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segunda-feira, novembro 28, 2016

ACHADOS E FUTADOS

 
Uma foto, encontrada no face book sobre a fabricação rudimentar de utensílios metálicos, algures na Lunda Norte, fez-me recuar no espaço e reviver o meu tempo de aprendiz de uma velha arte, a da manipulação do ferro em novos utensílios. Assim, revisitando o meu guarda-recordações, deparei-me com algumas nótulas.
Sempre que houvesse um acidente, capotamento por exemplo, sobretudo se fosse de camião, quatro peças do veículo em desgraça desapareciam num abrir e fechar de olhos, na primeira visita efectuada dos aldeões mais próximos.
1- O espelho: serve para manter a "boniteza" em dia. Já vi, mais antes do que hoje, casas adornadas com espelhos retrovisores de viaturas.
2- Cabos de aço flexível que suportam a embraiagem: esses atendiam/atendem uma das actividades económicas do homem do campo, complementar à agricultura e à pesca. A caça. Os laços e outras espécies de armadilhas para animais de médio porte são feitas com esse material de extrema raridade e importância no campo.
3- As molas em barras, também são de capital utilidade para a caça. Servem o ferreiro que, com ajuda do fole, forja as armadilhas (chamadas erroneamente po "ratoeiras"), os machados e machadinhos (nyanga ou kanjaviti), faças, flexas, laças, etc. Já servi de ajudante de ferreiro, antes de atingir a primeira década de vida, e manipulei quer o fole, quer a bigorna, o martelo, o alicate e outros instrumentos.
4- Finalmente, o veio de transmissão: tem uma parte tubular que não é ferro maciço. Essa, depois de cortada pelo ferreiro, vai atender a destilação da "makyakya", kacipembe ou caporroto (o nome varia de região para região), líquido que entorpece mas que devolve alegria aos aldeões depois de muito agricultar, pescar e ou andar atrás de presas que alimentam o estómago.
Cabo de aço flexível, molas em barras, espelho retrovisor e veio de transmissão são peças cobiçadas no campo. Saiba.

Texto publicado no Nova Gazeta de 10.11.2016

segunda-feira, novembro 21, 2016

KYAMAFULU

Kyamafulu: Assim se chamava o controlo/posto de fiscalização instalado junto à ponte sobre o Kwanza, entre Libolo e Kambambe.
 
Circulavam sobre a Estrada Nacional 120, Kibala ao Dondo. Quissongo, Gango e Quitúbia, regiões com ocorrências diamantíferas, eram inacessíveis para civis que ali não residissem. A guerrilha oposicionista estava no auge.
 
No IFA carregado de sacos de macroeira, pareciam mendigos espalhados pela casa da sopa na hora doze. O relógio até que tinha os ponteiros esticados verticalmente em ângulo de 360 graus. Eram 12h30 momento em que chegaram ao Kyamafulu, depois de duas manhãs e uma noite a transpor 150 km de distância que separava Kibala ao Dondo.
Kapequel era do Sumbe e terminara o seu segundo ano de professor brigadista em Calulo. Kanhanga é do Libolo e fora seu aluno. Manuel Kambuta, natural do Mussende voltava à Gabela, depois de um ano lectivo no internato da sede do Libolo. Era o adeus àquela vila. Havia na viatura tantas outras almas: homens, mulheres e crianças, tinham naquele IFA sem cor e cansado, fumegante e a espalhar cheiro a gasóleo por onde passasse, a solução derradeira para chegar à civilização que era Luanda. Uns chegariam vivos e saudáveis. Outros talvez estropiados por um arbusto pendurado à estrada e outros ainda, os homens saudáveis abrangidos pelo serviço militar, com o coração na mão. Guia de marcha, adiamento ou passaporte de disponibilidade, documento de invalidez, cartão de escola, bilhete de identidade, entre outros documentos deviam estar previamente arrumados antes de se chegar ao purgatório.
_ A ponte sobre o Kwanza, separando Kambambe e Libolo, é já ali. - Avisou uma senhora viajada e avisada das contrariedades que podiam encontrar.
Kanhanga ignorava o "pente fino" pois julgava-se ainda desabrangido pela vida Kwemba. Mas os mais adultos, os seus professores e colegas de último percurso não se cansavam de comer os dedos, roídas que estavam as unhas. O carro, que resmungava a cada salto na estrada esburacada, levava umas trinta pessoas distribuídas pela carroceria repleta de carga.
- Todos que usam calças devem pular e conferir as "cadaplas" aqui em baixo.- Atirou o soldado com a boina a encobrir-lhe os olhos e carregado de mau-humor.
Uns ainda tentaram fingir não ter ouvido, mas não tardou o soar da bala ao ar. O homem parecia disposto a alimentar os crocodilos de carne quente.
Todos: jovens, idosos, crianças e até mulheres de calças fizeram-se carga abaixo.
Era a vida do viajante homem, quando chegasse ao controlo militar na ponte sobre o Kwanza, em Kambambe. Kyamafulu (bicho mau) era assim.
Passei pela nova ponte erguida à montante. Linda e longa, mostrando o Kwanza a esticar-se preguiçoso para oeste, sem os rápidos da ponte antiga e sem a grande lagoa que surgiu por causa da hidroeléctrica de Kambambe. Um novo posto policial foi erguido acomodando também o corpo de bombeiros. Disseram designar-se também Kyamafulu.
- Kyamafulu, senhor polícia? Não pode ser. Aqui não há história que se conte nem estórias de roer as unhas. - Repliquei.
Kyamafulu só há um!

Obs: texto publicado na coluna "(Re)flexões leigas" do jornal Nova Gazeta, a 13.10.16

segunda-feira, novembro 14, 2016

"ORDENS SUPERIORES" LEVADAS A TEATRO DOMICILIAR

 
Quando os encontrei, era já noite.
Brincavam: uns geriam uma barragem hidroeléctrica. Outros eram os chefes imediatos. Havia os chefes dos chefes e um chefe máximo que baixava ordens a todos. Era o "OS".
Sabendo que eu os mandaria fazer as tarefas escolares, combinaram que alguém ficasse ao lado da barragem (disjuntor), para tão logo recebesse a "ordem superior" do seu chefe, baixasse o interruptor.
 
 
E assim fizeram. Sei lá de onde puxaram a ideia, os meus filhos e sobrinhos. Entre os sobrinhos junto filhos de vizinhos que me tratam por tio.
 
Bastou o meu "boa noite meninos" para ouvir, num canto qualquer da casa, o grito "baixa a barragem, ordem superior".
De imediato, eu que me preparava para, como sempre, manda-los fazer os deveres de casa, fiquei na escuridão.
Muxoxei para a coitada da Ende. Tinha caído num ardil dos infantes.
 
Esses miúdos de hoje em dia são perigosos. Isso mesmo. Perigosos. Inventivos. Custa acreditar. No meu tempo de undengue éramos habilidosos em fazer coisas experimentáveis, objectos. Hoje teatralizam nossas vidas.
 
- Fidacaxa!

segunda-feira, novembro 07, 2016

INSULTOS CONSTRUTIVOS

 
Conversávamos sobre futebol de "primeira água". O Girabola regista uma duas emocionantes corridas, sendo uma para o topo e outra para escapar a despromoção, quando já são conhecidos os novos primodivisionários.
Alguns dos meus amigos, adeptos de outras equipas de futebol que se deslocam a Calulo, dizem-me, a brincar, que os mais ferrenhos adeptos do Recreativo do Libolo, aqueles que, realmente, fazem o Recreativo vencer quase todos os jogos que realiza em casa, nunca se fazem ao campo.
Indaguei, curioso, a um desses amigos por que será que considera ele que o Recreativo do Libolo tenha adeptos ferrenhos que ajudam a vencer os jogos sem que se façam presentes no Estádio Patrício Lumumba, de Calulo?
Paulo, o que mais falava, exibiu a câmara fotográfica e começou por mostra-los um a um, em função da sua "corpulência". Eram, segundo ele, possuidores de "vozeirões", capazes de inibir e cansar, à partida, qualquer adversário da sua amada equipa que se atrevesse a passar por eles. Mesmo assim, depois de vistas as fotos, ainda repliquei.
- Mas, desses "adeptos" temos em todo o país onde se jogue futebol de primeira água. Vá, por exemplo, a Benguela aonde cada girabolista se desloca duas vezes ao ano. Vá à Lunda Sul e Lunda Norte. Vá ao Lubango e Menongue. Vá a N'Dalatando e encontras o mesmo tipo de adeptos.
Paulo olhou-me firme e demoradamente, sem nada dizer, e buscou uma explicação.
- Mas, ó libolense. Sabes que para distâncias mais longas as equipas vão de avião e aqui era de evitar...
- Sim, luandense. Aqui, em Calulo, também temos uma pista de aviação que fica a três quilómetros do hotel e mais um quilómetro para o campo. - Explicitei.
- E achas que os buracos são saudáveis? Achas que a vós faz felizes, ter de viajar por estradas sinuosas, sempre que se desloquem a Luanda? - Voltou a replicar, pretensioso de me "insultar" como fazem sempre os adeptos perdedores.
- A situação é preocupante mas conjuntural. - Rebati. - Sabes que nós, do Recreativo do Libolo, tanto ganhamos em casa como também o temos feito em terreno alheio. Com ou sem adeptos estáticos. Passamos pelos adeptos-buracos e pelos adversários!

Texto publicado no jornal Nova Gazeta de 20.10.2016

terça-feira, novembro 01, 2016

TCHUNA BABY

O angolano é inventivo. Isso mesmo. Criativo. Cientista da imaginação. Uma imaginação proporcionada por uma língua dinâmica, "o Português de Angola", que traz ao léxico novos vocábulos inseridos de forma genial, depois de capturados e reconfigurados a partir de outros idiomas. É essa reinvenção diária e em todas as situações análogas ao real que faz do angolano um "inventor linguístico".
 
Quando ouvi , pela primeira vez, pronunciar a expressão TCHUNA BABY a referência que tive era somente aquela relacionada a roupas curtas e ou justíssimas. Porém, o tempo me levou a entender que o "invento" se tornou extensivo a outras realidades que levem à ideia de aperto. A crise económica, por exemplo, é tida como "vida tchuna baby". Por extensão, as casas pequenas, também designadas evolutivas, as que não passam de quarto, sala e wc, ganharam o "modístico" nome de TCHUNA BABY.
 
Andando pelos "Zangos", encontrei dois pares de jovens conversando ao sol abrasador, meio descontraídos, embora algo revoltados, pelo menos a tirar ilações da dureza dos vocábulos e tonalidade que imprimiam nos discursos.
 
- Fogo! Porquê que deixam primeiro construir, para depois vir partir com a alegação de que é zona proibida ou reserva do Estado? Porquê que o Estado não chega primeiro e impõe a ordem? - Interrogava-se um dos jovem.
 
Ao que me apercebi, tratava-se de um operário numa fábrica recente, em Viana e que pretendeu erguer uma moradia nas proximidades do seu trabalho.
Mamelodi, outro jovem, questionava "por que se permitia ter dois sentidos da via asfaltada ocupadas por casebres de chapas, na Ilha Seca do Zango III, quando se casas de verdade não foram poupadas".
 
- Só porque erguidas em terrenos "vendidos" pelos camponeses da região? - Questionava-se Mamelodi, perante uma assistência que se revezava nas falas?
A conversa ia longa, regada de pinchos e cervejas. Quando os lamentos se esgotassem, antes de se retornar ao cancioneiro, falava-se sobre moda.
 
E foi nessa conversa sobre slin e XXX que soube que grande parte das pessoas que ergueram moradias nos arredores do novo aeroporto e vizinhança dos Zangos viram suas casas "kamarteladas". Uns, ao que me contaram, voltaram à "felicidade" que é repartir o tecto com a sogra desbocada e proprietária, ao passo que os mais orgulhosos decidiram procurar por casas do tipo TCHUNA BABY, para não voltar ao abrigo da mãe ou da sogra.
 
- Minha mãe, já na velhice, decidiu "comprar" terreno e construir nas imediações do que será o novo aeroporto. Nunca cheguei a visitar o espaço onde a casa recebia acabamentos. Quando já se preparava para lá ir morar, encontrou o que os vizinhos choravam. "A casa sumiu"! - Explicou Imaculada, uma das mulheres do grupo que reservou o sábado para procurar por tchuna baby.
 
- É a única maneira que tenho para  acudir a velha cuja tensão arterial é "normalmente" mais alta do que normal. -Concluiu.