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sábado, julho 29, 2017

KITOTA NA MUNENGA


Naquele dia do ataque à Munenga, em Fevereiro de 1984, parecia que até os cães se tinham aposentado de ladrar. Ou estava tudo muito calmo ou eu não tinha reconhecido o suficiente aquele vilarejo.

À madrugada, os kwaca (cuacha) que gostavam da alvorada, atacaram.

- Avança, kovaso (covasso), agarra, kwata... Verberavam em meio a cânticos e batucadas do pessoal de rapina.

Balas perfurantes sobre a pobre cozinha em que Sabalu-a-Soba e eu dormitávamos. Ele, meu primo mais velho, apertou-me junto do seu colo.

- Não grita. Não chora. Ordem de mano. - Cumpri.

Um Kwaca entrou armado. Roubou o cobertor que usávamos. Levou o recipiente que continha óleo de palma. Levou, acto contínuo o veado que defumava. Vasculhou outras coisas. Parecia não nos ver. Confesso que não viu. Ainda bem que só tinha olho para comida e vestuário.

Depois vieram outros. Um deles, chefe com duas estrelas ao ombro, botas lusidias e acastanhadas. Falava bom Português ao meu ouvido de então. Depois, quando toda a nossa família alargada já se achava encostada à parede frontal da casa que nos acolhia (Manuel Albano), sem sabermos qual nosso destino (uns já carregavam imbambas e cerveja roubada do bar do Sangue Frio em direcção ao Ngana Mbundu), eis que o kwaca-chefe sacou de sua “kilera” uns papéis e mandou meu mano Sabalu lê-los. Ele que já frequentava o III nível na Kwame Nkrumah, em Kalulu, leu como esperado ou terá ultrapassado a expectativa. Era em Francês. Espantado, o Kwaca-chefe teve de simpatizar-se com ele.

- Já não vais connosco. Ficas aqui a responder pela jura (algo que não sabíamos o que era).

E para mim, virou-se em tom ameaçador: e tú, ó menino, sabes ler?

- Sim mano. Estudo a terceira classe.

- Pois é. Então ficas aqui com o teu mano. A partir de hoje és da alvorada. - Ordenou o Kwaca-chefe.

Assim, ficámos sãos e salvos, enquanto outros jovens, adolescentes e crianças que foram surpreendidos nas suas casas tiveram de "acompanha-los", carregando fardos. Uns seriam soltos. Outros seguiram para nunca mais voltarem. Ngana Mbundu e sua tia (madame Lina, também conhecida por Senhora Kasenda) foram raptados. Os alemães eram já idosos. Consta que as filhas, Érika e Mónica, tudo fizeram junto do governo racista da África do Sul que mandava na Njamba, mas debalde. Nem ossadas foram devolvidas.

segunda-feira, julho 24, 2017

AO ENCONTRO DA "MISSÃO SUBMERSA" DE MBANGU WANGA

Em 1878, pela vez primeira, pastores protestantes Baptistas surgiram em terras angolanas, através do Noqui e foram estabelecer-se perto de uma velha missão católica abandonada em S. Salvador do Congo.
 
Em 1880, surgem na faixa litorálica e nos subplanaltos e planaltos angolenses os missionários da Junta Missionária Americana que se estabelecem em Benguela, no Bailundo e no Bié ensinado a prática da agricultura, música, leitura, artes e ofícios, etc. Dizia o conselheiro Guilherme Augusto de Brito Capelo, em 1887 que «O procedimento destes missionários é irrepreensível e muito diferente do dos que estão em S. Salvador e noutros pontos da costa do Norte. Dedicam-se ao ensino, estudam o modo de se tornarem simpáticos, respeitam a autoridade constituída, e não consta que promovam a intriga…». Tratam-se dos percursores da IECA.
 
Em 1885 estabelecem-se os Metodistas — enviados pela Igreja Metodista Episcopal da América — em Luanda, donde irradiaram para Malange e Nova Lisboa. O pessoal desta consiste em dois homens e duas mulheres, com casas filiais no Dondo, Nhangue-à-Pepe, Pungo-Andongo e em Malange. Tanto numas como noutras o missionário mantém-se por si mesmo, quer professorando, quer trabalhando de ofício. Alguns apresentam diplomas de médicos, e nos pontos onde não há facultativo oficial, vão exercendo a sua profissão com grande contentamento dos habitantes. O ensino é em português, mas leccionam também francês, inglês e alemão». (CAPELO, Brito: Relatório cit., p. 84).

Em "Oiço passos de milhares", Emílio de Carvalho narra a expansão do Metodismo angolano chegado em Março de 1885, por obra do americano Willian Taylor, fazendo-se do mar ao interior, através do Kwanza. O autor assinala importantes Missões evangélicas "protestantes" como: Dondo, Nyanga-a-Pepe, Quiôngwa, Quessua e Quela, para além de Luanda, a "Missão-mãe".
Apesar desse roteiro (sintético), outros pontos de evangelização e até mesmo Missões terão sido criados ao longo do rio Kwanza, nas suas duas margens. O Bispo Gaspar Domingos, em entrevista a Angop (http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noticias/minuto-a-minuto.html) diz que "outras pequenas missões  foram surgindo na área do Libolo e nos Dembos".
Uma visita que efectuei ao Kisongo, comuna do Libolo, onde a chama do Metodismo Unido se mantém acesa, apesar das peripécias vividas pela comunidade religiosa de Cambulungo, levou a revelações até então incógnitas por muitos irmãos metodistas de Angola.

1- A "Igreja" Cambulungo não é recente e já existia no tempo colonial, estando ligada à Missão de Mbangu Wanga, na margem Libolense do rio Kwanza, território do Quissongo/Kisongo (Artur Cussendala).

2- A referência à Missão de Mbangu Wanga é novidade, visto que a literatura conhecida sobre a expansão do Metodismo não se refere a ela.

3- A toponímia Angola confirma a existência da aldeia de Mbangu Wanga, na margem direita do Kwanza, tendo nela existido uma "pequena Missão protestante/metodista" que tomava o nome da comunidade.

4- A população da aldeia de Mbangu Wanga e demais circundantes foi realojada em outro local, seguro, dada a construção da hidroeléctrica de Lawka que inundou o espaço em que se achavam "as comunidades de Quissaquina, Bango-Wanga, Ginguri, Ulumbo, Quinguenda e Dala-Quiosa, que haviam sido implantadas nas margens do Kwanza" (http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noticias/sociedade/2015/7/32/Cuanza-Sul-Mais-200-familias-serao-reassentadas-Quienha,0cc24609-b71c-4680-a7f9-7392b5a56d16.html).

5- Em contacto mantido com o empresário libolense  José Carlos Cunha, que frequenta aquela região, fiquei a saber da existência da Associação de Naturais de Mbangu Wanga.
 
6- João Francisco (62 anos), Carlos Correia (64 anos) e Júnior Armando (70) anos, todos naturais de Mbangu Wanga e membros da associação, confirmam o relato sobre a transladação da aldeia que guarda(va) os restos da Missão, sendo que "nos terrenos da antiga missão criou-se uma cooperativa agrícola".
 
Falta desvendar quando a "Missão" de Mbangu Wanga foi implantada na margem direita do Kwanza, em território do Libolo. Porém, já há suficientes vozes concordantes de que a mesma foi encerrada em 1961, depois de muitos dos seus integrantes (pastores, obreiros e crentes metodistas) terem sido alvo de perseguições e mortes pela PIDE.
 
Dada a "missão despertadora do homem angolano", os evangélicos ou metodistas foram tidos pela autoridade portuguesa como instigadores do nacionalismo, portanto, catalogados como "terroristas".
Depois de actos repressivos contra missionários e seus prosélitos, os alunos que ficaram sem mestre receberam um professor enviado pela Missão Católica de Calulo, leccionando apenas até à terceira classe, tanto aos estudantes abandonados da Metodista quanto aos da própria Católica.
 
Consta que dentre os que estudaram em Mbangu Wanga o destaque vai para o Eng. Bernardo Campos, sendo mestre Baptista Pedro Gabriel.
 
Hoje, a aldeia de Mbangu Wanga não tem sequer uma Classe (espécie de capela) Metodista. Apenas a aldeia de Quienha, que dista aproximadamente quinze quilómetros (comuna do município de Moussende) mantém acesa a chama e a obra evangelizadora Metodista.
 
Da antiga "Missão" de Mbangu Wanga ainda restam, segundo meus narradores (Júnior, Correia e João) escombros do que foi a igreja-escola e a casa pastoral, tutelados, na altura, por pastores negros, recebendo visitas regulares de missionários americanos que se encontravam na Missão de Quiôngua (margem esquerda do Kwanza, Malanje), sendo, à data, André Dias dos Santos o tradutor dos missionários americanos que para lá se deslocavam periodicamente.
Para além dos equipamentos imobiliários acima citados a "Missão" também possuía lavras que atendiam o sustento dos missionários.

Texto publicado no Jornal Cultura (Angola) edição de 15 a 28 de Agosto/2017 

quinta-feira, julho 20, 2017

VIAGEM AO QUISSONGO

"Se for contra LCB num aguenta. A unita só tem boca no Quissongo!" . Já são poucos os que ainda recitam essa canção do meu tempo de meninice, em Kalulu (Calulo), nas décadas de 80 e 90 do séc. XX.

O Quissongo, zona recôndita do município do Libolo, era intransponível, dada a sua localização geográfica e ocupação pela rebelião armada, na altura, fazendo daquela sede comunal o seu bastião no tempo da guerra fria e conflito pós-eleitoral.
Conheci a sede comunal do Kissongo a 15 de Julho/2017. O Quissongo é o reflexo do Libolo mais profundo e (ainda) "original" com a sua cultura, ritos e actos de passagem em estado puro. A sede comunal é uma (antiga) vila no meio da vegetação encontrando-se, aos pedaços, devido à acção humana e desgaste do tempo... vai havendo remendos ao que sobra e tímida inovação, mas faltam dois catalisadores fundamentais: estrada e telecomunicações.


São perto de trinta e cinco quilômetros que gastaram não menos de duas horas ao volante de um 4X4 em excelente estado técnico. A picada que separa Kalulu do Quissongo é sofrida, estreita com declive acentuado, curvas apertadas, buracos, crateras e pedras no traçado (para piorar)...

À entrada da circunscrição, um túnel natural. Árvores que ladeiam a picada fazem arco, procurando abraçar-se, o que representa um regalo a quem vai ao Quissongo. O chafariz "dia-e-noite", cuja captação vem da montanha, resiste às intempéries e aos desmandos dos homens. A água só falta se alguém sabotar o tubo. Porém, a bela tem senão:
Mal o sol se esconde atrás da cordilheira montanhosa e paleolítica, a escuridão canta alto. O gerador de electricidade, pertença da administração comunal, há muito que não é ligado por falta de dinheiro para a compra do gasóleo. Como consequência, a televisão inexiste, assim como a comunicação telefónica. O sistema comunitário "liga-liga" (funciona por meio de antena receptora de sinal por via satélite) também engorda de poeira. O Quissongo, apesar da vontade de seus aldeões em ser cidadãos do mundo, continua" distante". Pior ainda porque, conforme se conta, "o empresário que estava a financiar a montagem da antena de uma operadora de telefonia móvel também desistiu devido à crise financeira.
A antiga vila tinha mais infraestruturas e serviços concentrados do que a sede da comuna da Munenga, também no Libolo. A Direcção dos Serviços de Agricultura e Florestas (DSAF) estava representada no Quissongo. As casas eram bem concebidas, feitas de tijolos e cobertas de telhas, possuindo no passado água canalizada.
No Quissongo ainda falta o comércio que pode ser despertado pelo asfalto. "Temos de pensar no país que é eterno, assim como os colonos vindos de longe construiram no meio do mato aquelas estruturas que olham silenciosas para nós com pena".
Estamos convictos de que "a estrada aproxima e as telecomunicações integram aos localidades e os povos ao mundo".
- Camarada chefe, aqui não há luz. Dinheiro também não há. O divertimento dos miúdos e dos jovens é só mesmo jogar a bola e beber makyakya. Manuel Sende, o meu interlocutor, é um jovem ainda cheio de esperanças.
- Estamos a esperar que reparem a picada e a energia chegue também aqui. Os mais velhos dizem que no tempo colonial nem Kalulu torrava farinha com o Quissongo! Terminou com um sorriso ténue.
Do ponto de vista político-partidário, vi mais propaganda do MPLA e do seu candidato. Dos antigos ocupantes, apenas uma solitária bandeira na sede comunal. Outra trémuma e quase já sem cor respondia pela coligação casa-ce. Dos demais concorrentes às eleições de Agosto, nem ouvir falar.
- Agora, os garimpeiros estão também a apanhar tareia no seu antigo "acampamento". Confidenciou um aldeão, com ar sisudo quando perguntado sobre a oposição política.
- Eles atrasaram o Kissongo. A nossa vila está em pedaços. Prosseguiu o mais velho para rematar: - Sabemos que vamos ganhar as eleições, até aqui no Quissongo, mas temos de ter coragem e pensar no país que nunca acaba. Temos de fazer como os colonos que, mesmo saídos de longe, construíram no meio da mata coisas que duram até hoje. Essas casas, se fossem pessoas, estariam a nos olhar com pena de não termos acrescentado nada ao que recebemos na independência.


 

 


 
 


 


 



 


 
 
 
 




 





 

sábado, julho 15, 2017

APANHEM O ANTI-MOTIM

Oliver Ngoma, músico gabonês de feliz memória, apresentava-se em palco com um casaco preto, com ou sem mangas. O "casaco Oliver Ngoma" tinha sido uma febre entre a juventude de Luanda e de outras paragens angolanas. Eu tinha votado nas eleições de Setembro de 1992, um jovem portanto.
 
As antigas TGFA tinham uma farda malhada, distinta entre os uniformes militares usados pelas FAPLA. Foi uma dessas camisas que, sendo alfaiate, adaptei um "Oliver Ngoma" sem mangas. A escassez aguça o engenho. Não tinha meios para comprar um "origon". Desmanchei-o e voltei a costurá-lo, invertendo as faces: a malhada que mostrava as características típicas de uniforme militar ficou por baixo. A simplesmente verde ficou por cima. Os bolsos eram todos cheios. Dava gozo usá-lo por cima de uma tshirt.
 
No defeso de 1993 fiz-me à aldeia de Pedra Escrita. Os kwaca do bairro viram o meu Oliver Ngoma estendido e descobriram que tinha sido uma peça adaptada de uniforme militar.
 
- Esse gajo é anti-motim. - Sabularam em Umbundu, esquecendo-se que a minha mãe percebia e experimentava aquela língua nacional, dado o convívio prolongado com os falantes da mesma.
 
Quando foram para "rusgar" o casaco e o dono, a peça já se encontrava enterrada, sem o meu conhecimento. Doeu perdê-lo. Tinha me consumido várias horas de labor na OLIVA 50 do tio Ramos Ngunza Mungongo, em Luanda. Não foi fácil desmanchar todas as peças e as recompor. Porém, a minha mãe salvou-me do "subterfúgio contundente" de que andavam a procura para me "despacharem" ou torturarem. Era no tempo em que o chefe máximo dos kwaca gritava a todos os ventos que "os anti-motim estavam a apanhar no focinho".
 
Terá sido a última peripécia. Foi subindo a idade e a responsabilidade para com a própria vida. Dai em diante, o meu combate passou a ser político, na Jota do Rangel, contribuindo na desacreditação dos "homens da guerra". Enquanto jornalista, anos mais tarde, fiz algumas amizades com militantes esclarecidos daquela formação política, porém, os factos vividos mantêm-se intactos na memória e cada um que saiba e queira lê-los pode daqui tirar suas ilações.
Guerra jamais!

sábado, julho 08, 2017

MODA DE RUSSOS E CUBANOS

Terminava 1993, a guerra civil, depois das primeiras eleições multipartidárias, estava no auge. Em Lusaka tentava-se salvar o que restava do acordo de Bicesse. Porém, só em Novembro do ano seguinte o ministro Venâncio de Moura e Manuvakola assinariam o acordo de Lusaka que também não veio a funcionar como se expectava.
Até então, nunca a UNITA tinha estado em tanto lugar como depois das primeiras eleições.
 
Não pude estudar Geologia e Minas, no Sumbe, nem pude ir ao Quéssua fazer agronomia. O IMAQ, "irmão gémeo do IMEL", financiados pelo BAD, tinha acabado de abrir as portas mas, aos tiros e emboscadas, seria missão impossível ir a Malanje com a família espalhada entre Pedra Escrita (Libolo) e Luanda. Até Sumbe, em ambiente de guerra, ficava longe. Decidi fazer um curso de informática e aprimorar conhecimentos de electricidade de baixa tensão. Já era um alfaiate, quase. Os dois anos com o kota Goncha, em Kalulu, e outra temporada em Luanda com o kota Ngunza Makongo permitiam-me biscatear sem dificuldades.
 
Chegadas as inscrições para testes de aptidão no IMEL, curso de Jornalismo, consegui passar no exame. Surge daí uma nova necessidade em termos de atavios para iniciar a temporada académica em princípio de 1994.
 
Em Dezembro, fui à Pedra Escrita para mais um saco de macroeira. Andava-se por cima de camiões e muitas das pontes que haviam sido recuperadas para permitir a livre circulação de pessoas e bens, antes das eleições, estavam novamente debaixo d'água. A que fica depois do desvio de Kalulu, na EN 120 e a do Longa, depois de Lususu, são exemplos.
 
Desci na Munenga e segui a pé até Pedra Escrita. Era um jovem atrevido e destemido. Ignorava que os homens estivessem por perto. E chegaram dois dias depois. Alguns já me conheciam. Desta vez, os carrascos eram os meus ex-colegas da pré e primeira classe, pessoas com quem brinquei na infância, convertidos em kwaca de última carruagem. Esses chegava a ser mais perigosos dos que os Unita originais.
O kota Goncha fazia suas costuras: bainha a um pano, remendo por cá, recostura acolá. Eu ajudava o meu mestre e aproveitava uns biscates quando fosse possível.
Os homens da UNITA encontraram-me uma tarde a costurar, em casa do Velho Xika Yangu, e exigiram que eu devia diminuir o tamanho da minha "jens buluada" (azul e larga). Neguei fazê-lo. Foram buscar um alfaiate deles e quando regressaram eu havia desmontado a máquina e despido as calças.
Diziam ser moda de russos e cubanos e que o doutor deles se opunha àquela forma de vestir. Trungunguei. Não aceitei que diminuíssem a largura e o tamanho da boca das minhas calças de eleição. Porém, enquanto não completava o saco de macroeira, tive de abdicar de usar aquelas calças, até retornar a Luanda onde, se dizia, estavam na moda.

sábado, julho 01, 2017

KALULU: ATAQUE EM DEZEMBRO DE 1989


Corria Dezembro e corria o ano apressado. Naquela semana era só sobre o natal que se falava e "mánada", embora rumores sobre passagem de kwacas por certas aldeias, raptos e saques soavam cada vez mais intensos e próximos. Era um roncar permanente nos ouvidos de todos kalulenses: O horroroso ataque dos unitas à vila de kalulu, perpetrado a cinco de Setembro de 1983, podia repetir-se mais dias, menos dias, caso a guarda não fosse reforçada e com vigilância redobrada. 

Para refrear o temor, e conferir tranquilidade o batalhão de Luta Contra Bandidos reforçava a preparação combativa e cantavam manhã cedo:

"Wazala kiba kyongo/Savimbi wakizalesa/wazala kiba kyongo/ Savimbi wakizalesa, nzaye!
...
Ó Savimbi, ó Savimbi tundako/ó Savimbi, ó Savimbi tundako ko Kisongo!"

Os estudantes da escola do II e III níveis Kwame Nkrumah de Kalulu já gozavam férias natalícias. Eu era aluno alojado no internato e muitos que se encontravam na minha condição já tinham partido ou arrumado as malas para ir gozar o natal com seus familiares. kota Ngunza-a-Xika que durante dois anos fora meu tutor estava naquele ano a leccionar na Munenga. Tinha abandonado a vila. Estava porém na vila e no dia de Natal partiríamos juntos para Munenga e depois à Aldeia de Pedra Escrita, aonde se tinham aglomerado os aldeões da extinta Limbe. Estávamos em Dezembro à porta do natal, também dia festivo dos kwaca.

E parece que estavam sem logística para a comemoração ou queriam aproveitar-se da festa para impor o luto e roubar os parcos haveres dos kalulenses.

Estávamos no Musafu (Mussafo), entre a padaria e a Missão. Madrugada de natal. Alvorada no dizer deles. Os tiros começaram pela Banza, Depois pela Kapopa, um pouco também pelo lado das mangueiras, onde estava uma guarnição das FAPLA (LCB) e pelos lados do velho Duas-Horas, à saída para Vila Flor e Ndala Usu. Só não entraram pela Kibuma e foi lá que nos refugiamos entre pedregulhos na montanha. As balas assobiavam nervosos quando não pelejavam com as cadeias paleolíticas, terminando aí a sua fúria.

As LCB pelejaram até onde as forças permitiram, mas tiveram de desmontar o gatilho do "grau de um pé" e outras peças médias de artilharia. A vila estava tomada. Seguiu-se fogo, sangue e fumo.

Partiram o tribunal, a conservatória dos registos, a polícia, entre outras instalações. Mataram dirigentes e civis indefesos. Raptaram jovens para reforçar suas fileiras e sexuar forçosamente as raparigas como era seu costume. Roubaram sal, peixe seco, roupas e tudo. Desta vez não os vi, não. A experiência da Munenga me tinha alertado para fugir ao lado seguro. Ao mato ou morro.

Ficamos na mata e morro até os kwaca abandonarem a vila em chamas e choros. Partimos, a pé, seguindo atalhos até proximidades da Banza de Musende, a caminho da Munenga. Lá pernoitamos e no dia seguinte fizemos o resto dos 40 quilómetros até à sede comunal para mais uma noite. No terceiro dia Ngunza e eu completamos a distância de mais 26 quilómetros até Pedra Escrita onde três dias depois os Unitas nos encontrariam. Tive de procurar refúgio na aldeia natal de minha mãe, Mbangu-Kuteka, fazendo mais trinta quilómetros a pé. Lá fiquei até Finais de Março de 1990.

De regresso à Pedra Escrita, deparei-me novamente com os Kwacas que ali haviam feito morada. Até Munenga, de regresso à vila de Kalulu, fui acompanhado pelo soba, bem relacionado aos Kwaca, que comigo não frocou sequer uma palavra durante o tempo que durou a marcha de 26 quilómetros.

À chegada, já o sol visitava as traseiras das montanhas. Arrebol. As populações começavam a retirar-se para Kanzangiri. Sorte minha, o chefe Gika (oficial da segurança do Estado) que me conhecia bem, vinha de moto do Dondo e decidiu levar-me até Kalulu. Já as aulas levavam três meses e o meu nome estava riscado da lista.

Consegui justificar as ausências e tive de aplicar a quinta mudança para recuperar as aulas perdidas. Por sorte, na fuga eu tinha esquecido a roupa e levado os livros. Valeu-me ter suportado o peso até Mbangu de Kuteka, pois lia e exercitava.

Quando saiu a pauta, apto, pedi certificado e guia de transferência para Ngola Mbandi, em Luanda, onde fiz o III nível.