Translate (tradução)

sábado, dezembro 29, 2018

NO REDUTO DE BEN BELLA

FANTASTIC! A expressão não é minha, nem serve para adjectivar o que pude ver. Apenas um letreiro que me cruzou os olhos quando percorria a cidade que se estende longitudinalmente pelo mediterrâneo, mirando de longe as homólogas europeias de França, Itália e Espanha, de quem rouba e dá a roubar o engalo, a beleza e a limpeza.

Argel tem uma marginal que conta a história de um passado berbere, colonial francês e luta pela independência conseguida à força do fuzil. Comandou a epopeia Ben Bella.

Em relação a Luanda, entre plágios e semelhanças, há também analogias. Em Argel, o comboio, paralelo à avenida marginal, é metro de superfície. As carruagens são limpas. Nas paragens há ordem e a ilustração conta história. Os capinzais recebem tratamento permanente. Os descampado de Luanda, são, em Argel, hortas para levar legumes à mesa. A cidade cresce. Vê - se. Túneis, undergrounds, novos viadutos, tijolos a desafiar em os céus, e muito mais. Os zungueiros inexistem. O mercado está regulado e formalizado. As árvores, muitas, recebem todos os dias o rei sol que obriga lentes com filtro. Há porém engarrafamentos em horas de ponta matinais e vespertinos, apesar de abundantes nós rodoviários, passagens superiores para pedestres, túneis, viadutos estradas largas (se comparadas as luandenses) e conservadas.
- Por que será? Deficiente rede de transportes públicos o que faz com que muitos tenham de se deslocar aos seus afazeres usando carros particulares?
- É e não é. Os munjahidines (antigos Combatentes) estão a promover uma manifestação e a condicionar o tráfego. É uma das causas. Porém, o congestionamento também faz parte de nossas vivencias", razão pela qual, todos os anos há novas soluções para descongestioná-lo. - Respondeu-me o jovem chauffeur.
Um simples detalhe salta à vista: enquanto eles, há muito, vêm combatendo os buracos para que os "turismos não se vejam impossibilitados de trafegar pelos buracos, os nossos pensadores do passado, alguns com passagens por Argélia de Mohamed Ahmed Ben Bella, optaram por comprar carros cada vez mais robustos e de cilindrada elevada para contornar buracos. Coisas d'aqui!


Publicado pelo Jornal de Angola, Out./2018

sábado, dezembro 22, 2018

OS SEM PASTA NO EDIFÍCIO PÚBLICO

 Há dias em que o indivíduo não precisa abrir a boca, nem aprimorar a audição para ouvir "ouvir" coisas.
Acordou cedo, não tanto cedo quanto habituara a sua família, mas os galos ainda se desafiavam no canto.
Abriu a banca e o primeiro documento que lhe apareceu pela frente foi um antigo cartão de visita com mais de 15 anos. Passeou nele os olhos, quase soltou lágrimas de saudade, e recebeu a negação.
- Não és mais editor dessa rádio, faz tempo.
Desconfortado, abriu a segunda gaveta onde normalmente ficavam as esferográficas. A mão foi ter a um crachá.
Puxou-o lento. Evitou lê-lo mas a mensagem já estava descodificada.
- Chefe de...
- Chefe de quê? Eu? Beliscou-se. Quase a perder ânimo, pegou uma velha agenda e meteu-se a caminho da garagem. Qual seu espanto ao abri-la?
Um cartão de visita, de uma empresa falida, apregoava:
- Sócio...
-Não. Não pode ser. Hoje deve ser dia de azar!
Ligou o carro. Quase sem ânimo, ajeitou o cartão no casaco. Os olhos voltaram a anunciar o que menos pretendia ouvir. Era um papel que atestava a quem o carro fora emprestado.
- Director de...
- Director de quê? Não sou mais. O ministério inexiste!..
E agora?!
Meteu-se pensativo pela estrada. A primeira saudação que recebeu de alguém, numa superlotada paragem para táxis, foi "bom dia chefe, uma boleia, se faz favor!"
Imobilizou a viatura dez metros depois para despistar a multidão que julgava ser daqueles nganduleiros desavergonhados.
- Carro do Estado não é para kandonga. Pensou e acabou mesmo por dizer, ao ver viaturas top de gama, eventualmente pertencentes a órgãos da administração ou empresas públicas em serviço ocasional de táxi.
Negou aos outros interessados na viagem a preço e levou a colega.
- Bom dia chefe, mais uma vez. O director é hoje minha tábua de salvação. A chefe está má. Só tolera trinta minutos de atraso. Aquela senhora deve estar a entrar para a menopausa. Está muito ranhosa e eu que também sou outra prefiro cumprir o que ela quer. - Boatou a senhora.
- Bom dia dona Kuri. Grato pela saudação e pela preocupação em atender o que diz a legislação da função pública. Um dia será também chefe. Aliás, já foi chefe de repartição e deve saber como fica o líder com processos pendurados, o chefe imediato a buzinar e os liderados ausentes. Já esteve nessa pele, com certeza!
- É por isso mesmo que já não quero ser chefe de nada. O importante é a minha subida de categoria. Já estou na carreira de técnica superior. A diferença de salário com os chefes não é muita.
- Ainda bem que assim pensa. Influencie positivamente os seus colegas. Não desista nunca de praticar o bem. Basta pensar no que sofre quando vai procurar outros serviços. Isso é que temos de mudar.
- Obrigada meu director. Você é muito boa pessoa. No trabalho e fora dele. Muitos assim, desculpa ainda, Director, são poucos com juízo e capacidade de dar conselhos até às mais velhas. Espero que fique muito tempo connosco e suba na chefia.
-Muito obrigado dona Kuri. É uma pena que o ministério que me contratou foi extinto. Ganha-se pouco financeiramente, mas aprendo muito com as pessoas com quem trabalho e interaja todos os dias. Já não sou director de nada. Sou apenas um técnico comprometido com a coisa pública, com a mesma motivação como se fosse o meu primeiro dia de trabalho.
- Mas os outros que até são do quadro já não estão a trabalhar e esperam por segundas ordens em casa.
- Sim. Noto. Mas eu vim com uma missão. Trabalhar. Não posso ser devolvido aonde fui requisitado com atestado de incompetência ou irresponsabilidade. É isso que chamo Espírito. De missão. Sua preocupação em chegar cedo e "aturar a chefe" é também espírito de missão. É o que dizemos quando saímos de casa: "o papá ou a mamã vai trabalhar". E os filhos orgulham-se disso.
-É verdade, chefe. Com cargo ou sem cargo, aqui ou noutro lugar, você é pessoa que inspira.
Oito e um quarto. Chegaram ligeiramente atrasados. Mas foram os primeiros a transpor o portão do edifício.

Publicado no Jornal de Angola de 28.10.2018

sábado, dezembro 15, 2018

MANGODINHO NO L'AMITIE

Antes mesmo de Mangodinho ser a pessoa que é hoje, dotada de esperteza, sabedoria ancestral e conhecimentos da ciência moderna, o homem já teve umas "burrices" de lhe espetar uns cafriques em dias de hoje. Valeu-lhe a esperteza que os indivíduos do Lubolu nascem com ela, desde o ventre, pré - Kabanga até à universidade da vida.
No ano em que a OUA decidiu fazer um encontro entre as comunidades que mais conservam os (mores) hábitos e costumes, Angola fora seleccionada a enviar participantes ao evento, representando diferentes regiões e ambientes etno-culturais. A Mangodinho, que ainda nem sonhava sonho de ser soba, calhou a sorte. Foi representar o Kuteka, cuja realeza lhe está também no sangue.
Viagem de Lwanda à Njamena e depois ao Mali foi num avião grande que levava pessoas que falavam alto, sem travão naquelas bocas, e sem asseio no se apresentar. Pareciam nossas Kitandeiras das kapracinhas nocturnas, nas bwalas de Lwanda. C(h)ikwanga e peixe seco a entrar nas bagageiras, com cheiro de provocar vomitação e alguns passageiros mesmo com cheiro de vómito ou de kimbonza por curar. Mangodinho, primeira viagem dele num avião e, ainda mais para o estrangeiro, foi só.
Na boca dele de desbotado meteu fita cola que lhe veio na ideia e suportou só as vozes de bairro, em ambiente de gente chic de cidades, com governantes do "não-me-toques" ali misturados mas não na igualhagem.
- Cheiro de pessoa com banhos em atraso, cheiro de kimbombeiro que não lavou a boca e cheiro de kangonheiro ou vomitador, tudo é cheiro. Deixou a viagem terminar para passar um pano húmido nas extremidades do corpo e sprayar o seu perfume sobre o corpo antes de se fazer ao hotel "D'amizade" de Bamako. Único que, à beira do Níger, esticava o seu "pescoço de girafa" para se mostrar a toda a cidade, cercanias e povos do plano e seco além rio.
Ao todo, as ligações ou recolha de passageiros de Lwanda a Bamako eram quase dez. Parecia kandongueiro de dois eixos e quatro rodas fazendo Rocha-Kikolo.
Chegou já noite. Luzes, poucas acesas. Poeira muita à volta. Um rio, tipo o nosso longa ou a tentar aproximar-se ao Kwanza, cortava o bairro que chamam de "notre capitale".
- Coment s'apelle votre capitale? Indagou para confirmar.
- Cité de Bamako, terre de notres ancients. - Respondeu-lhe o jovem que se fazia transportar em uma carroça puxada por um burro. Veio a descobrir que era um guia turístico, algo que eles já tinham à data e nós ainda nem sonhámos com turismo.
O jovem que falava Espanhol, língua prima do Português que Mangodinho falava, acompanhou-o à recepção e ajudou a fazer o Check in.
- Votre nom si'll vous plait!
- Mangodinho, de Kuteka, filho de Zé Godinho e Kabezo...
Chegou a hora dos manjares, sem o guia e amigo de ocasião. Mangodinho na fila dos pedidos. Olhou os piteus que saiam, tudo diferente dos que conhecia. Olhou à volta, ouviu as vozes que falavam com mais civilização e não lhe chegou nem primo de Kimbundu nem primo de Putu.
- Estou fodido! Desabafou inaudível. Que fazer?
A moça do atendimento, atrevida nas perguntas. Chega um pergunta, ele responde e passa para o colega. Mangodinho ainda na dúvida sobre o melhor janguto.
O décimo da contagem dele pediu "poulet grillé avec pommes de terre frite".
Puxou da kaximónia e juntou os farrapos: batata frita com galinha grelhada. Só pode ser. Anotou na memória.
- Nada melhor para começar a noite. Disse a esfregar as mãos.
No dia seguinte, a cena repetir-se-ia pois o pequeno dicionário Português-Francês-Português que levava tinha de tudo menos a tradução dos manjares.
- Porra, pá! Estou tramado. Que faço para comer? Desabafou em solilóquio.
Pensou na táctica. O tempo pela frente fazia prever uma semana difícil. De novo ao dicionário: o mesmo=la même chose.
Dirigiu-se ao petit dejeneur, matabicho de lá. Viu um indivíduo com pão, ovo batido e uma caneca de leite com café. Ergueu o corpo, esticou o braço e pronunciou, desta vez audível.
- La même chose.
Funcionou. Ao jantar, viu, de novo, alguém comendo galinha grelhada com batata frita. Gritou "la même chose" e a coisa funcionou. No dia seguinte, uma moça pediu bife com arroz ajindungado. Mangodinho não sabia que naquelas bandas o kahombo e o arroz conversavam juntos na panela a dor que infligir iam ao comensal. Repetiu a frase e lá veio o "la même chose".
Ao chegar na banda, depois de beber do que os outros fazem para manter intacta a cultura, abrindo brechas para expurgar as práticas erradas à L'humanité moderne e deixar entrar as coisas boas que vêm do ocidente, contou as peripécias, primeiro aos amigos e depois à população que o enviou e recebeu orgulhosa da sua primeira internacionalização.
- Mangodinho, como é que são lá as coisas, conta-nos. O pitéu, as mboas, as avenidas, os passeios, os aviões, as manas da zunga e as kapracinhas da noite, conta tudo.
No seu quinto trago de destilado etílico à base de banana dondi, Mangodinho respondeu:
- Falar-vos-ei amanhã, antes da assembleia que o soba vai convocar. Por enquanto, é tudo la même chose!

Publicado pelo Jornal de Angola de 30.12.2018

terça-feira, dezembro 11, 2018

TELEFONE KAYTELE!

 
Ele mesmo cantou: Kapake itima ku mulu (3x), ku lwanda kitoka! (Prestei toda atenção ao norte e a coisa veio do sul). Assim foi a morte deste insigne filho da Kibala e de Angola. Toda atenção virada para idosos doentes, a má nova veio surpreendente. KAHINZA WAHI!
Atenção, partiu um "artista menor". Apelei que cantássemos e não chorássemos, quando recebi a triste notícia da partida do líder do grupo folclórico do Kwanza-Sul, Kumbi Li Xya, KAHINZA de sua graça.
- Cantemos, recordando canções como: "telefone ya Sumbe kaytele", tio ngunga ku Uiji watundu, muhapila nengosu, mbila mu Kwanza-Sulu!", entre outras quetas épicas e repletas de estórias e vivências Kwanza-Sulinas. - Apelei numa conversa com EC.
Porém, fui dos primeiros a chorar ao me aperceber que uma jornalista se apercebendo do infausto acontecimento informou ao realizador de um noticiário sabatino, a fim de ser levado ao mundo a má nova.
- Informei antes do Jornal começar, porém, a notícia sobre o calar da voz do grande artista que foi KAHINZA não passou. - Disse constringida e contrariada a jornalista.
E, ao que soube, naquele magazine de uma hora, foi dito tudo, menos a morte de KAHINZA. Terá sido considerado um "artista menor"?
Terá sido impopular ao não cantar os ritmos da "metrópole angolana"?
Terá desencantado mais do que cantado? Ou da venda de seus discos, sempre no Katinton, terá descontado poucos?
Partiu o autor de "umbumba kumbumba, kumbondo kutundu nyañwa", "mona way mwangope, kuwana omala kê way", ou "viva a paz, Angola está unida" ou ainda "Ki kwitena kwayaxike", só para lembrar. Ou terá sido a "sembização" da música angolana, que ofusca olhar para o lado e enxergar outras realidades e outros ritmos, que impediu o hierarquizar noticioso de pensar que não há arte regional (música, pintura, dança, literatura, arquitectura, cinema, teatro, moda, etc.) nem cultura menor?
KAHINZA, quanto a mim, era um artista de viola e voz firme. Suas canções levantaram poeira e continuarão a fazê-lo nos quintais do Prenda, Dangereux, Rangel, Kikolo, Rocha Pinto, Saneamento, e em todos os bairros e aldeias de Angola onde habitem Kwanza-sulinos e apreciadores do cancioneiro popular.
Assim como os políticos e os jornalistas são excelentes no que fazem, independendo do lugar geográfico em que tenham nascido ou vivam, tal são os músicos do povo que cantam a vida e as malambas do povo. KAHINZA foi um deles. É uma pena que o seu "telefone" não esteja mais a receber chamadas. Telefone kaytele!

Publicado no Jornal de Angola, a 16.12.18 e Nova Gazeta, 20.12.18

sábado, dezembro 08, 2018

QUANDO A FOME SURPREENDE A MUMWILA

- Amigo, dá só cem para comprar pão, mumwila tem fome.
O apelo da jovem, alta, esbelta no seu habitat, seios divididos em duas porções, eventualmente, por uma corda ou um cinto que a t-shirt azul escondia, foi "ordem emocional". Olhei-a nos olhos. Eram brilhantes. Os dentes também brilhavam na boca e estavam aguçados, um procedimento cultural. Dizem que "permite cortar melhor a carne", uma estória ainda por pôr a limpo.
- Mana, não tenho dinheiro. Vou ao multicaixa ver se o patrão já pagou.
- Então, vou esperar. Faz favor, mumwila tem fome. Só cem para comprar pão.
Voltei a reparar com mais detalhes. Baixei os olhos. A mulher ela longa. Um metro e oitenta ou mais. Andava descalça e tinha as pernas todas adornadas de metal reluzente em forma heliocêntrica. Mais atento, vislumbrei outras duas companheiras sentadas no lancil, provavelmente cansadas ou aguardando igualmente por um promitente ajudador. Tinham todas garrafas de plástico carregadas de substâncias licorosas. Chamam-nas "óleo mupeke" que as kalwandas gostam para fortificar e fazer crescer a "kindumba".
Aturada a fila, conclui que o ATM não tinha valores. Mal ergui os olhos, estavam as senhoras na mira, distraídas ou falando sobre coisas suas. Mas aguardavam pelos cem kwanzas para comprar pão, pois a "mumwila tem fome".
Vieram-me instantaneamente as fomes que senti, quando era garoto ou jovem procurando pelo primeiro emprego, e sem que muitos se predispusessem em ajudar com uma "magoga" daquele tempo.
Aumentou a minha responsabilidade e pesou a promessa que não fiz.
- Vou-me embora, sem que ela dê conta, ou revisto o carro a ver se encontro uma moeda?
A segunda ideia ganhou forma. Abeirei-me delas e pedi que me acompanhasse à viatura.
- Amiga, multicaixa não tem dinheiro. Não sei se o carro tem moeda. Você me acompanha?
A mulher franziu ligeira e visivelmente o rosto, desconfiado que não conseguiria o intento, depois de um quarto de hora à espera. Mas seguiu-me quase a reclamar.
- Amiga está triste? -,Indaguei para a acalmar.
- Mumwila tem fome. Aquele falou "Xipela". Cem num tem. Amigo também falou "xipela", pão num tem. - Respondeu tímida e suplicante.
Via-se cansaço e fome no rosto dela, mas uma pujante força de viver, mesmo que a vender óleos cosméticos tradicionais ou a pedir pão quando a fome chegasse mais cedo do que as clientes. Senti ainda mais a aflição da senhora. Lembrei-me de umas moedas que a minha filha me havia devolvido. Falei alto e convicto.
- Vamos. Tenho moeda no carro. Só uma.
A jovem mumwila endireitou o rosto. Caminhou com mais vigor, enquanto as amigas se lhe seguiam pachorrentas. Por sorte, eram duas moedas, uma de cem e outra de cinquenta.
- Ndapandula enene. Mumwila vai comer.
Fiquei aliviado. Melhor pedir do que ladroar.
Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta a 26/07/18

sábado, dezembro 01, 2018

NAMBI KO EKOVONGO

(óbito no Ekovongo)
- Mano André, "nó" serve "ansim". Todas as partes boas da galinha é p'ra ti e os outros, que até contribuíram no óbito, vão se lamber só nos dedos e partir ossos? Na hora da contribuição ainda o mano estava a se esconder entre as mulheres, a fingir lágrimas que não vimos. - Desabafou audível a prima Miquilina que fora avisada por uma sobrinha sobre o comportamento incivilizado de um tio.
Ekovongo é a aldeia mãe do Kwitu, capital do Vye (olongombe vye). Dizem que "o branco, quando veio do Putu, com Silva (do) Porto à cabeça, primeiro ficou no Ekovongo e depois é que foi para a urbanidade criada pelo Silva".
A embala estava em óbito. Pessoa grande, de respeito na aldeia, na "kacidade" de Kwitu e na "kicidade" de Loanda, onde quem lá brilha, na embala é tipo sol.
O finado Ekofika fez-se homem entre Ekovongo, missão de Kamundongo onde estudou bem, Kwitu onde trabalhou e Loanda onde se reformou a constituiu bens. Mas o óbito foi levado mesmo (pela menos na imaginação) à aldeia natal.
Partiu numa terça-feira de sol envergonhado, depois de muito bregar para adiar a morte. Filhos, sobrinhos, primos, amigos de todos os tempos, todos procuraram tê-lo mais tempo em vida e, por isso, ajudaram nas contribuições. Ekofika foi buscar saúde ao estrangeiro, à faca se submeteu, mas, em vão. Partiu mesmo.
- Quando Jesus te chama, você pode mesmo ir "no" melhor professor dos médicos, os anjos não te largam. - Dizia-se eufemisticamente para aliviar a dor dos filhos e da família próxima.
- Mas o mano Ekofika combateu um bom combate. Assim, a oração "venha agora o teu reino e seja feita a tua vontade", que temos orando na IECA, foi mesmo cumprida. - Desabafou outro presente também condoído.
Mano André, do prato cheio, estava ainda calado, quando essas cenas todas começaram a ser narradas. Para ele, trabalho no óbito era apenas controlar a logística e encher a pança de boa cabidela e bom vinho.
- Comigo, é médico mesmo que me disse, vinho só tinto de garrafa. Pacote "nó" entra, nem "ngalinha" da loja. - Dizia, a mostrar os dentes todos na boca.
Se cá fora eram tertúlias, contribuições para alimentar e dar de beber às visitas, lá dentro, com a coitada da viúva, também havia trabalho. As civendji (tchivendji), senhoras que fazem companhia à viúva, tinham a missão de a distrair e com ela chorarem à chegada de um familiar próximo ou amigo importante do de cujus. Imaginavam momentos passados com o falecido Ekofika, para puxar compaixão e lágrimas, e atiravam uma expressão de todos conhecida.
- E agora, mano fulano, o Ekofika nos deixou. Twasala ulika!
Outras civendji que não tinham convivido o suficiente com o finado recordavam seus entes partidos há muito e soltavam, à memória, choros acompanhados, às vezes, de lágrimas fartas. Ser civendji não é "fácii", diria a minha sogra Buenos Aires.
Ao sétimo dia, as civendji são libertadas, em parte. Confinadas ao quarto da viúva, durante aquele período, são finalmente alimentadas abundantemente. Servem-lhes, por isso, bebidas e carne (aquela que sobra dos comensais, não restos, não senhor!), dão-se-lhes passagem e se dispersam, ficando apenas duas ou três, as mais chegadas à viúva, para fazer-lhe companhia nos dias vindouros, até se colocar perante facto consumado e se reerguer para a nova vida sem o companheiro.
Segue-se a reunião familiar. Filhos de todas as "cavalarias" são chamados a participar. Quem não estiver, "ngongo yaye". Descreve-se aos participantes o ambiente que circunscreveu e levou à morte o finado, no caso o mano Ekofika. Contam-se os bens materiais e imateriais produzidos (com sua ndona) e deixados pelo de cujus. Enumeram-se as dívidas contraídas e por saldar. Os credores são chamados para se pronunciarem e reclamarem dos haveres. Uns preferem perdoar os valores ou bens por receber. Às vezes, até mesmo o adversário inveterado faz-se amigo. Acabou o campeonato! Apresentam-se as contribuições recebidas para os gastos durante o nojo, sobras, etc. É assim no Ekovongo. É assim entre os ovimbundu.

Publicado pelo Jornal Cultura, edição referente a 11-24 Set/18