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domingo, dezembro 20, 2020

DOS HOMENS AOS PÁSSAROS

Paranhos, terra do Silva tido como fundador do Kwitu, kaphutu cikolonya. Esse fontanário já serviu homens num passado que a geração actual de jovens não faz ideia. Muitos a entrar aos cinquenta também. A água encanada chegou à casa. Porém, lá está o fontanário, construído em pedra, cal e ferro. Persiste no tempo, desafiando-o tenazmente. Nem a lumpenagem põe mão ao que serviu o público, é público e memória colectiva.

São, hoje, os pombos e cucos que dele usufruem.

Tomara que chegue também o nosso dia da reforma dos fontanários!

A imagem pode conter: sapatos, planta e ar livre

terça-feira, dezembro 15, 2020

A REPRESSÃO DEBAIXO DE ESPINHOS

Nos anos 80 do Sec XX, com a guerra crescendo de intensidade, raptos perpetrados pela guerrilha de farda verde, fome e deslocados, passar noites na mata para escapar à surpresa madrugadora era dia sim, semana também no meu Limbe¹.
Uma das situações incômodas que conservo na memória era o facto de se ter colectiva e familiarmente imposto que "aqueles que tivessem tosse não deviam tossir e as crianças não deviam sequer reclamar a teta através do choro".
- Omona wu otujibisa!² - Dizia-se ao primeiro ai.
Minha mãe, viúva na casa dos trinta, ainda alimentava a Emília e havia pessoas com gripe e constipação, fruto das intempéries climatéricas a que nos submetíamos. E fazíamos o esforço em não tossir nem soltar um espirro.
Quão duro era reprimir um espirro ou tosse, manifestações espontâneas difíceis de esconder!
Hoje, de baixo de coroas espinhosos que envolvem o vírus do momento, viajei 8 horas com dois senhores (mãe e filho) que engripados ou sofrendo de doenças respiratórias que os convidavam a espirrar e ou tossir, não podiam soltar tal momento espontâneo e sublime, por respeito aos demais co-passageiros e também por receio de possível estigmatização.
Lembrei-me do meu sofrimento há trinta e sete anos no Libolo e durante a viagem inteira sofri com eles.
Afinal, um tossir espontâneo ou um espirro seguido de um "santinho" fazem parte da natureza humana e dão fôlego aos homens viventes.
Que se vá embora esse corona!

¹ Aldeola agrícola da comuna de Munenga na EN120. Foi extinta pela emigração dos seus habitantes e ficava a dois quilômetros da actual Aldeia de Pedra Escrita.
² Esta criança vai levar-nos à morte (Kimbundu).

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, céu, grande plano e ar livre

terça-feira, dezembro 08, 2020

A CICATRIZ E O CAFEEIRO

 Certo dia encontrávamo-nos no rio ou à beira. Calculo que teríamos ido "kanyunar"¹ muzwa². O rio, povoado em bagres e tuqueias pelo meu progenitor, já ia conferindo autossuficiência à família em termos de peixes e caranguejos. Esses, os hala, apareceram antes da minha família.

Na floresta ribeirinha, havia umas raízes "aéreas" grossas e longas que nos serviam como baloiços. Havia outras brincadeiras mais caricatas que não narro nessa prosa.
Posto eu em uma dessas "raízes-baloiço", terei sido picado por uma formiga, tendo-me desequilibrado e caído. No chão, fui recebido por um pau aguçado que me furou a bochecha. Devia ter três anos.
Meu irmão com quem me encontrava fugiu de medo. Corajoso, fui andando a caminho de casa e quando cheguei ao cafeeiro, peguei em uma das folhas e tapei a ferida, impedindo a saída do sangue.
E não é que a cura foi com pó de café?
- Ele trouxe a ferida e o seu próprio remedio. - Terá dito Ngana Muryangu, neu avô paterno.
Hoje plantei (levei à terra firme) o meu primeiro cafeeiro das quatro plantas que o amigo Mário Botelho De Vasconcelos me ofereceu. Não perguntei se é da espécie arábica ou robusta. Seja de que tipo for, posso conferir-lhe sombra, se robusta, ou eliminar sombra, se for arábica.
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¹ Visitar armadilha
² Nassa. Artefacto para apanhar peixe.

terça-feira, dezembro 01, 2020

OS ESCOMBROS DE JANJO E A PICADA DE CASSONGUE

A manhã era fria, 15 graus Celcius, e no Horizonte estava marcada a cidade de Luanda. A viagem seria longa: Huambo-Cuito e voltar ao Huambo (Chicala Choloanga) e rumar em direcção ao Cuanza-Sul ou seguir do Cuito ao Andulo, Mussende, Quibala-Luanda.

Tão logo me aproximei do Cuito, liguei a um amigo:
- Kamba Fernando Chicapa, tu que conheces bem o Andulo, diz-me ainda como está a via Cuito-Andulo-Mussende.
- Epá, tens aí uns 40 quilômetro de terra batida entre Calussinga e São Lucas. Quanto ao Mussende-Cariango, na tua Província, já sabes. - Advertiu.
Ansioso em conhecer Mussende um dos seis municípios cuanza-sulinos por visitar (Quilenda, Ebo, Conda, Seles e Cassongue), decidi voltar ao Huambo (Chicala-Choloanga), explorar a "nova" via que liga o Bailundo ao Cassongue e conhecer a vila que fica encravada fora da EN120.
Entre o belo e o constrangedor que vi, registei essa imagem que mostra o que sobrou da missão católica de Janjo, Cuanza-Sul, município de Cassongue.
Calculo que no seu tempo podia pleitear com a "catedral" de Ambaca. É uma pena que a guerra e o descaso a tenham levado a este estado.
Vi, à entrada central (lateral direita), duas crianças vestidas de batas brancas.

À volta do imóvel podem ser vistos outros escombros sinalizando uma forte presença missionária (escola, hospital e outras dependências habituais).
Na ânsia de aumentar o meu conhecimento sobre o Cuanza-Sul, procurei por informações sobre a distância até à  Vila de Cassongue que, há muito, pretendo conhecer. Não passam muitos anos que vi uma matéria na televisão em que se dizia que "Cassongue já tem asfalto".
- Ó mano, bom dia. Daqui, do desvio, para a Vila sede quantos quilómetros são?
- Bom dia chefe. É 'mbora perto.
- Sim, mano. Mas quantos quilómetros? A estrada está boa?
- São trinta e sete quilômetros de terra 'abatida'. Mas pode andar bem. Só nuns sítios é que está a nascer lama.
Pensei: trinta e sete quilômetros em terra batida, saltos, lama, eventuais desnivelamentos que podiam danificar o para-choques frontal, gastar mais de uma hora para os dois percursos (ida e volta ao desvio para apanhar a EN 120) ...
- Ó mano, muito obrigado pela informação. Vou conhecer a Vila de Cassongue na próxima viagem que fizer ao Huambo. Se calhar, até lá, o asfalto chegue à vila de Cassongue.