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quinta-feira, dezembro 29, 2016

MANGODINHO NO ISTMO


O óbito da prima Cici, falecida aos 22 anos, quando frequentava o quinto ano de medicina geral, tinha sido menos demorado do que o habitual nas comunidades rurais. Enorme que foi a perda, o casal decidiu espalhar o mais cedo quanto possível os familiares que tinham viajado de longe e se esforçarem a encarar aquela dura realidade. Sendo do ciclo familiar mais próximo, Mangodinho ficou mais umas semanas em Luanda, ajudando aqui e acolá, na recomposição da casa.

A piscina, sua "lagoa imaginativa", precisava de ser esvaziada e limpa. O jardim, verde florescente dias antes, reclamava por rega, poda e limpeza. As paredes interiores, brancas de neve, apresentavam marcas de pés descalços e até mesmo sapatões poeirentos e ou lamacentos. Havia resto de qualquer coisa em algum lugar.

Foi já a fechar a metade do mês que recebeu o convite do coetâneo Mbondondo para conhecer o istmo de Luanda.

Num velho Corolla, que andava resmungão, cortaram a cidade toda pelo meio, até se enfiarem numa língua de terra abraçada pela água salgada. Mangodinho sentia o cheiro à maresia mas não divisava o mar que, à noite, camaleava do azul para negro.
 
- Zequeno, ouviste falar sobre a ilha que levou a nossa prima, não é? É então aqui. Chegamos.

- Ó primo, Mbondondo, ilha é aqui mesmo? E água de sal então está aonde?

- Calma, Zequeno. Não fala alto, porque aqui tem pessoas importantes e podem pensar que somos do mato.

- Mas ser do mato é mal? Então, quando eles vão ao mato, também não nos costumam perguntam "aquela camontanha nome dele é qualé? Aquele rio nome dele é quê?" É mal perguntar em Luanda?

Mbondondo na defensiva, magicava respostas equilibradas. Procurava mostrar aos que os rodeavam que ele era já quase um Kalu. Procurava também não ofender a honra do amigo que tinha uma visão do mundo diferente dos kaluandizados.

- Mas ó Mbondondo, então, aqui na ilha também tem aldeias muito escuras tipo no mato?

- Como assim, ó Zequeno, se as ruas todas por onde passamos estão iluminadas e o bairro tem energia? Onde é que você viu escuridão?

Mangodinho, o Zequeno, levantou a cabeça e com o braço direito esticado levou o seu interlocutor a esticar a cabeça para a mesma direcção do "infindável" Atlântico.

- Epá, olha: essa aldeia aí se parece com a nossa Pedra Escrita. Só tem uma casa com gerador!

Um navio, ao Largo, aguardava ordem de atracar no Porto Comercial de Luanda. Era único no mar do horizonte visual.

- Zequeno, fica espero. Tudo isso que te parece mata é mar. É só água com sal. Água do mar, kalunga-Lwiji. É um rio sem fim. O que estamos a ver é barco longe, no mar. Não é casa com gerador.

Entraram numa tasca e beberam do que o bolso permitiu. Quando o álcool começou a falar mais alto do que todas as vozes juntas, abraçaram-se e choraram juntos.

- Esse é o mar, dá alegria aos caluandas a quem tira stress, aquele cansaço da cabeça de quem trabalha no escritório. Tira sarna às pessoas que vêm da bwala. Mas também dá tristeza. Água do mar é pesada e tem kalema que enrola pessoa, mesmo nadadora famosa no Longa como nós. Kalunga é alegria e morte. - Explicou Mbondondo ao seu coetâneo Zequeno que bebeu mais um trago e adormeceu.

Publicado no caderno fim-de-semana, do Jornal de Angola, 03/06/18, pag. q0

quinta-feira, dezembro 22, 2016

NA HORA DA JANTA

A família, os parentes mais chegados, aqueles que faziam o vem e volta, e os amigos chegados que estavam aí para dar força e encorajar o casal e a filha intermédia, ocupavam três mesas: uma era a do pai com os seus. Falavam conversas de homens que iam da política externa, interna e outras coisas para amenizar o peso do tempo pachorrento. A mãe da jovem de cujus ocupava igualmente uma mesa de dez lugares e falavam coisas suas de mulheres. Na terceira estava a filha, quase a atingir a maioridade, as amigas, colegas e primas. Falavam sobre escola e juventude, não faltando assuntos sobre redes sociais.
Mangodinho preferia um lugar mais discreto. Ora se juntava aos seguranças ora às tias que se abrigavam na parte frontal da casa.
Jantar à mesa, pratos, cubas gasosas, vinho, água.
Mangodinho atento aos movimentos dos ocupantes da mesa masculina. Cada servia uma porção de vinho e bebia com preguiça.
- Mas, esses estão sem vontade ou o vinho que bebem não lhes cai bem? - Ficou a pensar, antes de engendrar a sua táctica do rápido entorpecimento.
Chegou-se à mesa, meio afastado. Serviu comida, o seu funje preferencial. Baixou vinho da garrafa à caneca. Simulou que provava mas deixou o líquido escorrer-lhe a garganta até sentir a última gota. Rondou o ambiente, e viu que não tinha palavras para aquela assembleia.
- Colicença, pai. - Saiu, inclinando o tronco para frente, em forma de vênia, marcando passos a recta-guarda.
Mangodinho não era homem de desprezar o vinho é dormir lúcido. Informou-se sobre a chave da cozinha.
- Está aberta. Disse-lhe a tia.
- Vou buscar água para o motorista que está aí atrás.
A tia aprovou, com o norte-sul da cabeça.
Caneca na mão. O vinho em pacotes de que as mulheres se serviam para temperar estava à mostra. Sacou o canivete da algibeira e fez o corte. Puxou o banquinho, tranquilo. Caneca na pacote na mão. Olhou à volta e ninguém olhava para ele. Os vidros eram espelhados, excepto um que deixava fugir a sua imagem para fora. Estava na direcção do tio, o dono de casa. Encheu a primeira, largou-a goela abaixo. Limpou a boca com a ponta da camisa. Girou a cabeça para se assegurar que estava tudo conforme. Ainda não sentia a casa a se mover nem as estrelas correr. Espiou, de novo, os que ocupavam as mesas no quintal. O tio sempre de olho nele. Menos ele que não o via. O vidro espelhado estava invertido. Repetiu a procissão: caneca na mão, pacote na mão. Um, dois, três, levou o líquido à boca e, sem pausa, tragou a uva.
O tio sempre a seguir-lhe os movimentos. Pôs-se em pé e volteou a casa, regressando por outro caminho até à porta da cozinha.
Mangodinho preparava a terceira e última caneca. Distribuiu olhares para as três mesas e não viu nada que o impedisse.
- Eles estão mbora a conversar coisas deles de Luanda. Vou aproveitar.
Quando a terceira caneca, repleta de vinho, se encontrava entre o chão e a boca, o tio aproxima-se sem que ele se apercebesse.
- Quem está a beber vinho tipo água?
Em contramão, a boca perdeu a agilidade de falar, mas a mão já levava força para a boca. Vinho foi água no corpo de Mangodinho.
- Vai já tomar banho, seu indisciplinado. Vinho aprecia-se. Não é água e não precisas te esconder para beber. Toma banho e vai à mesa que há vinho que chega para te afogares!

quinta-feira, dezembro 15, 2016

MANGODINHO COM NOVAS IDEIAS

Três semanas na Ngwimbi não são vinte e um dias quaisquer. De volta à aldeia, Mangodinho é um homem transformado. À mesa só com garfo e faca, embora garfo à direita e faça à esquerda. Vinho ou caporroto só no copo. A caneca era para outras bebidas. A barba e o cabelo estavam arranjados. As moças da Pedra Escrita, que há muito viam Mangodinho como um velho, têm-no agora como o "jovem mais organizado". Afinal, idade são apenas números. Juventude é o estado de espírito. O sentir-se à vontade, respirar sangue puro, mesmo como oxigénio escasso. Mangodinho deixou de ser tratado por tio. Agora é mesmo Manzequeno pra cá e Mangodinho pra lá.
Entre os pares e coetâneos, Zequeno é quem mais fala. Tem as estórias frescas. Tem as ideias mais brilhantes.
- Epá, quando um gajo chega na Ngwimbi, pode mesmo ter estudado muito, mas fica ainda um pouco atrapalhado. - Dizia ele. - Aqueles carros todos, o falar afinado das pessoas, a vaidade que têm no andar e no vestir, as coisas que até os pobres têm nas suas coisas e tudo mais fazem um vivo daqui virar piolho. É verdade mesmo.

Os amigos, viajados ou não, todos na estupefação.

- Mas, Mangodinho, aqueles filmes que andamos a ver sobre Luanda é verdade ou é mentira? - Perguntou Ndjuce, rapaz de dezoito anos que se achava à volta de Mangodinho regressado de Luanda.

- Vocês aqui andam a se perder. Daqui em diante, eu vos digo mesmo, quem tem poder vai. Vejam-me. Você volta leve. Luanda leveda a pessoa. Sarna fica. Piolhos morrem. Matumbice diminui. Você trata o branco por epá.

- É verdade, Mangodinho, até branco você lhe bate nas costas?

- Não fica mais burro. Prepara macroeira e, mês que vem, me acompanha. Vais ver o meu pai a lhes bater no ombro e lhes dar ordens. Diferença está só mesmo no estudo. Se a pessoas estudou mais e é chefe, branco contigo não torra farinha. Eu mesmo estou a pensar me meter na alfabetização. Pelo menos, assim, esses kafussas que andam a vir trabalhar na obra da estrada já não me vandalizam. Temos que crescer. Por hoje chega. Vou planificar algumas coisas que vi lá em Luanda e que podemos também fazer aqui. Vamos descansar e pensar.
 


Nota: texto inserto no jornal Nova Gazeta de 12.01.2017 

quinta-feira, dezembro 08, 2016

SOZINHO EM CASA

MANGODINHO
O casal enlutado tinha saído. Para aonde ninguém soube, nem mesmo eu. As crianças tinham ido espairecer em casa duma tia. Procuravam todos por um clima de descompressão.
- Zequeno, pai!
Estamos a sair por alguns instantes. Os da família, já sabes. Recebe e atende. Pessoas estranhas, conversa um pouco para saber se são da parte da tua mamã. Se for, também acomoda. De resto, é só dizer que os da casa saíram.
- Está bem pai.
Zequeno, o meu Mangodinho, tinha já roupas novas e um cabelo arranjado. Já se parecia a um homem em transição de campestre para urbano. O tio, a quem tratava por pai, tinha decidido melhorar o seu "looking" e ofereceu-lhe as roupas do tempo de magreza que estavam em sobra.
O tempo era de calor, quentura de Novembro com 34 graus. "Esse sol de Luanda até sardinha assa", a expressão foi mesmo dele ao se retirar do quintal, onde apreciava ao detalhe a sua querida "lagoa" e com forte vontade de a adentrar. Apenas o pudor o inibia de tirar as calças e mergulhar na frente de pessoas.
- No mato não é assim. Pessoa vai ao rio e toma banho longe das mulheres e das crianças. Aqui perece que a vergonha lhes fugiu e ficam todos misturados na mesma lagoa. É pai, é filho, é mãe é visita, é tudo. Isso no mato traz reunião dos mais velhos. É mesmo vergonhoso.
Sentado no sofá da sala de cinema, onde o ar frio, expelido por um potente aparelho de AC, substituía o cobiçado banho de água corrente, Zequeno buscava entender cada detalhe daquela moradia de três pisos.
- Possas, Luanda é grande. - Exclamou ao enviar os olhos para os quatro lados que o piso cimeiro e a vidraça permitiam ver. Foi naquele instante que ouviu o telefone fixo tocar na sala de estar.
- Trimmmmm, Trimmmmm.
Mangodinho na dele. Telemóvel já tinha visto de vários tipos e modelos. Ele, inclusive, tem um. Mas telefone fixo nunca ainda tinha atendido. Ficou a pensar como atender.
- Trimmm, trimmm. - O aparelho voltou a tocar e com mais alto volume.
Mangodinho desceu a escada numa corrida de vento. Até hoje se pergunta como não tropeçou. Chegou quase sem ar nos pulmões e decidiu experimentar o atendimento. Estava sozinho e, caso não o fizesse bem, ninguém o saberia. Levantou invertido o microfone-auscultador.
- Alô, alô, alô. Não falas porquê. Liga mais tarde. Os donos de casa não estão.
Sem ouvir quem estava do outro lado, pousou o microfone-auscultador.
Abriu a geleira e sacou uma gasosa. Antes de a abrir, o telefone voltou a tocar.
Trimm, trimmm, trimmm...
- Já te disse, ó senhor, estás a insistir porquê. Os donos de casa saíram. Ou queres então falar com o cão? É único que deixaram a me fazer companhia (tudo expresso em Kimbundu).
Desta vez, tinha usado correctamente o microfone e permitiu o interlocutor ouvir.
Quando os donos de casa voltaram, foram só risos. Tinha sido o tio a ligar para informa-lo que o almoço, em banho-maria, estava na cozinha e podia abrir uma garrafa de vinho.
O infeliz, almoçou pão com gasosa.

quinta-feira, dezembro 01, 2016

MANGODINHO NA NGWIMBI

Nome dele, do bairro e das amizades, é Zequeno, um diminutivo de José Pequeno. Mas apelido dele é mesmo Godinho, nome por que passou a ser chamado nos últimos tempos. Quando nasceu? Não se sabe. Calcula-se apenas, rebuscando as idades de seus coetâneos e daqueles que levou às costas como eu.
 
Sonho dele, de muito tempo, Mangodinho, era conhecer Luanda e fê-lo por uma razão de tristeza. As vezes em que podia vir, passear, respirar ar fresco da brisa do mar, visitar largos com jardins e repuxos, essas vezes lhe passaram. Ora era falta de passagem, ora era a ferida no pé, ora era sei-lá-o-quê.

Óbito na família chegada. Menina crescida desapareceu tragicamente numa sexta de praia na Ilha. Luto anunciado ao telefone da tia, no Libolo, Mangodinho veio junto. Calças: um par. Camisa, idem. Um casaco e um par de sapatos. Relógio, já sem ponteiros, no pulso, Man Godinho tipo é homem de verdade. Fez-se à estrada na carrinha enviada para os resgatar.

Na ngwimbi, como dizem as gentes do “nosso mato”, Mangodinho foi contemplando a grandeza das casas à volta, o falar refinado, até das zungueiras, e o andar estiloso, até dos vendedores de Kangonya. Cigarro na boca, sem estilo na mão, um fumar apressado, correndo com o cilindro que fumegava incêndio, posicionou-se num canto da rua. Ao lado, o esposo da tia com quem viajara.

O telefone do tio tocou. Do outro lado, dita-se um número. O tio, sem saber como anotar no aparelho, desenha os números do solo arenoso. Enquanto corre à casa, para sacar a agenda e a lapiseira, o tio incumbe:

- Sobrinho Zequeno, não sai daqui, eu volto já. Controla o número para que não passe carro por cima dele...

 Mangodinho fez-se estátua. Pessoas passavam, cumprimentavam-no, ele sempre de cara para
o chão dos algarismos. Veio o vento, soprou forte. Mangodinho lágrimas nos olhos é água. Chorava a prima finada aos vinte e dois anos, quinto ano de medicina. Mas chorava também o número do telefone que o vento levou.

Caneta partida pela enxada, corrida às pacas e pescarias no Longa. Do chicote do professor Kakonda, herdado pelo mestre Faustino, Mangodinho apenas ténues lembranças do Bê com Â: BÂ. Técnica de redesenhar algarismos na areia movediça não tinha.

- Que direi quando o tio chegar?!
 
Texto publicado no jornal Nova Gazeta