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domingo, agosto 29, 2021

DE LUANDA A MICONJE

O mapa, conseguido no google, marca 1025 quilómetros, numa imaginável viagem terrestre que passaria por Matadi, RDC, para cortando toda a extensão, sul-nordeste, da província de Cabinda.
Foi, porém, de avião que fiz a primeira etapa da viagem, com duração aproximada de uma hora. Na verdade, foram menos, se termos em conta a curta distância em linha recta entre as cidades de Luanda e Cabinda, de onde parti por estrada até Miconje.
A segunda etapa foi até Buco-Zau, passando por Lândana, onde a terra abraça o mar numa alegria contagiante, recebendo o Chiloango que nele se entrega preguiçoso e prazeroso.
Numa das aldeias de Lândana, onde as laranjas e bananas imperam, fizemos a primeira paragem numa praça erguida pela edilidade.
O meu estômago pedia mesmo cikwanga e cabrité ou makayabo, mas eram bananas maduras e verdes (de mesa e banana-pão), citrinos e tubérculos de vária sorte que se faziam aos nossos olhos. Comprámos as gordas e suculentas laranjas e as dóceis bananas.
Rumamos. Pé no acelerador e no travão, transpondo florestas, buracos, penhascos, curvas e contracurvas até nova paragem.
Era uma construção erguida sobre um monte e com uma grande escadaria.
Não resistindo ao encanto de toda aquela exuberância no meio da virgem floresta, perguntei o que era.
Hospital Alzira da Fonseca
- Alzira da Fonseca. - Responderam-me.
- Mas quem é essa senhora? Fazendeira? Empresária? Rainha? - Mil perguntas que o vento levou.
- Não, chefe! É um hospital regional, o maior nestes municípios de Lândana, Buco-Zau e Belize.
Engoli.
Partimos para a floresta. Rica em recursos florestais. Verde e virgem ainda. Uma donzela mesmo. O maior espanto, porém, foi a riqueza que a floresta esconde, qual kisonde brilhante entre a areia movediça.
- É ouro! Há ouro! - Gritou o rapaz que nos servia de cicerone.
Dez mineiros, dois seguranças, um militar. Observamos sem questionar.
- Aqui segurrança é necessárria por caso de garrimperros de orr. - Explicou o cicerone, acrescentando que "tirrotero nunca ouvi. É mesmo só prevenção dos garrimperros".
Mais estrada, sinuosa como sempre, com curvas intensas e chuva miúda a molhar o chão vermelho-preto e o carro cansado e resmungão. Há serra adiante. Belize ficou para trás. A zona 33 de Miconje é caminho para a histórica Dolisie, no Congo Brazza, baluarte do MPLA. Aqui, Miconje, a floresta é mais fechada. As árvores são altas com copas largas e algumas parecem lombrigas sem fim. Outras, largas sem medida. Há ouro também!
PS: publicado pelo Jornal de Angola de 05.09.2021

domingo, agosto 22, 2021

O RANGEL DOS ANOS 80 E O KOTA KAMBWALANGA

Kaputo (aquém)

No Kaputo dos anos oitenta, vivíamos todos como família de mesmo sangue. Tínhamos, grande parte dos moradores da Rua de Ambaca e adjacentes, a origem kwanza-sulina, a língua comum que nossos pais glosavam sem levar mão à boca e a cultura que era forte sem as frivolidades desses tempos.

Filho de vizinho era filho mesmo ou sobrinho. A irmã do amigo era mana e todos os de cabelo branco era avós. Entre os tios, aqueles que chamavam nossas mamãs por cunhada ou mana despontava Kambwalanga.
- Wanañe, a mon'Elombo?¹ - Era assim que me saudava, sempre que cruzasse com ele, pelos lados dos chamados prédios dos cubanos, à antiga floresta de eucaliptos do Rangel, onde prestava serviços de apoio doméstico.
Glosava, embora raras vezes e só com estranhos, algum português. Uma comunicação do tipo "tira água ou dá pão" como costuma brincar a minha progenitora, fazendo alusão aos que possuam pouco ou nenhum traquejo no uso da língua portuguesa. Kambwalanga, de seu nome, era um homem impoluto, um poço de músculos, força e resistência que usava para levar isso e aquilo, montar e desmontar, quando não fosse mesmo para travar até "ventos". Era visto a andar frequentemente a pé, sempre vestindo calções à moda alemã. Aliás, nas conversas com minha mãe e seu irmão Francisco Sentido, que visitava com frequência, costumava falar (em seu materno Kimbundu) sobre a vida de fazendeiros alemães que habitaram o Libolo, a exemplo "Bikman" e Krosigk" de quem herdou o gosto pelos calções.
Demente para uns e consciente para outros, Kambwalanga apresentava ligeiros distúrbios psicossomáticas recortados com momentos de aparente lucidez que lhe permitia manter conversas com fio condutor e com recurso à memória que parecia de grande fertilidade.
Apesar da sua compleição física, nunca o vimos lutar ou entrar em troca de dislates, como era comum em outras pessoas com distúrbios.
Os miúdos do meu tempo, anos 80 do século XX inventaram que Kambwalanga “era o único libolense que tinha percorrido a pé os cerca de 280 quilómetros que separam Kalulu de Luanda, dispensando todas as boleias que lhe tinham aparecido”. Mera invenção dos petizes.
Não se lhe conhece nenhum filho, ou vontade de construir ou arrendar uma casa em Luanda. Para os que se encontrassem no Libolo, Kambwalanga vivia com o irmão Francisco Sentido que trabalhava na Casa Americana. Porém, só o visitava com frequência, depois de ter deixado de com ele partilhar o quartinho na Rua de Ambaca, ao Kaputo. Ele dormitava debaixo de prédios, entre os conglomerados B e C, ou onde a noite o encontrasse.
Nunca alguém apareceu a reclamar dívida contraída ou paternidade não assumida, embora se contasse que antes de apresentar pequenos distúrbios emocionais sazonais Kambwalanga fora um homem com casa, lavra de meter inveja e uma linda mulher.

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¹- Estás bem, filho da Kilombo?

domingo, agosto 15, 2021

NÂMBWA E O "PROTESTANTISMO"

Igreja "Apostante". É assim que alguns idosos ainda tratam a Metodista. Apostante é uma corruptela de Protestante, nome por que ficou conhecida a corrente Wesleyana trazida a Angola por William Taylor, no longínquo Março de 1885.

O Metodismo é marca na região de Nambuangongo. Todas as aldeias têm uma, sendo na maioria delas a única. Mas quem descuida do que é seu abre brechas para outros. O monopólio metodista sofre "ataques" que preocupam alguns crentes fervorosos da região de Nambuangongo.

- Era a única até ao fim da terceira guerra, mas agora as igrejas estão a surgir mais do que cogumelos em tempo de chuva. - Reclama o ancião Afonso José que diz não se lembrar quando se tornou metodista.

- Aqui, no Nâmbwa, todos viemos do ventre já metodistas. Mesmo hoje, as pessoas ainda nascem metodistas. Pena é que os jovens de hoje em dia se comportam como porcos que quando lhes soltamos do curral já não querem saber do dono que os criou.

José Afonso, filho primogénito do mais-velho Afonso, diz-se, hoje, um "crente em tremura". Explica que promessas não realizadas acabam por desanimar o obreiro.

- É melhor trabalhar a olhar somente para Cristo do que fazer promessas que nunca se realizam. - Desabafou.

Desafiado a argumentar a razão da sua ambiguidade, José Afonso larga sem rodeios:

- Trabalhei durante muitos anos no Departamento de Trabalho com Crianças do Distrito. Andei muito a pé de aldeia em aldeia. Todas essas aldeias (apontava para a mata cerrada onde só ele pode determinar a localização dos aglomerados) tinham os programas e os executavam com a minha supervisão. Prometeram-me uma mota. Aí pensei: vou usar a minha já que vai ter a outra substituta. Até hoje, nga kinga nga lembwa[1]! Como é que se vai manter a igreja sem trabalho com crianças? Como é que se larga crianças em gozo de férias como se fossem cabritos sem aprisco, crianças sem actividades da EBF?

Antevendo um futuro sinuoso, caso as coisas não mudem, e buscando uma analogia com o partido do seu progenitor, num misto de brincadeira e conversa séria, José Afonso atirou.

- O camarada sabe o quê que fez o MPLA forte e numeroso? Diz se sabe, pelo menos aqui no Nâmbwa.

O cronista ficou calado para deixar que ele mesmo respondesse.

- Está aqui o meu pai Afonso. É da Fê-Nê-Lá. A avó Treza, que está a nos ouvir, é da base de Kaji Mazumbu, desde jovita[2], onde foi professora guerrilheira do MPLA. Eu já combati nos dois exércitos. Na Fenê[3] fui com o pai Afonso que está aqui. Depois, quando abri os olhos, fui FAPLA. Igreja que não tem crianças e jovens vai ficar só para os velhos. Lhes pergunta se estou a mentir. - Desafiou, olhando para os dois idosos.

Feitas as deduções e colagens, o fio de raciocínio leva-nos a entender que o movimento do seu pai ficou confinado à terceira idade por ter desinvestido ou nunca investido em crianças e jovens.

- Já que o irmão diz que é escritor e tem amigos na Conferência que o leem, leva-lhes o recado. Um dia vamos acordar só com velhos na igreja. - Terminou, já a fazer a curva para o seu aposento. Era hora da janta.

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[1] Fartei-me de esperar.

[2] Púbere, adolescente.

[3] Alusão à Frente Nacional de Libertação de Angola.

domingo, agosto 08, 2021

O LIFUNE QUE RASGA O BENGO

Encaixado, quase à força, entre paredes rochosas e montanhosas, no seu curso montante, corre sem pressa, pelas matas virgens interiores até afogar-se no Atlântico, qual casal cansado e saciado de coito prolongado.

O seu leito rochoso é facilidade para as travessias e o surgimento de algas que alimentam cardumes. Vimo-los deleitando-se com dendém e enchidos levados de Luanda para tentativa de pesca lúdica, espraiando-se ao sol de meio-dia.

O Lifune é vida!

Nos curtos rápidos e escarpados, suas águas sussurram gemidos melodiosos, ejaculando sêmenes-sementes em paradisíacos ilhéus férteis e sombrios do médio rio. É o Lifune, cujas margens verdejantes, estão repletas de húmus que alimenta a selva fechada com árvores grossas, frondosas e desejosas de beijar o sol. É nessa densa floresta, outrora acolhedora de destemidos guerrilheiros contra a presença colonial, que se desenvolve a agricultura. É desse mato fechado que sai a banana, a mandioca, a jinguba, o milho, o dendém, o maluvu[1] e a cana com que se fabrica lungwila[2].

Na Lunda, perto de Saurimo, há outro rio, o Lufune, quase homógrafo, que é menor no caudal e na ousadia. Mas tem ngandu também e dá nome à aldeia de Ngandu Lufune kexi kunyonga[3]

 



[1] Vinho de palma.

[2] Aturem-me.

[3] Jacaré assassino e irracional


segunda-feira, agosto 02, 2021

UM MUKONGO E TRÊS MBALUNDU EM KINGIMBI

A região de matas cerradas com capim esparso nas encostas ou cume de montanhas chama-se Kingimbi, Nâmbuangongo, margem do rio Lifune. Na picada sinuosa, curvilínea, estreita e coberta de capim e arbustos somente os carros todo-terreno ou tractores ainda ausentes "torram farinha".

O asfalto, aí onde existe, fica longe. É a floresta e seus mistérios quem mais gritam. A vida é pacífica para o trabalho árduo dos camponeses, ainda, "importados" em elevadas doses do planalto angolano.

Estes, tal como no passado, sem mesmo temer as chacinas "upa-lumumbistas[1]" de 1961, são os que mais se prestam ao trabalho agrícola por conta de outrem, aceitando uma estada de ano e tal para uma renda de Kz 25 mil/mês.

- É esse dinheiro que quando multiplicamos por doze ou mais, dá para comprar boi e vaca na terra de origem onde os que têm ajuizo se tornam também empreendedores.

Outros, porém, se tornam casamenteiros de várias akâe e produtores de vários filhos.

- É o azar que traz o dinheiro. - Diz Francisco.

António, Francisco e José, jovens vindos de Kaciwngu, Wambu, juntaram-se a Pedro, um mukongo, que chefia a equipa. Estão a 12 quilómetros da aldeia mais próxima e 14 da estrada asfaltada que vai a Muxaluando, sem lá chegar negra-betuminosa. Os três jovens, 25 anos abaixo, renderam outros manos que já fizeram o seu pé-de-meia e se tornaram investidores também. Preferem contratos de permanência anual. Dos três, só um bebe. Outros dois são da igreja Sende[2]. Por isso não manjam carne suína nem fumam. Álcool, dizem, só na ferida.

- Assim mesmo, como fez o mano Angostinho, quando terminar, vou para a aldeia e faço como ele. Compro duas cabeças e começo minha lavra.

Na fazenda, em Kingimbi, não têm gastos com alimentação.

- O patrão é nosso amigo. - Dizem.

Leva-lhes comida, bebidas não alcoólicas, roupas e têm placa fotovoltaica e parabólica.

- Ainda só falta mesmo jornal e revistas para se divertir. -Pediram. por isso ficaram com os jornais do cronista que foram devorados como no tempo em que o JDM me chegava actual e quente com seis meses de atraso, distribuído pela CEDIL dos anos oitenta.

Algo parece repetir-se, embora em moldes repensados.

Os ovimbundu, "dada a sua paciência", obediência e resistência em trabalhos manuais árduos foram os trabalhadores predilectos nas tongas. Povoaram os Kwanzas, Malanje, Uije, Cabinda, Bengo e Zaire. Temo-los em toda Angol'Agrícola.

Antes eram recrutados à força, soba a capa de contratos esclavagistas que davam, ao fim de um tempo sem fim, em pano e cobertor de quinta categoria, meio quilo de fuba e duas tábuas de peixe seco acastanhado. Regressavam ou nunca às suas terras onde eram re-escravizados por outro colono. Os que nunca voltaram constituíram comunidades culturalmente coesas, ensinando a língua e cultura a seus rebentos. É pela sua dispersão que "a angolanização[3] dos ovimbundu é meio caminho para a solidificação do sentimento de angolanidade por todo o país".

Nos dias que correm, recorrem aos contratos. Mal remunerados a olho nu. O trabalho agrícola manual é agreste. As matas montanhosas do Nâmbwa são impenetráveis. Os tractores, inexistentes, podem lavrar as margens ribeirinhas, porém, a perna e a mão cuidam da montanha. Por isso, são essenciais os jovens "mbalundu[4]" fortes, sem vícios e sem família que ganham e juntam tostões para uma vida livre e empreendedora. Há nesta imensa Angol'Agrícola vários António, Francisco e José que como os citados trocam força abundante por dinheiro necessário. Mas também aprendem. António, Francisco e José refinam a pesca fluvial, aprimoram a montagem de armadilhas várias para os animais e aperfeiçoam a defesa ao largo da propriedade. Saberão, com certeza, cuidar das suas ou concorrer em outras fazendas mais estruturadas e melhor remuneradas.

A esses jovens valentes, o cronista abraça e encoraja. Só no dicionário o benefício surge antes do trabalho!

 



[1] UPA=União dos Povos de Angola, predecessora da FNLA. Lumumba foi o 1º Primeiro-Ministro do Congo Belga independente.

[2] Adventistas do Sétimo Dia (corruptela em Umbundu).

[3] Criação de sentimento nacional ou patriótico.

[4] Ovimbundu (por extensão).