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quinta-feira, dezembro 29, 2016

MANGODINHO NO ISTMO


O óbito da prima Cici, falecida aos 22 anos, quando frequentava o quinto ano de medicina geral, tinha sido menos demorado do que o habitual nas comunidades rurais. Enorme que foi a perda, o casal decidiu espalhar o mais cedo quanto possível os familiares que tinham viajado de longe e se esforçarem a encarar aquela dura realidade. Sendo do ciclo familiar mais próximo, Mangodinho ficou mais umas semanas em Luanda, ajudando aqui e acolá, na recomposição da casa.

A piscina, sua "lagoa imaginativa", precisava de ser esvaziada e limpa. O jardim, verde florescente dias antes, reclamava por rega, poda e limpeza. As paredes interiores, brancas de neve, apresentavam marcas de pés descalços e até mesmo sapatões poeirentos e ou lamacentos. Havia resto de qualquer coisa em algum lugar.

Foi já a fechar a metade do mês que recebeu o convite do coetâneo Mbondondo para conhecer o istmo de Luanda.

Num velho Corolla, que andava resmungão, cortaram a cidade toda pelo meio, até se enfiarem numa língua de terra abraçada pela água salgada. Mangodinho sentia o cheiro à maresia mas não divisava o mar que, à noite, camaleava do azul para negro.
 
- Zequeno, ouviste falar sobre a ilha que levou a nossa prima, não é? É então aqui. Chegamos.

- Ó primo, Mbondondo, ilha é aqui mesmo? E água de sal então está aonde?

- Calma, Zequeno. Não fala alto, porque aqui tem pessoas importantes e podem pensar que somos do mato.

- Mas ser do mato é mal? Então, quando eles vão ao mato, também não nos costumam perguntam "aquela camontanha nome dele é qualé? Aquele rio nome dele é quê?" É mal perguntar em Luanda?

Mbondondo na defensiva, magicava respostas equilibradas. Procurava mostrar aos que os rodeavam que ele era já quase um Kalu. Procurava também não ofender a honra do amigo que tinha uma visão do mundo diferente dos kaluandizados.

- Mas ó Mbondondo, então, aqui na ilha também tem aldeias muito escuras tipo no mato?

- Como assim, ó Zequeno, se as ruas todas por onde passamos estão iluminadas e o bairro tem energia? Onde é que você viu escuridão?

Mangodinho, o Zequeno, levantou a cabeça e com o braço direito esticado levou o seu interlocutor a esticar a cabeça para a mesma direcção do "infindável" Atlântico.

- Epá, olha: essa aldeia aí se parece com a nossa Pedra Escrita. Só tem uma casa com gerador!

Um navio, ao Largo, aguardava ordem de atracar no Porto Comercial de Luanda. Era único no mar do horizonte visual.

- Zequeno, fica espero. Tudo isso que te parece mata é mar. É só água com sal. Água do mar, kalunga-Lwiji. É um rio sem fim. O que estamos a ver é barco longe, no mar. Não é casa com gerador.

Entraram numa tasca e beberam do que o bolso permitiu. Quando o álcool começou a falar mais alto do que todas as vozes juntas, abraçaram-se e choraram juntos.

- Esse é o mar, dá alegria aos caluandas a quem tira stress, aquele cansaço da cabeça de quem trabalha no escritório. Tira sarna às pessoas que vêm da bwala. Mas também dá tristeza. Água do mar é pesada e tem kalema que enrola pessoa, mesmo nadadora famosa no Longa como nós. Kalunga é alegria e morte. - Explicou Mbondondo ao seu coetâneo Zequeno que bebeu mais um trago e adormeceu.

Publicado no caderno fim-de-semana, do Jornal de Angola, 03/06/18, pag. q0

quinta-feira, dezembro 22, 2016

NA HORA DA JANTA

A família, os parentes mais chegados, aqueles que faziam o vem e volta, e os amigos chegados que estavam aí para dar força e encorajar o casal e a filha intermédia, ocupavam três mesas: uma era a do pai com os seus. Falavam conversas de homens que iam da política externa, interna e outras coisas para amenizar o peso do tempo pachorrento. A mãe da jovem de cujus ocupava igualmente uma mesa de dez lugares e falavam coisas suas de mulheres. Na terceira estava a filha, quase a atingir a maioridade, as amigas, colegas e primas. Falavam sobre escola e juventude, não faltando assuntos sobre redes sociais.
Mangodinho preferia um lugar mais discreto. Ora se juntava aos seguranças ora às tias que se abrigavam na parte frontal da casa.
Jantar à mesa, pratos, cubas gasosas, vinho, água.
Mangodinho atento aos movimentos dos ocupantes da mesa masculina. Cada servia uma porção de vinho e bebia com preguiça.
- Mas, esses estão sem vontade ou o vinho que bebem não lhes cai bem? - Ficou a pensar, antes de engendrar a sua táctica do rápido entorpecimento.
Chegou-se à mesa, meio afastado. Serviu comida, o seu funje preferencial. Baixou vinho da garrafa à caneca. Simulou que provava mas deixou o líquido escorrer-lhe a garganta até sentir a última gota. Rondou o ambiente, e viu que não tinha palavras para aquela assembleia.
- Colicença, pai. - Saiu, inclinando o tronco para frente, em forma de vênia, marcando passos a recta-guarda.
Mangodinho não era homem de desprezar o vinho é dormir lúcido. Informou-se sobre a chave da cozinha.
- Está aberta. Disse-lhe a tia.
- Vou buscar água para o motorista que está aí atrás.
A tia aprovou, com o norte-sul da cabeça.
Caneca na mão. O vinho em pacotes de que as mulheres se serviam para temperar estava à mostra. Sacou o canivete da algibeira e fez o corte. Puxou o banquinho, tranquilo. Caneca na pacote na mão. Olhou à volta e ninguém olhava para ele. Os vidros eram espelhados, excepto um que deixava fugir a sua imagem para fora. Estava na direcção do tio, o dono de casa. Encheu a primeira, largou-a goela abaixo. Limpou a boca com a ponta da camisa. Girou a cabeça para se assegurar que estava tudo conforme. Ainda não sentia a casa a se mover nem as estrelas correr. Espiou, de novo, os que ocupavam as mesas no quintal. O tio sempre de olho nele. Menos ele que não o via. O vidro espelhado estava invertido. Repetiu a procissão: caneca na mão, pacote na mão. Um, dois, três, levou o líquido à boca e, sem pausa, tragou a uva.
O tio sempre a seguir-lhe os movimentos. Pôs-se em pé e volteou a casa, regressando por outro caminho até à porta da cozinha.
Mangodinho preparava a terceira e última caneca. Distribuiu olhares para as três mesas e não viu nada que o impedisse.
- Eles estão mbora a conversar coisas deles de Luanda. Vou aproveitar.
Quando a terceira caneca, repleta de vinho, se encontrava entre o chão e a boca, o tio aproxima-se sem que ele se apercebesse.
- Quem está a beber vinho tipo água?
Em contramão, a boca perdeu a agilidade de falar, mas a mão já levava força para a boca. Vinho foi água no corpo de Mangodinho.
- Vai já tomar banho, seu indisciplinado. Vinho aprecia-se. Não é água e não precisas te esconder para beber. Toma banho e vai à mesa que há vinho que chega para te afogares!

quinta-feira, dezembro 15, 2016

MANGODINHO COM NOVAS IDEIAS

Três semanas na Ngwimbi não são vinte e um dias quaisquer. De volta à aldeia, Mangodinho é um homem transformado. À mesa só com garfo e faca, embora garfo à direita e faça à esquerda. Vinho ou caporroto só no copo. A caneca era para outras bebidas. A barba e o cabelo estavam arranjados. As moças da Pedra Escrita, que há muito viam Mangodinho como um velho, têm-no agora como o "jovem mais organizado". Afinal, idade são apenas números. Juventude é o estado de espírito. O sentir-se à vontade, respirar sangue puro, mesmo como oxigénio escasso. Mangodinho deixou de ser tratado por tio. Agora é mesmo Manzequeno pra cá e Mangodinho pra lá.
Entre os pares e coetâneos, Zequeno é quem mais fala. Tem as estórias frescas. Tem as ideias mais brilhantes.
- Epá, quando um gajo chega na Ngwimbi, pode mesmo ter estudado muito, mas fica ainda um pouco atrapalhado. - Dizia ele. - Aqueles carros todos, o falar afinado das pessoas, a vaidade que têm no andar e no vestir, as coisas que até os pobres têm nas suas coisas e tudo mais fazem um vivo daqui virar piolho. É verdade mesmo.

Os amigos, viajados ou não, todos na estupefação.

- Mas, Mangodinho, aqueles filmes que andamos a ver sobre Luanda é verdade ou é mentira? - Perguntou Ndjuce, rapaz de dezoito anos que se achava à volta de Mangodinho regressado de Luanda.

- Vocês aqui andam a se perder. Daqui em diante, eu vos digo mesmo, quem tem poder vai. Vejam-me. Você volta leve. Luanda leveda a pessoa. Sarna fica. Piolhos morrem. Matumbice diminui. Você trata o branco por epá.

- É verdade, Mangodinho, até branco você lhe bate nas costas?

- Não fica mais burro. Prepara macroeira e, mês que vem, me acompanha. Vais ver o meu pai a lhes bater no ombro e lhes dar ordens. Diferença está só mesmo no estudo. Se a pessoas estudou mais e é chefe, branco contigo não torra farinha. Eu mesmo estou a pensar me meter na alfabetização. Pelo menos, assim, esses kafussas que andam a vir trabalhar na obra da estrada já não me vandalizam. Temos que crescer. Por hoje chega. Vou planificar algumas coisas que vi lá em Luanda e que podemos também fazer aqui. Vamos descansar e pensar.
 


Nota: texto inserto no jornal Nova Gazeta de 12.01.2017 

quinta-feira, dezembro 08, 2016

SOZINHO EM CASA

MANGODINHO
O casal enlutado tinha saído. Para aonde ninguém soube, nem mesmo eu. As crianças tinham ido espairecer em casa duma tia. Procuravam todos por um clima de descompressão.
- Zequeno, pai!
Estamos a sair por alguns instantes. Os da família, já sabes. Recebe e atende. Pessoas estranhas, conversa um pouco para saber se são da parte da tua mamã. Se for, também acomoda. De resto, é só dizer que os da casa saíram.
- Está bem pai.
Zequeno, o meu Mangodinho, tinha já roupas novas e um cabelo arranjado. Já se parecia a um homem em transição de campestre para urbano. O tio, a quem tratava por pai, tinha decidido melhorar o seu "looking" e ofereceu-lhe as roupas do tempo de magreza que estavam em sobra.
O tempo era de calor, quentura de Novembro com 34 graus. "Esse sol de Luanda até sardinha assa", a expressão foi mesmo dele ao se retirar do quintal, onde apreciava ao detalhe a sua querida "lagoa" e com forte vontade de a adentrar. Apenas o pudor o inibia de tirar as calças e mergulhar na frente de pessoas.
- No mato não é assim. Pessoa vai ao rio e toma banho longe das mulheres e das crianças. Aqui perece que a vergonha lhes fugiu e ficam todos misturados na mesma lagoa. É pai, é filho, é mãe é visita, é tudo. Isso no mato traz reunião dos mais velhos. É mesmo vergonhoso.
Sentado no sofá da sala de cinema, onde o ar frio, expelido por um potente aparelho de AC, substituía o cobiçado banho de água corrente, Zequeno buscava entender cada detalhe daquela moradia de três pisos.
- Possas, Luanda é grande. - Exclamou ao enviar os olhos para os quatro lados que o piso cimeiro e a vidraça permitiam ver. Foi naquele instante que ouviu o telefone fixo tocar na sala de estar.
- Trimmmmm, Trimmmmm.
Mangodinho na dele. Telemóvel já tinha visto de vários tipos e modelos. Ele, inclusive, tem um. Mas telefone fixo nunca ainda tinha atendido. Ficou a pensar como atender.
- Trimmm, trimmm. - O aparelho voltou a tocar e com mais alto volume.
Mangodinho desceu a escada numa corrida de vento. Até hoje se pergunta como não tropeçou. Chegou quase sem ar nos pulmões e decidiu experimentar o atendimento. Estava sozinho e, caso não o fizesse bem, ninguém o saberia. Levantou invertido o microfone-auscultador.
- Alô, alô, alô. Não falas porquê. Liga mais tarde. Os donos de casa não estão.
Sem ouvir quem estava do outro lado, pousou o microfone-auscultador.
Abriu a geleira e sacou uma gasosa. Antes de a abrir, o telefone voltou a tocar.
Trimm, trimmm, trimmm...
- Já te disse, ó senhor, estás a insistir porquê. Os donos de casa saíram. Ou queres então falar com o cão? É único que deixaram a me fazer companhia (tudo expresso em Kimbundu).
Desta vez, tinha usado correctamente o microfone e permitiu o interlocutor ouvir.
Quando os donos de casa voltaram, foram só risos. Tinha sido o tio a ligar para informa-lo que o almoço, em banho-maria, estava na cozinha e podia abrir uma garrafa de vinho.
O infeliz, almoçou pão com gasosa.

quinta-feira, dezembro 01, 2016

MANGODINHO NA NGWIMBI

Nome dele, do bairro e das amizades, é Zequeno, um diminutivo de José Pequeno. Mas apelido dele é mesmo Godinho, nome por que passou a ser chamado nos últimos tempos. Quando nasceu? Não se sabe. Calcula-se apenas, rebuscando as idades de seus coetâneos e daqueles que levou às costas como eu.
 
Sonho dele, de muito tempo, Mangodinho, era conhecer Luanda e fê-lo por uma razão de tristeza. As vezes em que podia vir, passear, respirar ar fresco da brisa do mar, visitar largos com jardins e repuxos, essas vezes lhe passaram. Ora era falta de passagem, ora era a ferida no pé, ora era sei-lá-o-quê.

Óbito na família chegada. Menina crescida desapareceu tragicamente numa sexta de praia na Ilha. Luto anunciado ao telefone da tia, no Libolo, Mangodinho veio junto. Calças: um par. Camisa, idem. Um casaco e um par de sapatos. Relógio, já sem ponteiros, no pulso, Man Godinho tipo é homem de verdade. Fez-se à estrada na carrinha enviada para os resgatar.

Na ngwimbi, como dizem as gentes do “nosso mato”, Mangodinho foi contemplando a grandeza das casas à volta, o falar refinado, até das zungueiras, e o andar estiloso, até dos vendedores de Kangonya. Cigarro na boca, sem estilo na mão, um fumar apressado, correndo com o cilindro que fumegava incêndio, posicionou-se num canto da rua. Ao lado, o esposo da tia com quem viajara.

O telefone do tio tocou. Do outro lado, dita-se um número. O tio, sem saber como anotar no aparelho, desenha os números do solo arenoso. Enquanto corre à casa, para sacar a agenda e a lapiseira, o tio incumbe:

- Sobrinho Zequeno, não sai daqui, eu volto já. Controla o número para que não passe carro por cima dele...

 Mangodinho fez-se estátua. Pessoas passavam, cumprimentavam-no, ele sempre de cara para
o chão dos algarismos. Veio o vento, soprou forte. Mangodinho lágrimas nos olhos é água. Chorava a prima finada aos vinte e dois anos, quinto ano de medicina. Mas chorava também o número do telefone que o vento levou.

Caneta partida pela enxada, corrida às pacas e pescarias no Longa. Do chicote do professor Kakonda, herdado pelo mestre Faustino, Mangodinho apenas ténues lembranças do Bê com Â: BÂ. Técnica de redesenhar algarismos na areia movediça não tinha.

- Que direi quando o tio chegar?!
 
Texto publicado no jornal Nova Gazeta
 

segunda-feira, novembro 28, 2016

ACHADOS E FUTADOS

 
Uma foto, encontrada no face book sobre a fabricação rudimentar de utensílios metálicos, algures na Lunda Norte, fez-me recuar no espaço e reviver o meu tempo de aprendiz de uma velha arte, a da manipulação do ferro em novos utensílios. Assim, revisitando o meu guarda-recordações, deparei-me com algumas nótulas.
Sempre que houvesse um acidente, capotamento por exemplo, sobretudo se fosse de camião, quatro peças do veículo em desgraça desapareciam num abrir e fechar de olhos, na primeira visita efectuada dos aldeões mais próximos.
1- O espelho: serve para manter a "boniteza" em dia. Já vi, mais antes do que hoje, casas adornadas com espelhos retrovisores de viaturas.
2- Cabos de aço flexível que suportam a embraiagem: esses atendiam/atendem uma das actividades económicas do homem do campo, complementar à agricultura e à pesca. A caça. Os laços e outras espécies de armadilhas para animais de médio porte são feitas com esse material de extrema raridade e importância no campo.
3- As molas em barras, também são de capital utilidade para a caça. Servem o ferreiro que, com ajuda do fole, forja as armadilhas (chamadas erroneamente po "ratoeiras"), os machados e machadinhos (nyanga ou kanjaviti), faças, flexas, laças, etc. Já servi de ajudante de ferreiro, antes de atingir a primeira década de vida, e manipulei quer o fole, quer a bigorna, o martelo, o alicate e outros instrumentos.
4- Finalmente, o veio de transmissão: tem uma parte tubular que não é ferro maciço. Essa, depois de cortada pelo ferreiro, vai atender a destilação da "makyakya", kacipembe ou caporroto (o nome varia de região para região), líquido que entorpece mas que devolve alegria aos aldeões depois de muito agricultar, pescar e ou andar atrás de presas que alimentam o estómago.
Cabo de aço flexível, molas em barras, espelho retrovisor e veio de transmissão são peças cobiçadas no campo. Saiba.

Texto publicado no Nova Gazeta de 10.11.2016

segunda-feira, novembro 21, 2016

KYAMAFULU

Kyamafulu: Assim se chamava o controlo/posto de fiscalização instalado junto à ponte sobre o Kwanza, entre Libolo e Kambambe.
 
Circulavam sobre a Estrada Nacional 120, Kibala ao Dondo. Quissongo, Gango e Quitúbia, regiões com ocorrências diamantíferas, eram inacessíveis para civis que ali não residissem. A guerrilha oposicionista estava no auge.
 
No IFA carregado de sacos de macroeira, pareciam mendigos espalhados pela casa da sopa na hora doze. O relógio até que tinha os ponteiros esticados verticalmente em ângulo de 360 graus. Eram 12h30 momento em que chegaram ao Kyamafulu, depois de duas manhãs e uma noite a transpor 150 km de distância que separava Kibala ao Dondo.
Kapequel era do Sumbe e terminara o seu segundo ano de professor brigadista em Calulo. Kanhanga é do Libolo e fora seu aluno. Manuel Kambuta, natural do Mussende voltava à Gabela, depois de um ano lectivo no internato da sede do Libolo. Era o adeus àquela vila. Havia na viatura tantas outras almas: homens, mulheres e crianças, tinham naquele IFA sem cor e cansado, fumegante e a espalhar cheiro a gasóleo por onde passasse, a solução derradeira para chegar à civilização que era Luanda. Uns chegariam vivos e saudáveis. Outros talvez estropiados por um arbusto pendurado à estrada e outros ainda, os homens saudáveis abrangidos pelo serviço militar, com o coração na mão. Guia de marcha, adiamento ou passaporte de disponibilidade, documento de invalidez, cartão de escola, bilhete de identidade, entre outros documentos deviam estar previamente arrumados antes de se chegar ao purgatório.
_ A ponte sobre o Kwanza, separando Kambambe e Libolo, é já ali. - Avisou uma senhora viajada e avisada das contrariedades que podiam encontrar.
Kanhanga ignorava o "pente fino" pois julgava-se ainda desabrangido pela vida Kwemba. Mas os mais adultos, os seus professores e colegas de último percurso não se cansavam de comer os dedos, roídas que estavam as unhas. O carro, que resmungava a cada salto na estrada esburacada, levava umas trinta pessoas distribuídas pela carroceria repleta de carga.
- Todos que usam calças devem pular e conferir as "cadaplas" aqui em baixo.- Atirou o soldado com a boina a encobrir-lhe os olhos e carregado de mau-humor.
Uns ainda tentaram fingir não ter ouvido, mas não tardou o soar da bala ao ar. O homem parecia disposto a alimentar os crocodilos de carne quente.
Todos: jovens, idosos, crianças e até mulheres de calças fizeram-se carga abaixo.
Era a vida do viajante homem, quando chegasse ao controlo militar na ponte sobre o Kwanza, em Kambambe. Kyamafulu (bicho mau) era assim.
Passei pela nova ponte erguida à montante. Linda e longa, mostrando o Kwanza a esticar-se preguiçoso para oeste, sem os rápidos da ponte antiga e sem a grande lagoa que surgiu por causa da hidroeléctrica de Kambambe. Um novo posto policial foi erguido acomodando também o corpo de bombeiros. Disseram designar-se também Kyamafulu.
- Kyamafulu, senhor polícia? Não pode ser. Aqui não há história que se conte nem estórias de roer as unhas. - Repliquei.
Kyamafulu só há um!

Obs: texto publicado na coluna "(Re)flexões leigas" do jornal Nova Gazeta, a 13.10.16

segunda-feira, novembro 14, 2016

"ORDENS SUPERIORES" LEVADAS A TEATRO DOMICILIAR

 
Quando os encontrei, era já noite.
Brincavam: uns geriam uma barragem hidroeléctrica. Outros eram os chefes imediatos. Havia os chefes dos chefes e um chefe máximo que baixava ordens a todos. Era o "OS".
Sabendo que eu os mandaria fazer as tarefas escolares, combinaram que alguém ficasse ao lado da barragem (disjuntor), para tão logo recebesse a "ordem superior" do seu chefe, baixasse o interruptor.
 
 
E assim fizeram. Sei lá de onde puxaram a ideia, os meus filhos e sobrinhos. Entre os sobrinhos junto filhos de vizinhos que me tratam por tio.
 
Bastou o meu "boa noite meninos" para ouvir, num canto qualquer da casa, o grito "baixa a barragem, ordem superior".
De imediato, eu que me preparava para, como sempre, manda-los fazer os deveres de casa, fiquei na escuridão.
Muxoxei para a coitada da Ende. Tinha caído num ardil dos infantes.
 
Esses miúdos de hoje em dia são perigosos. Isso mesmo. Perigosos. Inventivos. Custa acreditar. No meu tempo de undengue éramos habilidosos em fazer coisas experimentáveis, objectos. Hoje teatralizam nossas vidas.
 
- Fidacaxa!

segunda-feira, novembro 07, 2016

INSULTOS CONSTRUTIVOS

 
Conversávamos sobre futebol de "primeira água". O Girabola regista uma duas emocionantes corridas, sendo uma para o topo e outra para escapar a despromoção, quando já são conhecidos os novos primodivisionários.
Alguns dos meus amigos, adeptos de outras equipas de futebol que se deslocam a Calulo, dizem-me, a brincar, que os mais ferrenhos adeptos do Recreativo do Libolo, aqueles que, realmente, fazem o Recreativo vencer quase todos os jogos que realiza em casa, nunca se fazem ao campo.
Indaguei, curioso, a um desses amigos por que será que considera ele que o Recreativo do Libolo tenha adeptos ferrenhos que ajudam a vencer os jogos sem que se façam presentes no Estádio Patrício Lumumba, de Calulo?
Paulo, o que mais falava, exibiu a câmara fotográfica e começou por mostra-los um a um, em função da sua "corpulência". Eram, segundo ele, possuidores de "vozeirões", capazes de inibir e cansar, à partida, qualquer adversário da sua amada equipa que se atrevesse a passar por eles. Mesmo assim, depois de vistas as fotos, ainda repliquei.
- Mas, desses "adeptos" temos em todo o país onde se jogue futebol de primeira água. Vá, por exemplo, a Benguela aonde cada girabolista se desloca duas vezes ao ano. Vá à Lunda Sul e Lunda Norte. Vá ao Lubango e Menongue. Vá a N'Dalatando e encontras o mesmo tipo de adeptos.
Paulo olhou-me firme e demoradamente, sem nada dizer, e buscou uma explicação.
- Mas, ó libolense. Sabes que para distâncias mais longas as equipas vão de avião e aqui era de evitar...
- Sim, luandense. Aqui, em Calulo, também temos uma pista de aviação que fica a três quilómetros do hotel e mais um quilómetro para o campo. - Explicitei.
- E achas que os buracos são saudáveis? Achas que a vós faz felizes, ter de viajar por estradas sinuosas, sempre que se desloquem a Luanda? - Voltou a replicar, pretensioso de me "insultar" como fazem sempre os adeptos perdedores.
- A situação é preocupante mas conjuntural. - Rebati. - Sabes que nós, do Recreativo do Libolo, tanto ganhamos em casa como também o temos feito em terreno alheio. Com ou sem adeptos estáticos. Passamos pelos adeptos-buracos e pelos adversários!

Texto publicado no jornal Nova Gazeta de 20.10.2016

terça-feira, novembro 01, 2016

TCHUNA BABY

O angolano é inventivo. Isso mesmo. Criativo. Cientista da imaginação. Uma imaginação proporcionada por uma língua dinâmica, "o Português de Angola", que traz ao léxico novos vocábulos inseridos de forma genial, depois de capturados e reconfigurados a partir de outros idiomas. É essa reinvenção diária e em todas as situações análogas ao real que faz do angolano um "inventor linguístico".
 
Quando ouvi , pela primeira vez, pronunciar a expressão TCHUNA BABY a referência que tive era somente aquela relacionada a roupas curtas e ou justíssimas. Porém, o tempo me levou a entender que o "invento" se tornou extensivo a outras realidades que levem à ideia de aperto. A crise económica, por exemplo, é tida como "vida tchuna baby". Por extensão, as casas pequenas, também designadas evolutivas, as que não passam de quarto, sala e wc, ganharam o "modístico" nome de TCHUNA BABY.
 
Andando pelos "Zangos", encontrei dois pares de jovens conversando ao sol abrasador, meio descontraídos, embora algo revoltados, pelo menos a tirar ilações da dureza dos vocábulos e tonalidade que imprimiam nos discursos.
 
- Fogo! Porquê que deixam primeiro construir, para depois vir partir com a alegação de que é zona proibida ou reserva do Estado? Porquê que o Estado não chega primeiro e impõe a ordem? - Interrogava-se um dos jovem.
 
Ao que me apercebi, tratava-se de um operário numa fábrica recente, em Viana e que pretendeu erguer uma moradia nas proximidades do seu trabalho.
Mamelodi, outro jovem, questionava "por que se permitia ter dois sentidos da via asfaltada ocupadas por casebres de chapas, na Ilha Seca do Zango III, quando se casas de verdade não foram poupadas".
 
- Só porque erguidas em terrenos "vendidos" pelos camponeses da região? - Questionava-se Mamelodi, perante uma assistência que se revezava nas falas?
A conversa ia longa, regada de pinchos e cervejas. Quando os lamentos se esgotassem, antes de se retornar ao cancioneiro, falava-se sobre moda.
 
E foi nessa conversa sobre slin e XXX que soube que grande parte das pessoas que ergueram moradias nos arredores do novo aeroporto e vizinhança dos Zangos viram suas casas "kamarteladas". Uns, ao que me contaram, voltaram à "felicidade" que é repartir o tecto com a sogra desbocada e proprietária, ao passo que os mais orgulhosos decidiram procurar por casas do tipo TCHUNA BABY, para não voltar ao abrigo da mãe ou da sogra.
 
- Minha mãe, já na velhice, decidiu "comprar" terreno e construir nas imediações do que será o novo aeroporto. Nunca cheguei a visitar o espaço onde a casa recebia acabamentos. Quando já se preparava para lá ir morar, encontrou o que os vizinhos choravam. "A casa sumiu"! - Explicou Imaculada, uma das mulheres do grupo que reservou o sábado para procurar por tchuna baby.
 
- É a única maneira que tenho para  acudir a velha cuja tensão arterial é "normalmente" mais alta do que normal. -Concluiu.

segunda-feira, outubro 24, 2016

O ESTADO DA MINHA "NAÇÃO"

Nesse 17 de Outubro/16, trabalhei até às 18h00, tendo, depois,  ido levar conforto a amigos distintos visitados pelo infortúnio. Por tal razão, ponderável(?),  cheguei tarde à casa. Habituados a ver-me chegar, meus filhos perguntaram-me:
- Papá dormiu onde?
- Dormi aqui mesmo.
- Mas, quando fomos dormir, depois da última novela, não vimos o carro do papá!
Puxei o vinco na testa para ver se se apartassem de mim. Debalde! Os mais novos pareciam dispostos a obter a resposta que pretendiam, ou no mínimo amealharem a sua boa disposição para as aulas à custa da minha. Foi, na verdade, uma noite de insónia.
- Vem com computador ou papel e lapiseira. - Chamei pela filha mais velha.
- Está bem, papá. - Fez-se pronta e diligente.
- Aponta a ideia e faz cartazes para afixar na parte traseira do quintal.
- Os vizinhos cagões e gozões, que dejectam ao ar livre, nas traseiras do meu quintal, e deixam seus sacos de lixo junto à minha porta, minando minhas árvores que plantei com esforço e suor, poluindo o ambiente à volta, fiquem avisados: Vou colar avisos para deixarem de abusar da minha paciência e bom-senso, sob pena de o corredor que serve de passagem aos que não têm outro caminho ser fechado com arame farpado e "feijão-maluco".
- Tudo isso, papá?- Interrogou ela promovida a escrivã.
- Mas, ó papá! Se o papá fechar o corredor e algum vizinho quiser reclamar? - Atirou o mais novo.
- Ele que vá reclamar com os vizinhos cagões e deitadores de lixo.
- Não incomodem o vosso pai. Ele está cansado, sonolento e aborrecido. Ele limpa sempre, mas, dessa vez, passou-se? - Acudiu a mulher.
- Mamã, ele passou? Foi aonde? O papá não está aqui mesmo?!

O estado da minha "nação", minha casa, é, às vezes, complicado. Vezes há que se falam coisas de baixar os ouvidos. Outras, raras, é assim. Falamos por falar. E, para preencher o rol, ainda recebi  a SMS da sobrinha:
- Tio, preciso que me faças uma redacção sobre direito. É urgente. Se for ainda hoje melhor.
- Fogo! No meu tempo, sobrinha,  iria, caso tivesse, ao tio para pedir-lhe livros ou indicação de bibliografia relacionada ao tema. Queres que eu faça por ti?
- Sim. Você é meu tio prá quê?- Respondeu ela também ousada e pensando que estava coberta de razão.
- Aí é, sobrinha?
Quase falei mas ficou só já no coração.
 - ..!

NOTA: Texto publicado no jornal Nova Gazeta de 26.10.16 

segunda-feira, outubro 17, 2016

A PRÓSTATA E A PROSTITUIÇÃO


- A próstata vem da prostituição. - Teimava Kandungu, já bem à maneira, perante a relutância dos amigos que pediam mais argumentos.
- É verdade. Vocês não vêem que as duas palavras têm a mesma base? Eu explico. - Dizia ele insistente.
Os grupos que se formavam, por diversas simpatias, faziam inventivas contra o tempo é o vento friorento que parecia teimoso. Era óbito no Rangel.
Já não me lembro quem tinha perecido mas era um membro influente da classe Jeremias, cargo da móvel Moisés. Alguém que tinha ocupado vários cargos na Kalemba, na Classe Kwanza-Sul, na Moisés e na Jeremias, classe do Rangel. O óbito era na rua da Ambaca, junto à pracinha do Kalisange (calissangue).
Kandungu, Kitembu, Kanhanga, Tina da Saia Longa, Aida, Laurinda, Kapitia, Pinto, os Anciães Pequenino e Domingos João, entre outros que davam vida à Moisés estavam presentes para consolar a família em luto.
Os mãos velhos discutiam sobre a bíblia e tentavam buscar a explicação sobre a razão da vida, buscando no Santo Evangelho as sábias lições. O quintal, pequeno e densificado de gente que exibia cantos de subir aos céus era o espaço que os acolhia.
Lá fora, na rua, encostados à parede alta de uma casa de madeira que se achava na redondeza, estava a turma do Kandungu. Falavam sobre os prazeres da vida terrena, uns favoráveis ao desfruto e outros fundamentando seus argumentos com base nos dez mandamentos da lei mosaica.
- Não adulterarás, diz a Bíblia. - Atirou Kanhanga, pondo lenha na fogueira.
- Sim, Kanhanga, tens razão. Atirou Kandungu, conhecido como "amigo da espuma". Eu, aqui, penso mesmo que mulher é o pior dos males. É por isso que me casei com a minha curtinha e espumosa.
Os amigos galhofaram até torcer as costelas. Mas Kandungu prosseguia:
- Vocês sabem que relação existe entre uma certa doença dos homens e uma certa prática de mulheres sem norte?
Instalou-se um silêncio de fazer inveja ao sepulcro.
- Não, respondeu Aida, esposa de Kapitia, interrompendo a distribuição do café que os homens baptizavam, diligentemente, com porções nada poucas de aguardente.
- Então Oiçam. Essa falta de géneros nas lojas do povo está a levar muitas de nossas irmãs à prostituição. Já não é novidade. Basta parar, à noite, no Nzamba-1, para ver quem mais apanha o autocarro 33, em direcção à baixa, onde moram os cooperantes. Mas o resultado para esses estranjas vocês nem imaginam... - Kandungu pôs travão na conversa para engolir um pouco de oxigénio e empurrar o pedaço de frango grelhado com um gole de cevada.
A turma se mantinha atenta e expectante no desfecho. Depois dele, entraria em cena outro contador de piadas, só para entreter.
- Termina então essa conversa de mulheres da vida e cooperantes. - Solicitou Kanhanga, já com a paciência aos soluços.
Kandungu, inclinou a caneca à boca e já mais torpe do que lúcido, retomou a cena.
- Yá. Todos os cooperas que conheço têm problemas na próstata. Tenho certeza que é o resultado da prostituição!
Entre aprovações e apupos, Kandungu terminou a sua cena.
Preparava-se Kanhanga para contar a sua cena sobre o Evangelho e o "pente policial", que no seu entender encontra cobertura em Mat. 5:25-26. Ainda não tinha aberto o órgão falador quando foi interrompido pela presença sorrateira do ancião Kambundu que se apercebera do subir de vozes no grupo da juventude. Kambundu era um conselheiro equilibrado que procurava meio-termo entre o admissível e o proibido. Tinha verificado toda a engenharia do abastecimento das latas de gasosa com uva fermentada e outras artimanhas. Aproximou-se vagaroso, com a mesma velocidade com que a mocidade foi guardando as latas e os copos. Dirigindo-se àquele que mais vozeirava, mas distribuindo olhares ao grupo todo, o ancião Kambundu fez-se anunciar:
- Ó Kandungu, vai, meu filho. Empurra. Bebe tua cerveja. Ninguém está a te ver!
A turma, atónita, não sabia se abria a boca ou se se mantinha calada, pois receava fazer-se denunciar pelo hálito do álcool. Apenas as mulheres meteram conversa, tentando desviar a atenção do mais velho que não caiu na cantiga.
No domingo seguinte, todos foram chamados ao gabinete do pastor Domingos João para uma reprimenda. Só Kandungu não compareceu pois era um pisca-pisca.
 

segunda-feira, outubro 10, 2016

O ÚLTIMO CACHORRO DE TURBINA


Nasceu Luzia, nas imediações da Pedra Santa, no Musafu. Cedo mostrou ao mundo que veio bem prendada fisicamente, atributos que lhe valeram o epíteto de Kimbundaria quando  era ainda lactente. Com o andar do tempo, Luzia, nome de baptismo e bilhete, foi esquecido, sendo Turbina ou Kimbundaria os nomes por quem mais ficou famosa em Kalulu e em Luanda.

Seus pais, católicos praticantes, sempre sonharam a filha vir a vestir-se de véu e grinalda, subindo a calçada e o altar da missão. Mas, sendo ela apóstata, não foi o que receberam seus pais de presente, até ao pó retornarem. Turbina foi, durante muito tempo, mulher da vida. Na vida ganhou tudo: casa, carro, mais tarde filhos e fama de mulher-produto.

Um pouco desencoraja pela idade e pelos filhos que já colocavam questionamentos sobre os vários rostos que se faziam à casa, Turbina foi trocando a casa-loja por outras formas de vender o corpo-produto, até que os revezes económicos que o país viveu fizeram o seu negócio minguar.

Os dias de fome chegaram, os arranjos que conferiam beleza onde a idade fez razia escasseavam. As picanhas, antes recauchutadas e confortavelmente guardadas em roupas justas, entregavam-se baloiçantes ao léu como cão sem dono. Só a carroça se mantinha avantajada, embora desmazelada. No seu imaginário, a solução passaria por arranjar marido. Só que àquelas que já sobravam no tempo das vacas gordas se juntaram outras que, empurradas pela crise, acabariam demitidas da missão de concubinas ou simplesmente kapurenquanto.

- O mercado marital está agressivo. Umas coladas aos maridos que nem nesgas, umas a ser desmobilizadas e outras com vida de pedra. Como vou conseguir meu homem? Como manter cama quente? - Interrogou-se Turbina, antes de seguir à reza.

Ao voltar da igreja, daquelas que prometem o mundo e todo o recheio, apercebeu-se de um movimento estranho no segundo quarteirão do bairro. Turbina ligou as antenas e depressa se informou. Na aldeia, as notícias, boas e más, correm a passo de vento.

- A fila andou na rua de baixo.- Disse a informante, também uma coleccionadora de tesouros.

- Aquela mana de cabelo longo morreu? Aí meu Senhor?! Como fica o mano Jordão? Quem vai cuidar dos filhos pequenos? Ai sofrimento! - Turbina soltou o grito de inundar o bairro e convocar a vizinhança que chagava ainda tímida dos afazeres patronais, naquela quinta de sol ardente.

No bairro, Jordão e Turbina ou Kimbundaria já tinham trocado muitos olhares e alguns prazeres. Fora cliente dela e naquele descompasso que o êxtase provoca, chegara a propô-la casa e lar. Com dona Eunice adoentada de morte, Turbina passou a espiar a casa de Jordão, com a artimanha de visitar a vizinha, ao mesmo tempo que engolia hectolitros de cuspo, na espectativa de se acaparar do homem alheio.

Na noite de velório, Turbina, baloiçando a Kimbundaria, parecia mais preocupada com a hora do funeral, ainda incógnita, do que com a dor de Jordão que até aí fingia com destreza os seus apetites kimbundásticos.

Fingindo muita dor no peito, volta e meia distribuía perguntas sobre quanto tempo deveriam esperar para despachar Eunice à última morada e consumar-se a passagem sagrada que dita "até que a morte os separe".

O funeral foi na tarde do terceiro dia. Ao sétimo, Jordão estava mais descontraído ao passo que Turbina aumentara o cerco e com as armas em riste: um ousado decote e o arsenal turbinado de que era detentora desde menina.

A mulher conhecia os hábitos alimentares de Jordão: funji de bombó, verduras, pevide, e boa pomada. Mesmo sem delegação, e perante a passividade da parentela, Turbina fez-se comandante, dirigindo a cozinha e levando os parentes que iam chegando ao quarto em que Jordão recebia condolências.

Quando os familiares mais distantes, começavam a se dispersar, e antes mesmo de acontecer a missa do sétimo dia, aprazada pera aquela noite, cumprido o ritual mínimo de confinamento do viúvo, Kimbundaria que via a "migaçao" quase confirmada, planeou o ataque final

Começou por se enfrascar até tropeçar na próxima sombra. Fazendo-se passar por uma espécie de protocolo, anunciando a chegada e a saída de visitantes, a mulher de nádegas e lágrimas fartas, como era conhecida, encostou-se ao viúvo e soltou o último cachorro:

- Ó mano Jordão, as visitas para a missa de logo já estão a chegar. Não acha que já é tempo para me "amigares"? Me faz só esse favor, hoko?!
 

sábado, outubro 01, 2016

O GAJO DO PASTOR

Transcorria apressado o ano de 1984. A classe Kwanza-Sul, do cargo de Kalemba, havia se emancipado e se constituído em novo templo. Para os metodistas unidos, igreja protestante de origem americana, cargo equivale à paróquia e classe à capela onde os fiéis mais próximos se reúnem durante a semana, sendo o cargo (igreja) o espaço que acolhe os cultos (missas) dominicais e outros eventos aglutinadores de todas as dependências.
Depois de frequentar um curso teológico, no instituto Emanuel Unido, no Ndondi, Domingos João António transitara de mestre do coro da Kalemba a pastor do novo cargo, baptizado com o nome do profeta que conduziu os israelitas das masmorras faraónicas à terra santa.
Kitembu, o irmão mais novo, o sobrinho Kandungu e os amigos destes Kanhanga, Kapitia, Kilole, as meninas Celeste, ST, Tt, as irmãs Domingas e Henriqueta e outros faziam o núcleo juvenil da Igreja Moisés, encantando, com suas vozes, a vizinhança do Nzamba-1 com banhos de melodias. O conflito armado que o país enfrentava, as rusgas para o serviço militar obrigatório, as filas nas lojas do povo, as latas e pedras que acolhiam os "pioneiros" nas escolas, tudo isso se tornava menor, perante os ricos sermões do pastor Milocas, o Domingos João. Humor, realismo e esperança num devir melhor, se constituíam no centro das suas pregações muito concorridas. Vezes tantas a rua teve de dar espaço aos ouvintes da palavra santa que se ensardinham num espaço a reclamar, mês a mês por mais alargamento.
Kandungu, meio-mundano e meio-mondano, já naqueles anos, frequentava dominicalmente a igreja, talvez porque, sem com quem prosear, os domingos no bairro se constituíssem em momentos ocos. Sem companhia, seguia ao encontro dos amigos. Alinhava no Coro e cantava ardentemente um tenor afinado, sendo possuidor de um "Ámen" ímpar.
Num dia de Setembro, que a memória não registou, o pastor Domingos João, que não vai Kandungu há mês e meio, decidiu visita-lo antes do culto e juntos seguirem à igreja, aproveitando a caminhada para conversas e conselhos se disso precisasse. Afinal, apesar da confissão havia algo de sanguíneo a liga-los. Kandungu estava esposado com a Tt que era a soprano principal do coro central.
As ausências do Kandungu aos cultos tinham sido notórias e sempre que o pastor inquirisse a sobrinha/nora sobre a ausência do marido, a resposta era sempre "dormiu de serviço, tio".
Pelos becos do Cazenga, Rangel, Sambizanga e até mesmo no Bairro Popular e Prenda onde tinham amigos e familiares, não deixavam de se avolumar, porém, ruídos sobre algumas doses, algo extravagantes, de uvas fermentadas ou cevada processada com lúpulo.
Manhã cedo, sete e meia no Sete-e-meio. Pum, pum, pum. Tt amarra apressada o pano acima do busto e vai abrir a porta.
- Bom dia sobrinha Tt.
- Bom dia sô pastor.
- Aqui em casa também podes me chamar de tio. Não fui eu que fui te fazer pedido? Só na igreja é que pastor não tem primos e sobrinhos. Aqui é em casa e podes me contar o que teu marido anda fazer. A propósito, não vejo o Kandungu há dois meses e você na igreja não me conta quando pergunto. Ele está aí?
- Não tio Domingos João. Ele dormiu de serviço. Esse mês todo, está a fazer fim de semana porque colega com quem divide o turno está com um problema.
Entre convidar o tio pastor a entrar e tomar a cadeira de fitas e atende-lo à porta, Tt preferiu a indelicadeza, pois o estado etílico de Kandungu podia rapidamente desmascarar a mentira.
- O tio quer deixar algum recado? - Perguntou Tt, procurando despacha-lo.
Sim, irmã Tt. Quando ele chegar diz que o tio e o pastor dele que sou eu Domingos João está preocupado e quer que me procure em casa ou compareça à igreja no domingo que vem.
O pastor marcou uns passos em retirada mas parou para refazer a agenda. Oito menos um quarto era muito tempo de sobra para o culto que começava apenas às nove horas. Era preciso visitar outras ovelhas perdidas ou em vias disso. Era preciso evangelizar. Tt aproveitou a saída do pastor para acender o ferro a carvão e engomar a roupa e a beca com que se apresentaria a igreja.
Do quarto, (in)ciente de que o silêncio indiciava a retirada do pastor, Kandungu gritou:
- Teté! O gajo do pastor já foi?
E não foi a mulher que o respondeu. O pastor ainda não tinha feito a primeira curva do beco. Estava fora do pequeno quintal de aduelas e chapas toscas de zinco, a centímetros da janela do quarto que dava para o beco.
- Não, irmão Kandungu. O gajo do pastor ainda está aqui.
Para voltar à igreja, Kandungu levou mais três meses e toda a família do pastor teve de ir passar um sábado com ele.

segunda-feira, setembro 26, 2016

A ORAÇÃO DO KAPITIA


A amizade que carregam, há mais de meio século, dá-lhe a ousadia para falarem de tudo e sobre tudo. Entre eles, nada é segredo. Apenas há segredos que desvendam só quando a fila ande. Aí sim. Abrem um espaço nos epitáfios e levam ao conhecimento dos parentes mais chegados as extravagâncias inauditas do de cujus.

Chegados da Kibala, Kitembo e os amigos Kanhanga, Kilole e Kapitia notaram a ausência de Kandungu. O homem tinha o telefone desligado, não mandava os habituais recados aos manos da sua geração e igualhagem, nem pedia dinheiro para a cura de reumatismo que ardilosamente desviava para as "baixinhas espumosas", como gostava de tratar as cervejas de garrafa curta.

- Compadres, o gajo deve ter ido para a pior ou a caminho disso. Depois do culto, é melhor irmos espreitar, se ainda encontramos o corpo quente. - Kanhanga aos coetâneos que depressa concordaram.

Juntaram moedas, as que haviam sobrado de um domingo de muitos balaios: fundo de construção, acção de graças, dízimo do Senhor (roubará o homem a seu Deus? Questionara o pastor para melhor penetrar-lhe o cérebro e a algibeira), oferta dominical, etc. Tinha sido uma fina peneira, mas, mais-velho é já mais velho, tem sempre reserva estratégica. E foi com o sacudir dos kafokolos, onde normalmente fica enfiada a reserva estratégica, que fizeram a vaquinha com que se meteram a estrada, ao encontro de Kandungu.

Encontraram-no vivo, mas degradado. Isso mesmo degradado e em estado lastimável. Os saltos, provocados pelos buracos na via que separa a capital da sede de Kibala, haviam debilitado a sua coluna de sustentação. Os antibióticos e analgésicos para afugentar as artrites foram substituídos pelas "pequenas espumantes". Encontraram um amigo vivo mas transfigurado. Mais morto do que vivo.

Primeiro entrou Kitembu, amigo e tio, embora dois anos mais novo do que Kandungu. Seguiram-se-lhe Kanhanga e Kilole. Kapitia chegaria meio atrasado, pois fora ver a filha nas cercanias.

- Boa tarde sô Kandungu. Esta hora já estás calibrado? - Saudou, gozão, Kitembu.

- Não brinques assim. Se me encontraram com vida é já sorte. Quanto à bebida com que sempre te embirras, hoje só bebi mesmo uma. Estou mesmo a morrer e nem sei porquê que Deus não me leva já. - Respondeu Kandungu, resmungão e com a voz trémula, como se lhe faltassem apenas instantes para transitar para outra dimensão da vida.

- Mas ó Kandungu, é mesmo morrer que queres, quando pessoas com noventa fogem da morte como satanás foge da cruz? - Indagou Kilole?

- Sim, mano Kilo. Aqui já não está a dar certo. Sofrimento é muito. Morrer é descansar.

Os amigos, algo co condoídos, algo chateados, com o indivíduo que degradou o corpo por livre vontade, decidiram retirar-se e voltar no dia seguinte. Eram todos reformados e Kitembu tinha um bom jeep em que se faziam transportar, quando não fosse na carrinha de dupla cabina que Kanhanga acabara de receber de oferta do filho.

- Vamos. Quando voltarmos trazemos outras ideias e esperamos não te encontrar mais nesse leito e nessa desgraça. - Disse Kitembu a despedir-se e puxando pelos amigos.

Kapitia, que acabara de chegar, tentou ainda convencer Kandungu para se livrar da ideia de se eutanasiar.

- Mas, ó mano Kandungu, ainda a semana passada que choramos o irmão Domingos João, até as lágrimas nos olhos ainda não se secaram, você quer já nos deixar?

- Sim, Kapitia, é melhor eu partir. Se vocês acham que estou a brincar, amanhã mesmo não vão mais me encontrar.- Disse Kandungu com as últimas forças que lhe restavam.

Kapitia, entre sarcasmo e compaixão, decidiu solicitar uma oração, mesmo Kandungu não sendo mais membro da igreja, ao que todos concordaram, até o inferno que se achava sem forças para se pôr em pé.

- Oremos: " Pai nosso, nosso Senhor, Deus que dá a vida e que a retira quando quer, estamos aqui perante nosso irmão que jazz nesse leito, mais pra lá do que cá. A vida que o irmão Kandungu leva é de muito sofrimento e miséria, pai. Já que ele mesmo está a pedir, por que é que o pai não manda essa noite seu anjo busca-lo? Ao menos ele descansa perto ou longe do Senhor, em função das suas obras no mundo. Que assim seja. Ámen!

- Ámen! - Confirmaram os amigos.

Kapitia ainda não tinha terminado a oração é já Kandungu se sacudia de pé, entre os amigos. Afinal, não era a morte que precisava.

segunda-feira, setembro 19, 2016

O MUNDANO E O "MONDANO"

Conversavam cinco idosos da Kibala, todos septuagenários.
Kitembu e Kanhanga frequentam a igreja desde pequenos. Conheceram-se na Escola Bíblica de Férias, o primeiro levado pelo irmão Domingos João e o segundo por Beto Pequenino. Os tutores eram também amigos desde garotos.
 
Em termos de frequência da antiga Missão Evangélica Americana, hoje Igreja Metodista Unida, Kitembu nasceu mesmo na igreja, pois, quando ele veio ao mundo, seu pai já ocupava cargos na Metodista. Kanhanga começou mais tarde, aos sete anos. Iniciou-se na "Cheia", aonde fora levado por um primo, ainda no Kwanza-Sul. Chegado a Luanda, foi levado pelo tio que era da "Protestante" como também era conhecida a confissão cristã trazida pelo americano Willian Taylor.
 
Kapitia e Kilole, outros dois amigos, converteram-se ao cristianismo já jovens e foram levados pelos primeiros de quem são amigos desde tenra idade.
Kandungu é o único entre os cinco que, ao contrário dos quatro contemporâneos, aos domingos, troca a bíblia e o hinário pelo copo de cerveja.

Cruzaram num óbito, na Kibala, terra de origem comum. Uns nasceram em Luanda mas são de filhos Kwanza-sulinos. Outros foram a Luanda em busca de estudos e profissões e acabaram por lá ficar até aos seus dias de cabelo branco.

Kitembu tinha perdido o irmãos mais velho e os amigos foram levar consolo. Depois do funeral, e para enfrentar um tempo friorento, os cinco amigos falavam sobre as coisas boas do mundo, aquelas que Kandungu ainda persegue cegamente, e as coisas excelentes dos Céus ou a vida ultra-tumba, que Kitembu, Kanhanga, Kilole e Kapitia procuram atingir com a sua entrega abnegada à causa de Cristo.
- Ó Kandungu, você sabe qual é a duração da vida do homem na terra? - Indagou Kitembu.
Kandungu, meio surpreendido, procurava buscar uma resposta que fosse de encontro à sua idade e experiência. Como um carro sem arranque, começou a resposta pelos soluços, enquanto coçava a barba, toda ela algodoada.
- Já viu o quê que os copos faz no homem? O "ngajo" parece já esqueceu tudo. Setenta anos, que vem na Bíblia, já não sabes? - Atirou Kilole, provocante.
- Sim. São setenta anos para que o homem se sinta com força e saúde. Fora disso, a pessoa volta a ser como criança. Mesmo uma vala de metro e meio, que a gente pulava sem recuar atrás para apanhar balanço, você já não pula mais. - Complementou Kanhanga.
- É verdade compadres. - Kitembu voltou à conversa. - E parece que aqui o mano Kandungu, que é também meu sobrinho, apesar da idade dele ser mais do que a minha, já não consegue pular nem meio metro. No sangue dele só lhe corre já espuma de cerveja!
- Ei, ó Kitembu, atenção ao respeito. Tio é tio, mas quem nasceu primeiro também merece respeito. - Reclamou Kandungu, em jeito de brincadeira. Na verdade, os cinco galhofavam.
Kapitia que até aí se mantivera apenas a seguir a conversa, ora abanando a cabeça para a frente, em jeito de aprovação do que se ia dizendo, ora fazendo-os companhia nas rizadas de mostrar o espaço deixado pelo último molar, colocou um subtema novo.
- Vocês sabem qual é a diferença entre o Kandungu e nós?
- Ele bebe, nós não. No domingo, ele abraça a caneca e nós a Bíblia e o Hinário. - Responderam quase em uníssono Kitembu, Kanhanga e Kilole. Só Kandungu se manteve na defensiva.
- Vocês "num" disse tudo. - Corrigiu Kapitia, 77 anos no lombo. - Nós todos que vai "no ingreja" é mundano. Mas ele não. Ele é "mondano".
Uma estupefação se apossou dos quatro, Kandungu incluído, que pretendiam saber o significado da nova palavra enunciada pelo amigo que era o mais velho do grupo.
- Ó mano Kapitia, você pode explicar "no" Kandungu o significado de mundano e "mondano"? Eu também só sei que ele é mundano porque deixou de ir "na" igreja. Tanto que lhe ando a dar conselhos, mas não me está a dar ouvidos. - Disse Kitembu solícito.
- Pois, então, oiçam bem: todos que vivem no mundo, se vai "na" igreja ou não, são mundanos. Pessoa como o irmão Kandungu, que "num" vai "na" igreja, que pecado dele se amontoa, é "mondano". O termo "mondano" vem de "mondanha" (montanha). Pecado dele é como uma "mondanha" porque ele não vai à igreja diminuir. - Kapitia terminou o seu sermão com assobios e rajadas estridentes de palmas doadas pelos amigos.
Assim fizeram o seu segundo serrão, em homenagem a Domingos João António, até que o último galo se aposentou de cantar.

segunda-feira, setembro 05, 2016

O RECÚO DA MONOCULTURA NO AMBOIM

 
Reza a nossa História económica de Angola que em 1973 o nosso território era o quarto maior produtor mundial de café. Das centenas de milhares de toneladas que eram exportadas, despontava o robusta do Amboim. Tanta importância teve o café na balança económica e no desenvolvimento da região que uma linha férrea foi construída, ligando o Amboim (cuja cidade capital é Gabela) ao seu Porto, ex-Benguela Velha.

Imperava a teoria económica do " retirar o máximo aproveitamento das vantagens competitivas do mercado", tendo o regime colonial imposto as monoculturas a muitas áreas e povos. Argumentava-se, que com a renda procedente da monocultura, nesse caso o café, comprar-se-ia o que mais se precisasse ou faltasse.

Visitei as duas cidades (Porto Amboim e Gabela), no afã de explorar o turismo rural e o regalo que a Binga, Kwanza-Sul, e suas cachoeiras nos oferecem. Duas notas importa partilhar: se na Binga a falta de instalações hoteleiras no espaço adjacente à maravilha natural, eleita uma das sete melhores do país, "corre" com os turistas idos de longe, limitando-se a umas selfies, já no trajecto que nos leva à Gabela e CADA, é a progressão do bananal que desponta, num território montanhoso em que o café se apresentava com o verde das ramagens, o vermelho do bago maduro, bem como o sabor único e adocicado do fruto seco e torrado.

Os montes, cobertos de árvores altas e frondosas que davam sombra aos arbustos de café, são hoje invadidos pelo bananal que vai pleiteando e progredindo a desfavor da chávena quente no restaurante e do dólar fresco no BNA.

Por que será? Interroguei-me ao longo da viagem, sem ter de necessitar de um agrónomo ou economista para a resposta.

De aldeia em aldeia, a banana está sempre exposta à venda. Dá sustento imediato. Se não dá dinheiro, mata a fome. O café não. As plantas precisam de ser podadas, as picadas e acessos requerem limpeza todos os anos. O bago maduro não alimenta o estómago vazio. Precisa de ser colhido, depositado no terreiro para a seca que leva semanas. Depois de seco, tem de ser ensacado, transportado para o armazém, descascado, reensacado, vendido a poucos Kwanzas por cada quilo e exportado para proporcionar dólares ao país e enfeitar a chávena num restaurante além-mar.

Deve ser por isso que vamos tendo pouco café para exportar!

Nota: Texto publicado pelo semanário Nova Gazeta de 08.09.2016.