Translate (tradução)

quinta-feira, abril 28, 2022

UM "CARAPAU" NA CONSOLA

 Era um dia de distribuição de peixe "fresco" que, na verdade, era congelado e raro em Kalulu. O ano, que quase se perde na memória, era 1988. Para quem fosse em visita, a vila estava cheia e agitada. Para nós era apenas "dia do peixe fresco" que faria diferença no almoço e na janta durante a semana. A kizaka, a kabwenya e outros condutos vezeiros estariam, por dias, em gozo de férias, dando lugar ao peixe "cozinhado", grelhado e assado, até acabar, pois poucos tinham meios de conservação.

Calhava vez sim, meses nunca, a chegada da câmara frigoríficas com peixe congelado que era distribuído pelas delegações municipais, empresas públicas, empresas privadas reconhecidas pelo governo e destes para as secções e destas aos trabalhadores.​
O autor desta prosa vivia com um primo professor primário na escola nº 3, na Banza de Kalulu. Por isso, estando ele a ministrar aulas, orientou o "irmão", que já era conhecido dos colegas, para ir à fila e receber as unidades que lhe eram "de direito". Vivia-se ainda o tempo da igualdade entre os iguais, embora havendo já diferença entre os que se mostravam diferentes do "povo em geral".​
Quem vai hoje a Kalulu, encontra, depois da Pensão da Tia Ká uma entrada. Era um largo quintal onde estacionava o camião frigorífico em que eram retiradas as caixas de carapau congelado, distribuído às delegações municipais, administrações comunais e outros organismos públicos e privados. Recebidas as malas, encontravam-se outros espaços para o retalho equitativo pelos
trabalhadores, salvaguardo o estômago largo dos delegados, comissários, chefes de secções e outros que recebiam mais do que a maioria.
Como em todos os tempos, Kalulu já tinha os pequenos "gregos" que andavam com uns artefactos de madeira com um um pico de metal com que "pescavam" nos locais de distribuição.​ Fazia sol e um pouco de poeira. Um dos grupos que procedia a abertura das malas de peixe congelado e distribuição unitária abrigava-se no passeio, debaixo da consola do edifício que comportava a EDIL (foto), hoje Pensão e restaurante. À frente estava o PCU (Posto Comando Unificado), cujas instalações acolhem o comando municipal da polícia.​

Um rapaz desconhecido controlou a desatenção dos distribuidores e receptores de carapau e, sem ser visto, pescou com o seu artefacto um peixe, colocando-se em fuga no meio da multidão.
Um kota, daqueles reguilas que não gostava de perder nenhuma contenda, pôs-se ao encalce do rapaz, desferindo-lhe um veloz pontapé que falhou no menino e acertou no vazio. O sapato, único do dikota, que era funcionário público, voou e encontrou descanso no cimo da laje consola.​ As horas que se seguiram foram para o mwadyakime encontrar uma escada que lhe permitisse reaver o pé direito do sapato castanho.
A rapaziada "pescadora" ficou dividida entre o olho no peixe e a estiga ao kota que perdera o sapato camossim​ por causa de um carapau.​ De lá em diante, os "sapatos de recreio com duas flores", que vinham da Jugoslávia, passaram a ser chamados "carapau".

Obs: publicado pelo Jornal de Angola de 17.04.2022

sexta-feira, abril 22, 2022

TRAVESSIA LESTE

Rio Longa, 06.03.2022 - O local fotografado fica à montante da "ponte do Lususu" que liga o Lubolu à Kibala. Levado pela curiosidade e exploração turística da região, meti-me, pela primeira vez, pela rodovia asfaltada (depois da guerra) que une os dois municípios do Kwanza-Sul, a leste da EN 120.

Até aqui, tinha parca memória daquela via que me levaria à aldeia de Kisangu onde vivia o meu homónimo (irmão do meu pai) que terei visitado em 1977. Lembro-me apenas que fui carregado ao ombro do meu pai e a aldeia tinha uma lagoa por perto, onde apareciam patos selvagens que chamávamos por pato d'água.

Depois do falecimento do meu "pai pequeno", na década de noventa do século passado, o filho Manuel Luciano (também finado) mudara-se para Kisangu, onde deixou a viúva e o filho.

Saído do Kisongu, juntei ao útil o agradável: conhecer a primeira estrada e primeira ponte sobre o rio Longa, por onde se trafegava de Luanda à Nova Lisboa (Huambo), passando pela ponte Filomeno da Câmara (travessia sobre o rio Kwanza), rio Longa (ponte que antiga na imagem), Kibala-Santa Comba (Cela) e daí em diante. Foi também uma oportunidade para conferir as imagens que conservava da visita ao Kisangu e ver os parentes.

Sendo a primeira passagem e sem estórias e história sobre o tabuleiro, a visualização de destroços no rio forcou a paragem.
- Ela foi destruída pelos maninhos na guerra de oitenta. - Contou o ancião Kime que pescava à linha no rio Longa.

Engoli desapontado com os autores, mergulhando num caudal de interrogações:
- Por que a destruíram, se ela até andava bem escondida numa picada remota?
- Quanto dinheiro se terá gasto na sua substituta?
- Por que não se pouparam coisas que a todos faziam e fazem falta?
Continuei a marcha, num asfalto sem mácula. Dois quilómetros depois, parei para perguntar se já estava no Kisangu, ao que as senhoras que marchavam de regresso para casa disseram sim.
- Ka mon'Andono K'aphuku. Luciano Kajila nduku yami¹.- Apresentei-me, ao que me indicaram onde vive a viúva e o filho do meu finado primo Manuel Luciano.
Uma casuarina de flores vermelhas convidou-me a adentrar uns 15 metros que separam o conglomerado habitacional familiar da rodovia. Plantar flores é um hobby da minha família paterna e "não podia ser outro lugar". Falei para a mulher que me acompanhou na viagem.
- Como é que sabes que é aqui a entrada?
- Vamos. Eu sei que o Manuel gostava de Plantas. É um hábito de família.
Encontrámos o Mingo, meu sobrinho a colocar barro numa parede feita de adobes. A casota tem cobertura de chapas de zingo.
Apresentou-me a sua avó materna que fomos saudar, apresentando-me num Kimbundu aportuguesado e usando o mesmo discurso. Sou filho de António e chará do finado Luciano.
A idosa, já com pouco foco nos olhos, passeou a memória pelo tempo. Vieram-lhe as imagens e as conversas. Agradeceu a visita surpresa e desejou-nos boa viagem.
Já a sair, depois de ter deixado ao sobrinho umas patacas, surgiu a mãe dele que recebera recado de que iam pessoas num carro à casa dela. Chegou ofegante. Quase não conseguia falar. Não lamentou a nossa ausência, o que era de esperar. Afinal o Kisangu já não fica longe. É fora do tráfego normal (EN 120) mas tem também estrada asfaltada e a ponte que fora destruída já foi reposta há maus de dez anos. Aliás, foi isso que levou alguns dos Kisangwistas, que se encontravam refugiados em outras paragens, de volta à aldeia natal.

A "cunhada" queixou-se do miúdo que, sendo órfão de pai, decidiu arranjar mulher.
- Não há problema, cunhada. Vamos ajudar. Ele é teu filho único e precisas de alguém por perto para se ajudarem. Não fez mal. está é a fazer bem. Tinha já deixado umas moedas mas, agora que me falou do pedido, acrescento mais essas moedas para ver se ajudamos na compra das coisas do alembamento.
Vieram-me à mente imagens de conversas (poucas) com o meu homónimo e de meu primo Manuel Luciano, da vez que fora rusgado pelas FAPLA e levado a Kalulu. - Os olhos quase se emocionavam e despedi-me prometendo não desperdiçar a próxima oportunidade para visita-los.
- Já sei onde vocês estão. Fiquem bem, cunhada!
Com a estrada a inclinar para Oeste, atingimos a EN 120, próximo de Mbumba-Alunga, onde se instalou uma grande empresa agrícola. Lá vive a irã mais nova de António Fernando, meu finado progenitor. A terceira paragem foi na aldeia Xele (Shell), mais a norte, onde vive uma das minhas irmãs, a única que decidiu viver na Kibala. Quer a tia Kambandu, quer a Júlia tinham ido às lavras.
Com o sol a afundar-se no Atlântico, Luanda ficava a 4 horas.

=
1- Sou filho de António Kaphuku. Lucianop Kajila é meu homónimo (chará).

Publicado no Jornal Cultura de 11 de Maio de 2022

sexta-feira, abril 15, 2022

UM FANTOCHE NA FARRA

Havia semana e meia que o espião terrorista estava misturado entre as gentes, comendo e bebendo com eles, ouvindo as conversas, indagando e sendo respondido e, sobretudo, tomando as notas, corrigindo o "tiro" e planificando novas vias de entrada e saída.

O movimento e movimentação regular de tropas republicanas levavam, às vezes, as pessoas, até os mais avisados e treinados pela herdeira da pide, à desatenção, fazendo com que os espiões "terroristas", fardados com uniforme republicano ou à paisana, penetrassem em surdina e se instalassem entre a população.

Sorte madrasta teve o Nuryeji. Vivia a sua segunda semana no Dundo, de bar em bar e de festa em festa. Exibindo, às vezes, o seu walkie talkie, era um pequeno mwata aos olhos dos incautos convivas, pagando cigarros, walwa e chafurdando o que podia.

A cidade, abastecida de géneros alimentares pela empresa kamanguista, era das mais importantes e recebendo dirigentes da capital e de urbes vizinhas a sul, sudeste e sudoeste. Até os do Comité Central, que politicavam na grande avenida das heroínas e do carro de assalto, mandavam requisições disto e daquilo.

Por essa altura, os terroristas faziam já "visitas" de sabotagem em quase todos os projectos, roubando comida, danificando o transporte de energia e apossando-se de bilhas de concentrado. Estávamos a viver a década de oitenta do século XX. Já tinham surpreendido e neutralizado a guarda e a gestão de um projecto, queimando um Hércules que pousara carregado de comida e sobressalentes.

Um dia, conto a estória dos "escapes rotos" por causa das bebedeiras dos terroristas que confundiram vinagre com vinho branco. Leram vino. Era italiano. Bastou beberem-no com gula de kaporroteiro sedento para diarreiarem dias e noites sem tréguas.

O terrorista Nuryeji estava camuflado numa festa da cidade. As pessoas conheciam-se e os civis toleravam os militares. Ninguém conhecia o terrorista. Por isso, alguns olhos, na festa, estavam postos nele, embora, treinado, se calhar, na bófia israelense, fosse de poucos falares e comedidos movimentos corporais.

Foi que uns akwenze decidiram dar-lhe de beber.

- Beba Camarada, não se acanhe!

Entre a indelicadeza que podia acirrar as desconfianças e a aceitação, o terrorista preferiu a segurança.

Meio copo, mais um copo, mais copo e meio, até que a bebida lhe aqueceu o corpo, ao ponto de meter-se na batucada, à roda dançante do cinguvu e ngoma ya phutu.

À medida que se ia contorcendo, com aquele dançar estranho que borrifava as noites sunguradas de Likwa, as calças do fantoche foram subindo e as peúgas exibindo o macho da galinha.

Alguém atento soltou aos ventos "fantoche na roda!" Instalou-se grande algazarra.

- É fantoche!

- Agarra fantoche, prende fantoche, mata fantoche!

Bem tentou ainda dar um pulo e marcar alguns passos para se desfazer na mata que era a sua predilecta cidade. Porém, os homens em todos os lados fizeram-se floresta e cumpriu-se a sentença:

- Amarra fantoche, prende fantoche, mata o fantoche!

Caído em desgraça, toda a sua vida e conexões foi, depois, exposta pelas vozes que desfilavam na frequência do walkie talkie disfarçável que levava preso à cintura.

Passaram semanas, meses, se calhar, e não se falou em todo o nordeste de outra coisa que integrasse a estória daquele fantoche apanhado na farra.

Publicado pelo Jornal Cultura, 16.03.2022 e Jornal de Angola de 20.03.2022

sexta-feira, abril 08, 2022

NUM "MATONGÊ" DAS ARÁBIAS

Que o indiano é comerciante e emigrante por excelência, você, eventualmente, já sabia. Que os "zazás" não se lhes ficam atrás na kandonga e na exportação da sua cultura alimentar para aonde quer que estejam, também é líquido. A novidade deve ser o "casamento" entre o comerciante indiano e a tia congolaise que confecciona e vende fufu, sakamadeso e makayabu.

A geografia aponta para Deira, uma zona comercial do tipo São Paulo de Luanda ou Hoji-ya-Henda dos anos 90/2000. Aqui, os indianos, paquistaneses e outros "eses" ficam quase num "chega-chega" à minha lojeca, com produtos sem preço que vendem ao critério da pressa ou desatenção do putativo cliente, sobretudo na hora da pausa para o almoço e ou reza muçulmana em que quase tudo fecha.
Uns até chegam a fechar os clientes na loja para melhor os convencer a comprar e ou desistirem de perguntar/procurar por preços mais convidativos.
Mas deixe-me narrar o "matongê".
A fome daquele dia e hora era intensa e não havia mais tempo a perder. Quando o vendedor de periféricos electrónicos nos abordou, apontámos-lhe apenas a boca e a barriga, o que o levaria a perceber a nossa angústia e desistir, temporariamente, do seu "come in, i'l give you a very good price".
- We want eat. - Falei-lhe.
O homem olhou para nossa tez amelaninada e terá também medido o "volume" da nossa fome.
- Came on. I will show you where you can find what you need", disse, num inglês de tom arranhado e de fácil compreensão para um beginner.
Atravessámos um prédio na diagonal, adentrámos outro, subimos num elevador e no terceiro piso, que se parecia a uma vivenda, adentramos um restaurante(?) sem o cuidado que os asiáticos e europeus conferem a lugares para servir comida. Parecia algures no Palanca e tinha de tudo quanto a foto mostra e muito mais: cabritê, sakamadeso, mfúmbwa, fufu, mKaybu, peit'alto, carne seca e, se calhar, até carne de "primo" e makoso!
Por mais caricato que possa parecer, enquanto levávamos ao estômago as "bolas" de fufu, embrulhadas em folhas de maniôc, o comerciante espreitava de cinco em cinco minutos, apelando que não deixássemos de passar pela sua lojeca de bujingangas e outras modernices de curta duração e serventia.
É como se pretendesse deixar clarificado: mostro-vos a comida de vossa terra mas tendes de deixar moedas no meu mealheiro!

sexta-feira, abril 01, 2022

SOMEWHERE IN AFRICA WITH INDIANS

- Hello! You look like south african. Where are you from?
- Not South Africa. We are from Angola
- Oh! Angola. You've a very long war. How many Savimbi have in Angola?
- Only one.
- Oh! only one?! He's fighting, fighting not stop. He destroyed my business in Kwandu-Kuvangu and Moxiko. Why you don't put hin in a container?
...
In another East African country, an Indian, seeing that his wife was in a terminal pregnancy, decides to take her to Daman for delivery.
- He's not my son! - He exclaimed grumbling to see the baby full of melanin, while the woman swore and cried to all the saints, angels and archangels that she would never betray him.
The hospital advises on DNA testing, and both the accusing husband and the wife accused of "androidism" constitute attorneys.
- Let us put it clear. - He announced, while rehearsing the sanction.
Hours later, a little crestfallen, his lawyer arrived.
Doctor, this baby is your 99.99 percent.
- You are telling that but I don't believ. Look at me and look at her mother from her. We are yellow and baby is black. It isn't possible. - He sustained.
- But, why, Doctor, do you think it's impossible? If DNA test says that is yours? - Asked the lawyer perplexed.
- Pay attention! - He appealed, justifying then:
- when you plant tomato you get tomato. You don't get piri-piri. Isn't it? Why me and my wife yellow we have black son?
After all, it turned out that he was of black descent!
Photo: flying over Mbuji-Mayi (DRC)
Pode ser uma imagem de texto