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segunda-feira, novembro 21, 2016

KYAMAFULU

Kyamafulu: Assim se chamava o controlo/posto de fiscalização instalado junto à ponte sobre o Kwanza, entre Libolo e Kambambe.
 
Circulavam sobre a Estrada Nacional 120, Kibala ao Dondo. Quissongo, Gango e Quitúbia, regiões com ocorrências diamantíferas, eram inacessíveis para civis que ali não residissem. A guerrilha oposicionista estava no auge.
 
No IFA carregado de sacos de macroeira, pareciam mendigos espalhados pela casa da sopa na hora doze. O relógio até que tinha os ponteiros esticados verticalmente em ângulo de 360 graus. Eram 12h30 momento em que chegaram ao Kyamafulu, depois de duas manhãs e uma noite a transpor 150 km de distância que separava Kibala ao Dondo.
Kapequel era do Sumbe e terminara o seu segundo ano de professor brigadista em Calulo. Kanhanga é do Libolo e fora seu aluno. Manuel Kambuta, natural do Mussende voltava à Gabela, depois de um ano lectivo no internato da sede do Libolo. Era o adeus àquela vila. Havia na viatura tantas outras almas: homens, mulheres e crianças, tinham naquele IFA sem cor e cansado, fumegante e a espalhar cheiro a gasóleo por onde passasse, a solução derradeira para chegar à civilização que era Luanda. Uns chegariam vivos e saudáveis. Outros talvez estropiados por um arbusto pendurado à estrada e outros ainda, os homens saudáveis abrangidos pelo serviço militar, com o coração na mão. Guia de marcha, adiamento ou passaporte de disponibilidade, documento de invalidez, cartão de escola, bilhete de identidade, entre outros documentos deviam estar previamente arrumados antes de se chegar ao purgatório.
_ A ponte sobre o Kwanza, separando Kambambe e Libolo, é já ali. - Avisou uma senhora viajada e avisada das contrariedades que podiam encontrar.
Kanhanga ignorava o "pente fino" pois julgava-se ainda desabrangido pela vida Kwemba. Mas os mais adultos, os seus professores e colegas de último percurso não se cansavam de comer os dedos, roídas que estavam as unhas. O carro, que resmungava a cada salto na estrada esburacada, levava umas trinta pessoas distribuídas pela carroceria repleta de carga.
- Todos que usam calças devem pular e conferir as "cadaplas" aqui em baixo.- Atirou o soldado com a boina a encobrir-lhe os olhos e carregado de mau-humor.
Uns ainda tentaram fingir não ter ouvido, mas não tardou o soar da bala ao ar. O homem parecia disposto a alimentar os crocodilos de carne quente.
Todos: jovens, idosos, crianças e até mulheres de calças fizeram-se carga abaixo.
Era a vida do viajante homem, quando chegasse ao controlo militar na ponte sobre o Kwanza, em Kambambe. Kyamafulu (bicho mau) era assim.
Passei pela nova ponte erguida à montante. Linda e longa, mostrando o Kwanza a esticar-se preguiçoso para oeste, sem os rápidos da ponte antiga e sem a grande lagoa que surgiu por causa da hidroeléctrica de Kambambe. Um novo posto policial foi erguido acomodando também o corpo de bombeiros. Disseram designar-se também Kyamafulu.
- Kyamafulu, senhor polícia? Não pode ser. Aqui não há história que se conte nem estórias de roer as unhas. - Repliquei.
Kyamafulu só há um!

Obs: texto publicado na coluna "(Re)flexões leigas" do jornal Nova Gazeta, a 13.10.16

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