenga, que se tornou célebre por aí ser comercializada muita roupa e calçados usados, doados por organizações não governamentais.

Os papelões tinham uma utilidade qualquer. O ferro, mesmo retorcido, servia para as faças fogareiros e outros artefactos. Os pedaços de chumbo também eram reciclados e davam forma a outros objectos como os que davam peso às redes de pescadores da saveia, matona e lambula. As latas de salsichas e de óleo maná (alimentar) serviam para candeeiros que se expunham em lojas de referência e cantinas, depois de passadas pela arte do funileiro. Até as garrafas de vinho e cerveja eram cuidadas para serem devolvidas inteiras ao revendedor e à fábrica quando não recortadas com engenho para servirem de copos.

A mizangala desocupada não se kangonyava ainda como hoje. Apenas  se kacilingavam (do umbundu kacilingi cimwe) os kotas sem arcaboiços para convencer as manas mais vistosas do bairro. Outros se kapukavam de reco-reco cinquenta ou búlgaro cem Kwanzas. Algumas manas sobradas, por causa da vida fácil com os cooperas regressados à estranja, se migostavam para prender os kotas regressados ou fugidos da vida Kwemba e que procuravam recuperar a vida perdida. Mas eram poucas as mulheres que se entregavam à vida fácil entretidas nas latarias dos cubilas e grades de cerveja dos francós das lojas francas. As jovens queriam e procuravam mesmo era homem para as manter e formar família.

- Vais me fazer pedido com todos os deveres? - Questionavam ao que o cavalheiro candidato respondia com acções e não com as palavras de hoje que o vento leva.

Fora do acompanhamento à kisângwa, os kotas não se gengibravam como hoje, ao que dizem, para calibrar o divumo (diminuir o tamanho do tanque) e aumentar a potência da torneira. Caminhavam sem esforço e nem reforço. Trepavam montanhas sem tração. Era a força das caminhadas longas, sem táxi nem dinheiro para autocarros que os fazia fortes e valentes. E conseguiam convencer e atender até a Zaida Kimbundaria do romance do Ismael Mateus. 

Hoje, tempos do corre-corre, do tenho e proponho, até ngongwenya de gengibre já há.
- Compra gengibre para não usar táctica do galo, subiu e desceu! – Convidam as vendedeiras espalhadas pelas ruas da urbe.

E lá vamos introduzindo na dieta um novo elemento ajindungado, mas também açucarado. É farinha de gengibre. É sumo de gengibre substituindo a kisângwa. É refogado com gengibre... E quão gostoso ele é?!

quarta-feira, novembro 11, 2015

MARCHAR PELA INDEPENDÊNCIA

 
Foto de Elizabeth Carvalho
Repousavam à sombra da árvore do velho Samanjata, onde habitualmente os jovens da aldeia iam beber conhecimentos. Gaspar e Rafael falavam sobre o país que caminhava para os 40 anos de independência.

- Ó Gaspar, apelou Rafael. Doutra vez, na igreja, te vi a marchar como se estivesses a ir para os céus. Caminhavas quase a deslizar como se fosses ser arrebatado e via-se a alegria na forma como entoavas o hino de marcha.

- Sim, Man Rafa, é verdade. Gosto de cantar o "okulonda osikata yenda kilu" (subir à escada que nos conduz aos céus) e sinto-me entre a terra e os céus. Respondeu Gaspar, um conhecido corista da igreja.

- Pois é Gaspar. Comigo acontece, sobretudo quando entoo Hino da República. Sinto-me como se fosse o dono do país. Aliás, o país é mesmo nosso!

Não tinham terminado os argumentos quando se abriu a porta do velho Samanjata, o coordenador da comissão de moradores, que lhes falou sobre o desfile cívico no dia da Independência.

- Bom dia meninos. Ouvi conversa boa sobre a igreja e o país. Ainda estava a me preparar, mas como coisa boa é para ser partilhada, acabei saindo já para não perder as vossas ideias. Menino bom é quem fala sobre religião e patriotismo. - Disse o idoso.

- Sim avô Samanjata. O Man Rafa disse que vai haver ensaio para marchar no dia da independência. Como ainda não ouvimos na Rádio, por isso mesmo é que passamos aqui para colher explicação do mais velho. - Expôs Gaspar, o mais novo entre os dois adolescentes.

- Pois é, meninos. O Camarada Presidente é quem orientou. Todos os angolanos que se sentem patriotas, todos os que gostam do nosso país e que estimam o sacrifício e luta dos que tombaram para que fossemos independentes, foram convidados a participar dos ensaios e do desfile cívico que acontece na Praça da República em Luanda. Vai haver muitos blocos. Nas aldeias que fazem mineração o povo vai fazer parte do bloco de Mineração. Nas aldeias que fazem agricultura e pesca, as pessoas vão desfilar no bloco correspondente, onde ficam todos os funcionários públicos de cada área.. Os polícias e os militares também vão desfilar.

- É verdade, avô?  Então faça já a inscrição dos nossos nomes. Também queremos participar dos ensaios e desfilar na Praça da República para homenagear o "tunda mindele". - Disseram os adolescentes emotivos, anunciando depois a noticia do dia de porta em porta.

E não foi em vão. A aldeia de Kindongo, no município de Kissama, esteve totalmente engajada nos ensaios que aconteceram no Estádio dos Coqueiros, em Luanda, e todos, incluindo o soba e o coordenador da comissão de moradores, estiveram prontos ao Desfile Cívico, ora caminhando, ora dançando, ora marchando com mão no peito, entoando o Hino da República. Até hoje, o assunto ainda é tema de conversas entre crianças jovens e adultos. Mesmo as crianças que ainda mamam também já vão recitando o "Angola Avante" para cantar e Desfilar nos cinquenta anos da Independência de Angola.

OBS: texto publicado na pág. 04 da edição do Jornal Cultura referente a 21 de Nov. 2015

domingo, novembro 08, 2015

REENCONTROS E DESENCONTROS

Nascia o mês de junho de 2005. Luanda transitava entre o calor do meio-dia e o frio da meia-noite. Viana, Terraço, tinha sido o destino depois de uma semana repleta de trabalho e provaçoes. Três colegas de serviço, em companhia da irmã de uma das co-laboradoras voltavam a Luanda sonolentos e cansados, depois de pé de dança para os dotados nesta vertente lúdica e alguns tragos para outros. O Vemba tinha aproveitado fazer as suas, sempre oportunas, reportagens que alimentavam a sua página cultural nos noticiários nocturnos da estaçao radiofónica LAC. A viagem de ida, numa mini-coluna de duas viaturas e sete pessoas e o convívio até ai corriam à feição.

- Sigamos com calma (vagar)e os condutores, Vemba e Adilson, não devem ultrapar os cem quilómetros horários. - A voz Soberana fazia-se ouvir, apesar de meio turva, dada a madrugada. Reclamava caldo regado para às seis abrir a emissão da 995, também baptizada como Estaçao Azul.

Já a primeira das duas viaturas se tinha afundado no horizonte visual. A cidade sonhava ainda, antes de acordar.  Mal se fizeram anunciar as luzes da Avenida Deolinda Rodrigues, o Kia Avla, em que seguiam os tres mais uma, decidiu ziguezaguear, levando-os à assassina árvore engordava e se pintava de sangue nas barbas do que é hoje o Comando Provincial da Policia de Luanda.

Era ainda no tempo das vias estreitas, entremeadas por um largo e longo "chourição" arborizado que separava os veículos a caminho de Catete e aqueles que visitavam a capital. Do outro lado da via, qual Lucifer vestido de branco, com os braços abertos, aguardava-os a Snt'Ana sepulcral antro com seus lúgubres lençóis.

- Sono? Embriaguez? Imperícia? Outra coisa não verbalizada? - As perguntas gritantes e mudas permanecem. Quem as podia responder já cá não está. Porém, a embriaguez e outras coisas meditadas em surdina posso descartar.

- O rapaz que girava o volante e pedalava a velocidade nao era de trambiquices nem bebedices. Era rapaz de muito juízo na cabeça. Só podia ser sono. Embriaguez nao. Malandrice também nao. – Declararam as velhas e kotas do bairro que o viram nascer e crescer.

De repente, tão rápido quanto o acidente, curiosos, polícias, bombeiros e jornalistas fizeram-se ao local, qual maratona sabática em dias de campanha eleitoral. Choveram apelos na rádio Kyanda para que se mobilizassem meios e homens para salvar os infelizes.

- São jornalistas. Salvem os nossos colegas. - Verberou-se suplicante nos 999 de frequência e nas bocas atónitas dos presentes e ausentes preocupados.

Juntaram-se sinergias para o desencarceramento dos ocupantes do veículo encolhido e abraçado à árvore máscula. Três dos quatro corpos ensardinhados suplicavam socorro às vidas que rapidamente eram sugadas pelo abismo faminto.

Machados, serras, tudo que os bombeiros usam e o povo guarda no escuro para se defender na hora do "dá-me teu suor", pouco servia para cortar o volante, o tejadilho e desfazer as portas. O motor recuado no embate contra a árvore arrastou tudo para trás.

- Por favor, estiquem o carro porque temos os pés longe dos corpos. - A voz Soberana, ainda distante do seu estado físico real, fazia-se suplicante.

Ouvida, o  Avla seria esticado, deppois de amarrado de frente, à mesma árvore que também sangrava, e puxado pelo camião dos bombeiros.

Antes de terminar o desencarceramento, já um dos sinistrados, Vemba,  desfalecia no terreno. Não se ouvira dele sequer um ai.

Chegados ao Maria Pia, levados em duas viagens pela carrinha da patrulha policial, primeiro os ocupantes do lado esquerdo e depois os do lado direito, os companheiros de viagem e desgraça encontrariam Leonardo Inocêncio, jovem chegado das terras de Fidel, mãos afinadas e firmas no infalível bisturi. Sem ordenado ainda, mas com a mente casada com Hipócrates, mostrava aí a sua proeza altruística.

- Doutor será que ainda viverei? - Perguntou-o o Soba preocupado, depois de confirmar o finamento do colega e amigo Vemba.

- Vives, meu amigo. Vives, podes crer! - Respondeu convicto, o cirurgiao, no fim do seu trabalho.

Dez anos depois, sem que as imagens faciais pudessem ser revisitadas, ei-los juntos, a frequentar um mesmo curso destinado a administradores da Função Pública. Em "conversa puxa conversa", médico e paciente revivem o dia do acidente e de imediato se identificam.

- És tu que estavas naquele acidente de jornalistas? – Ingadou Leonardo.

- Sim. Sou eu doutor. Éramos quatro. Morreram duas pessoas e sobreviveram duas. - Explicou o sobrevivo Soba.

- Por favor, quero confirmar. Vamos sair e mostra a cicatriz. - Orientou o cirurgião com a mesma autoridade que usa no Hospital perante os pacientes.

Mostrada a cicatriz abdominal, o "kimbanda kya Putu" voltou a questionar: - E qual dos pés sofreu cirurgia?

- O esquerdo, Doutor  Inocêncio. - Confirmou o Soba, mostrando também a cicatriz na perna que tinha o tornozelo quebrado.

- Pois é. És tu mesmo. - Confirmou o médico. Abraçaram-se aí mesmo, no corredor longo e iluminado do edifício.

- É meu paciente. É verdade. - Disse Leonardo à vintena de colegas que aguardavam pela perícia. - "A ferida é minha". Conheço as minhas impressões. - Ironizou.

Abraçaram-se novamente perante o olhar pasmado da turma e do professor. Choveram agradecimentos e recomendações ao médico anestesista que com Leonardo trabalhou na madrugada daquele primeiro  de junho.

- Obrigado Dr. Leonardo Europeu Inocêncio, por ter, com sua perícia, impedido que o abismo me sugasse ao seu leito negro.

 

segunda-feira, novembro 02, 2015

REVISITANDO O KWANZA-SUL

A nova ponte sobre o rio Kwanza
Entre colinas, que se abrigam à sombra da montanha coberta de nevoeiro madrugador, serpenteia preguiçosa a EN120. De longe, se parece a um riacho que penetra atrevido as duas cochas bafejadas de águas límpidas e refrescadas pela sombra de árvores ribeirinhas. A localidade que já devolveu muitas vidas humanas ao pó da terra responde pelo nome de Bica d´água, no trajecto entre o desvio de Kalulu à Kibala. A estrada, na EN120, é a mesma que nos leva ao Huambo, saídos de Luanda, passando pelo Dondo. Bica d´água é um local da comuna da Munenga (Libolo) em que foi  erguido, no tempo colonial, um bebedouro (água bruta captada dum riacho procedente da montanha). Era e ainda é um local para parar, encher os reservatórios, os radiadores das Bedford e saciar a sede humana.

Dada a acentuada descida de 10%, acompanhada de curvas e humidade no pavimento, o local foi, desde sempre propício à ocorrência de sinistros que ceifaram muitas vidas. Basta ver as dezenas de carcaças de automóveis que repousam nas duas encostas ravinosas da estrada.
Pensando na prevenção da vida, o Serviço nacional de protecção civil e bombeiros têm no local um Posto de Apoio e Socorro aos Sinistrados. Nada melhor do que neste local que fica a 50 quilómetros da ponte sobre o rio Kwanza e uns 25 da ponte sobre o Longa, no itinerário Dondo-Kibala.
A presença da polícia de trânsito e bombeiros no local serve de elemento inibidor aos homens do volante, sobretudo aqueles que têm maior propensão a acelerar do que a travar.


Juntando margens do Kwanza entre Lubolu e Ndondu
E sigo até Kibala onde sou presenteado com os edifícios em escombro que se tornaram no cartão de visita da "cidade" de Kibala (K-Sul). A guerra pós independência pôs tudo abaixo e o que resta são escombros e edifícios fortemente estropiados. Num "kaprédio" que  ladeia a estrada funciona, na parte inferior, o Restaurante Kandimba. Ao lado foram, felizmente, erguidas bombas de combustíveis pertencentes à Sonangol que possuem uma loja de conveniência e um restaurante, conferindo uma imagem modernizada ou no mínimo mais alegre à urbe. Contou-me o meu amigo Pastor Vinte e Cinco que em 1974 foi atribuída a categoria de cidade à vila de Kibala, feito publicado em uma portaria de então. A ser verdade, tal facto só se podia justificar com a existência, já naquela altura, de programas de desenvolvimento e crescimento da "cidadela", embora tivesse apenas uma rua a cortá-la em dois blocos.
Kibala é uma bifurcação, agora em forma de X: à direita (sentido Luanda Huambo) está a estrada que nos leva à Gabela-Sumbe. À esquerda a estrada que nos leva ao Mussende-Malanje. Para norte segue a estrada que nos leva ao Dondo e Luanda, sendo que para sul se estende a rodovia que nos leva ao Wako-Kungo e Huambo, passando por Katofe que era, à época, uma mui crescente vila agrícola que estava a ser erguida por camponeses madeirenses (Portugal) ali aportados em princípios da década de  60 do século XX. Katofe fica a aproximadamente 10Km de Kibala e está hoje em escombros que se tenta reerguer com muito custo. Quem decretou a vila de Kibala como cidade em 1974 podia ter a sua razão de ser. Se o país não tivesse mergulhado numa guerra destruidora, Kibala seria hoje uma média ou mesmo uma grande cidade, pois já contava com indústria nascente como a moageira CAIMA que transformava o milho em farinha, uma das principais culturas da região. Lembro-me ainda que havia uma unidade de empacotamento de arroz que era igualmente produzido na região, com destaque para a Fazenda América e outras de que hoje só restam os nomes.
A energia eléctrica era garantida pelas  mini-hidrica de Katofe (EN120) e a do Kariango (EN240) que tinham planos de ampliação. E, como os tempos são de mudança, indo ao encontro daquilo que já devia ter acontecido, o Pastor Vinte e Cinco, kibalista bastante respeitado na região e em Luanda, contou-me ainda que tomou conhecimento de um plano director para o desenvolvimento infra-estrutural da Kibala, de modo a resgatar o seu estatuto de cidade atribuído ainda pelas autoridades coloniais. Segundo o reverendo metodista, os ocupantes dos imóveis estropiados têm um tempo para os reabilitar ou o Estado os vai deitar a baixo para nos espaços serem erguidas outras infra-estruturas. Bem pensado! Auguro que da visão à acção não haja um grande defeso.
Virando para o lado em que nasce o sol, está a Estrada Nacional 240 na província do Kwanza-Sul. Embora o traçado fosse pré-independência, nunca a rodovia chegou a ser asfaltada, não passando de uma picada sofrível nos anos passados, com enormes buracos e lamaçal a que se juntaram dezenas de pontes danificadas por acção humana e do desgaste natural.
A guerra civil (1975-2002), que quase tudo dizimou, impossibilitou até as intervenções paliativas e, pior ainda, porque a zona esteve sempre sob domínio dos guerrilheiros rebeldes que mesmo se servindo de meios rodantes, nos últimos dez anos do conflito, nunca poupou as infraestruturas, para não falar da destruição de novas rodovias nas zonas onde era influente e até explorava recursos naturais estratégicos.

Terminado o flagelo, a reconstrução chegou a todo o lado e a antiga picada, elevada agora a EN 240, beneficia de serviços de alargamento da plataforma, construção de pontes e aquedutos, bem como a sua asfaltagem.
Mais de uma centena de quilómetros (Kibala-Kariago-Projecto Terra do Futuro e adiante) possuem já novas pontes dimensionadas ao novo padrão das Estradas Nacionais e asfalto de qualidade aceitável, restando cerca de metade da empreitada, até Mussende. Embora o trânsito automóvel no trajecto seja ainda de contar aos dedos de uma mão durante todo o dia, dado o facto de a estrada asfaltada ser ainda do desconhecimento de muita gente, aqueles que por lá transitam estão satisfeitos e "louvam a iniciativa" governamental que poupa tempo, esforço e muitas vidas.

Quando estiver terminada, a EN240 que se junta na vila da Kibala à EN120 (Alto-Fina-Huambo), vai ligar Kibala à vila do Mussende e, atravessando o rio Kwanza que já possui uma nova e enorme ponte, estender o trafego rodoviário até à província de Malanje e concomitantemente à zona Leste do país.
Já de regresso a Luanda, ainda entre terras do Libolo e de Kambambe, cortadas pelo caudaloso Kwanza que se estende do Citembu à foz, no Atlântico, estende-se um novo tabuleiro sobre o rio. A obra ainda é pouco conhecida, pois não tem merecido por parte da media a divulgação que se impõe, nesses dias em que se mostram os ganhos da independência e da paz efectiva.
Fortaleza de Kalulu
Quem circula pela EN 120, do Dondo a Kibala, pode encontrar a obra a menos de um quilómetro da actual (velha) ponte também conhecida como a do "Kyamafulu", local em que se faz a dragagem das areias na zona que serve de albufeira da alteada barragem hidro-eléctrica de Kambambe. Ama construtora brasileira realiza a empreitada que vai conferir melhor fluidez ao tráfego rodoviário sobre a ponte, uma vez que a actual não permite a passagem simultânea, em segurança, de dois veículos pesados.
Um olhar atento ao que se desenvolve na região leva a inferir que quando estiver completamente cheia a albufeira do AH-Kambambe, cuja barragem foi alteada em mais trinta metros, a água poderá beijar a base do tabuleiro da ponte do Kyamafulu ou, não tocando a parte transversal da estrutura, estar muito próxima dela. Terá sido isso o que pesou na decisão de se erguer uma nova passagem que entrará em cena dentro de algum tempo, podendo ou não a sua inauguração coincidir com o advento da renovação do ciclo político em 2017.

Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense a 20 de 11.2015