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quinta-feira, maio 28, 2015

HÁ VEZES EM QUE A "BOA PENA" NOS PASSA AO LADO

Será apresentado hoje, (28.05.2015), à tarde, na cidade de Saurimo, Lunda Sul, a obra "Em busca da dignidade" da autoria de Rotane Sandjimba.
Quis o Dr. João B. Abreu Manassas, Vice-Governador da Lunda Sul para a área política e social, que eu fizesse a apresentação da obra, prefaciada pelo antropólogo Américo Kwononoka, ao público de Saurimo.
Em viagem para Luanda, apenas pude ler, durante os 1h15 minutos de voo, as primeiras 70  de um total de 90 páginas, sentado ao lado do governante que me mostrou e emprestou momentaneamente o livro.
Conclui que:Conhecedor do seu país, suas gentes, vivências e peripécias, o autor atribuiu uma "agenda" de acontecimentos a um personagem/narrador (Mingoso) que percorre o país, da cidade ao campo, do aplausível ao abominável, e traz-nos uma fotografia real de uma Angola (que sangra e que chora) não distante no tempo, dando ao romance relevância histórico-sociológica.
Resumo o livro de Rotane Sandjimba em apenas quatro palavras:
- E tudo isso aconteceu!

segunda-feira, maio 25, 2015

GRITO DOS LEV'ARTEANOS DA LUNDA SUL


Kyatukambe kyene kyatutolesa “O que nos falta é o que nos enfraquece” (Mulele S/D).
A Mediateca de Saurimo, inaugurada há bem pouco tempo, pretende atingir um universo de 2000 utentes/dia. O problema “que está com ele” chama-se falta de leitores/pesquisadores.
Solução: convidou como activista junto da classe estudantil o Núcleo Lev’Arte da Lunda Sul, instituição vocacionada para promover a arte e a literacia, fazendo palestras nas escolas do I e II ciclos do ensino geral e Institutos superiores politécnicos. Sendo algo vocacional a que os jovens do Núcleo se entregam de forma altruística,  até aí não se veria dificuldade, mas há um:
Problema: O Núcleo não tem apoios financeiros (excepto de um amigo FM) nem das instituições privadas e muito menos públicas. Para levar os estudantes à palestra, na Cinemateca (evento desta) o amigo e orador convidado pelo Núcleo teve de transportar os estudantes na sua viatura. Os organizadores dos eventos que recorrem ao Núcleo para mobilizar os estudantes acabam repassando toda a responsabilidade ao Núcleo, aproveitando-se do dinamismo da juventude que se põe ao sol ou ao frio do kasimbu nordestino.
 
O Núcleo Lev’Arte da Lunda Sul grita: só queremos levar/promover as artes. Ajudem-nos a ajudar.

quarta-feira, maio 20, 2015

ME BOCOLARAM MBORA OS BRAÇOS NOS "DA POSE"...


Os "da pose" são uns mwadies que andam de moto com sirene e que usam  umas calças bwe buluadas e uma botas que visitam os joelhos, tipo tropa hitleriana. São os para-militares que uma vezes regulam o trânsito autpomóvel e outras vezes criam também alguma kavwanza à circulação e ao cidadão desprecavido.
Trafegando de Luanda ao Dondo, onde a degradação da rodovia é acentuada, com necessidade ingente de apressados remendos que se colam aqui e acolá, as empresas remendadoras interditem alguns troços da via separada por uma máscula linha de betão, separando os sentidos. Nessa sua empreitada, os remendeiros vão obrigando que todo o tráfego se realize, ora somente à direita do separador, ora somente à esquerda. Outras vezes ainda, a inexistência, nalguns troços, de marcas de asfalto e o afundar das crateras abertas na plataforma desaconselham trafegar sobre o lado correcto, refugiando-se ao sentido oposto ao permitido. Seja uma ou outra a razão, todas associadas aos enormes e constantes buracos, os tripulantes são, vezes sem conta, surpreendidos pelos "da pose" que se entregam descaradamente aos kwanzas, tendo como preferidos os expatriados mas não poupando também os nacionais, a quem, antes da extorsão lançam antecipadamente a pergunta “é nosso colega”?Aos que respondem sim, são mimoseados com outras perguntas e senhas que só eles dominam. Aos que respondem não vêm seus documentos no bolso do motoqueiro que os leva a uma sombra onde o filme se desenrola.
- Vocês não sabem que andar em sentido proibido é crime? Vão pagar multa em Ndalatando e quem tem pressa fala já. – Atira o homem da moto, fortemente “guardado” por um PM “caenche” que não abre a boca, mantendo apenas o respeito e algum medo através das carnes que se invadem do camuflado apertadíssimo.
- Então o chefe já não nos pergunta porque razão trafegávamos nesse sentido? O chefe não sabe que há obra no lado em que devíamos seguir? - Tentou ainda apelar um dos  “atuados”, mas sem que lhe desse ouvidos no sentido racional em que pretendia levar a conversa.
- Já falei. Quem quer “conversar” e ultrapassar a situação fica no meu lado direito. Quem quer ir pagar multa em Ndalatando também pode falar. – Voltou a ameaçar o “da pose” que chamou de imediato uma cidadã chinesa que acompanhava o condutor também chinês, ao que se soube, não dominava ainda o português e a língua dos “da pose” .
- Chinês, queres pagar dinheiro ou queres factura? Perguntou o motoqueiro depois e  interpelar oito condutores que trafegavam em sentido contrario devido a obras na via habitual.
- Amico, fatula não. Eu pacale já muluta no amico. – propôs a senhora enquanto o companheiro que dirigia a viatura se mantinha dentro dela.
- São cinco saldos (5 mil). Vai já buscar.- Ordenou autoritário o “da pose”, sem a mínima vergonha ou receio que entre o grupo de nove automobilistas pudesse estar um seu colega, chefe ou mesmo inspector.
- Amico, tem só tem ndoji mili. - Respondeu a acompanhante do  condutor chinês.
- Não. Chinês é cinco. Senão passo factura. Posso? – Ameaçou o motard.
- Amico, toma sexi mili. Ndá toloco nde mili. – Respondeu a senhora já com as três cédulas na mão.
O homem encostado à mota sacou os documentos e os exibiu à senhora.
- Toma, vai já. Não sabe que policia não dá troca? – Despachou-a, entregando-lhe os documentos que nunca foram conferidos.  E la se foram os “chinocas”, reclamando o troco, mas sem argumentos para derrubar o polícia de trânsito que prosseguiu a negociata, desta vez, com as nacionais.
- E você. Qual é a maca?- Indagou a um dos automobilistas que não abrira a boca até aquele momento.
- É a mesma do sentido contrário, devido a obra na via ascendente. - Respondeu-lhe esperando uma análise da situação.
- Você é do MININT? Ou da defesa?- Questionou o polícia que parecia desconfiar da postura do seu interlocutor.
- Sou civil.- Respondeu o condutor, até então silencioso.
- Se são todos civis, são dois saldos cada um. Já disse. Estão teimosos? Vão a Ndala pagar a notificação. - Voltou a ameaçar o “da pose”, como são chamados os motards da polícia de trânsito.
- Ngana Xiku ya ngoji, tu loloke. Twala uya kutambi. Ngala ngo nyi kondo imoxi. – Explicou, em Kimbundu, o motorista mais inconformado, para pedir: junta já ao troco da minha colega para completar os dois saldos.
(Senhor polícia, perdoe-nos. Estamos a ir a um óbito. Tenho apenas mil kwanzas).
O homem da farda azul marinho, que fingia preencher as notificações com o rosto coberto de rugas, mirou-o fixamente e retorquiu: qual tua colega?
- A chinoca, chefe. É minha colega de desgraça e deixou troco, chefe!
O "da pose", três riscos no ombro, tipo sargento do antigamente, mas é apenas distintivo de agente, olhou para o interlocutor e abriu um sorriso fingido, estendendo-lhe também os documentos.
- Toma. Vão já, mano, e cheguem bem "no" óbito...
Nota: Texto publicado pelo Semanário Angolense em 2015. 

domingo, maio 10, 2015

ME TRAMANKARAM MÔS DODÓS…


Embora não se saiba quando, precisamente, aconteceu essa estória do tramankanso dos dodós, o “fala que fala” apimentado à moda angolense já leva tempo. Ano e meio, mais ou menos.

A cena deu-se entre dois homens e duas senhoras que desenvolveram uma amizade quase parental. Os homens tratam-se por pai e filho, mesmo vivendo, o mais velho, kota Agê, na Tuga e o mais novo, ndenge Dimuka, originário e residente nas terras de Ngola, junto ao maior ribeiro que empresta o nome ao papel moeda. As senhoras, uma, a Kaxinda, diz-se filha de Dimuka, embora se tenham conhecido virtualmente e nunca se tenham avistado "caralmente" como diz o pretenso mas assumido pai. A outra, Dina, também conhecida como “tia dos dodós”, é tuguesa que faz vai e vem, levando umas imbambas trocadas entre o também tuguês Agê, o filho Dimuka e a neta Kaxinda.

Certo dia, Dimuka precisou de livros e pediu-os ao pai que os custeou e os enviou por correio da Tuga às terras de Ngola. Embora sobrevivendo da reforma, Agê, na sua mania da geração dos valores e desprimor às moedas, acabaria por relutar em passar a factura ao filho.

- Olha filho, já tens os dois volumes no correio. Pena é que o custo da transportação é tão alto quanto o da aquisição, mas vais gostar. _ Agê  recomendou a atenção de Dimuka ao post box nos dias subsequentes.

- E quanto te devo, ó pai? É preciso que as contas batam certo para que me possas voltar a ajudar, apelou o filho mesmo sabendo que só muito dificilmente receberia a factura com todos os cêntimos.

- Ó filho, não te preocupes com o dinheiro. Já tive algum e fugiu todo. Os meus amigos e os filhos, biológicos e afectivos, é que me dão a graça de viver, mesmo sem as coroas doutro tempo. _ Escapou Agê.

Dimuka, sabendo do custo dos dois livros, multiplicou-o por dois e cuidou de arranjar os dodós equivalentes na moeda tuguesa. E quase conseguia fazer a operação de envio digital se não fosse o aperto que os banqueiros afinaram às remessas para fora. A crise do ouro negro tinha transformado os dodós em moeda rara quer nas terras de Ngola quer nas de Camões e arredores. Dimuka teve de procurar por Dina dos dodós, que estava de malas aviadas para a antiga metrópole, a fim de levar as apetecíveis verdinhas embrulhadas num lencito de seda perfumado a preceito e as entregar ao seu benquisto pai.

- Coisa que vai à estranja tem de chegar bem cheirosinha. _ Disse para si mesmo Dimuka, antes de entregar a encomenda.

- Podes confiar, Sô Tor., Tão logo baixe o pé no Figo Maduro (nome aeroporto) eu ligo ao teu papai a informar e a combinar o encontro. _ Disse a mulher banhada de satisfação.

Trocaram cortesia e sorrisos. Tudo caminhava a preceito. No dia seguinte, Dimuka recebeu uma chamada a confirmar que Dina tinha chegado bem e falado já com Agê. Dimuka esfregou as mãos de contente. Mais ainda quando recebeu os agradecimentos do pai, embora tivesse terminado com a sua célebre frase, já canção, "o dinheiro faz pouco na minha vida". Tanto de um lado quanto do outro reinou a sensação de confiança.

- O infante é de palavra. Meninos assim é que dava para adotar na juventude. _ Terá desabafado Agê ao desenrolar o lencito de seda carregando umas folhinhas que valem ouro.

- Esse kota é mesmo um tuga mwangolizado. Quem me dera que tivesse ficado connosco quando se deram as vundas do tunda mindele? _ Desabafou Dimuka que me contou presencialmente a sua versao dos factos.

Mas não era tudo. Kaxinda, candidata a escritora, tinha contas por pagar numa editora livreira da estranja e debatia-se com a carência de folhas verdes decoradas com bandeira do tio Sam. Já o tinha comunicado ao pai adoptivo Dimuka e ao vovô Agê que prometeram "ajudar na medida do possível", mas num tempo que não se encurtava.

Numa altura em que Kaxinda desesperava, Agê deu ar de sua Graça. Ligou à Dina pedindo-lhe se podia levar os dodós de volta às terras de Ngola e, desta vez, os entregar à Kaxinda. Conseguido o agrément, telefonou à neta:

- Ove lá, minha neta, teu pai pagou-me os livros mas vou te enviar o dinheiro para ajudar no teu livro. São três folhinhas que valem pouco mas que ja dão um pequeno impulso. Guarda sigilo e não lhe digas nada, está bem? Boa sorte. Uma dona, a Dina, mulher linda séria e inteligente, vai te contactar quando chegar por aí. _ Segredou Agê, ao que mantiveram, neta e avô, a conversa longe de Dimuka que continuou a sua vida e a  sua interação ora com o pai na estranja ora com a filha incógnita que reside a 1200km de distância.

Terminada a transumância invernal, Dina regressou ao antigo ultramar onde decidiu juntar patacas, sendo surpreendida, ao que se conta, com a subida vertiginosa do custo de vida e cada vez mais difícil acesso às verdinhas.

- Estou nas margens do Kwanza onde é esse rio quem todas as contas paga, vou levar à neta do Agê alguns litros dessa água milagrosa e fico com as folhas verdes, verdinhas como o café ribeirinho do Kwanza. _ Filosofou Dina dos dodós.

Na manhã do dia seguinte, Kaxinda, que já sonhara com os dodós vindos da Tuga, receberia os litros do Kwanza.

- Ei-los, filha. Foi teu avô q'os mandou p’ros netos, os teus filhos. _ Atirou Dina esboçando um sorriso matreiro.

- Kwaaanzas, mô Deuju?! E os môs dodós que o vovô me segredou? Ai wé, Ngana Nzambi, me tramankaram mbora môs dodós do livro na Tuga...

E foi esse o grito que se ouviu de Kabinda ao Kunene e da Matamba a Galiza. Já correu muito tempo mas o “conta que conta” vai avivando a cena e com novos detalhes ajindungados.


Nota Prévia: tramankar é um termo do calão luandense do séc. XX que equivale a furto ou apossar-se de algo alheio sem que haja contacto com a vítima. Texto publicado pelo Semanário Angolense a 09.05.2015.

terça-feira, maio 05, 2015

TÁCTICA DE "KAMBUDI"


Se ngulu te convida para uma peleja na lama, território dele por excelência, aluga o kyombo, primo de ngulu. Ambos se estrebucham prazerosamente na lama/podridão sem pôr a tua reputação em maus lençóis.
E se ngulu derrotado pelo kyombo selvagem se for queixar à polícia, tu podes aparecer de fato branco, acudindo kyombo.
Nunca lutes com ngulu na lama. É território dele e podes sair enlameado/sujo.
Assim pensei ocasionalmente.

sexta-feira, maio 01, 2015

A POBREZA QUE O TUGA NÃO VÊ


Nos meses de Março, Abril e Maio, Portugal, e concretamente Lisboa, é uma cidade muito iluminada. Não porque noutras estações do ano falte luz ou energia eléctrica como aqui (Angola). Não. É o sol que se prolonga, para além do raiar que é madrugador. E quando o sol não se põe ao Atlântico, o angolano ou africano recém-chegado às terras de Vaz de Camões tem dificuldades em buscar a quentura dos colchões e lençóis que o aguardam no hotel ou noutra albergaria.

No centro da cidade de Lisboa, o El corte Inglês, a Praça de Espanha, a Fundação Gulbenkian e outras paragens que incluem restaurantes, bares e tascas para “frascos” (imperiais e pomadas) e cafés são referências quase que obrigatórias para visitas periódicas e diárias.

Há porém quem pretenda viver um feriado, visitando os enormes centros de compras ou mesmo, vestido à paisana, enfrentar a enchente na Praça do Relógio (uma espécie de Roque Santeiro organizado). Só que não tarda, a repetição mata o espanto e a preferência começa a ser a cidade subterrânea, o metropolitano de Lisboa, com a sua grandiosidade crescente, que nos remete há alguns séculos de atraso se não corrermos a bom passo e com qualidade.

Aqui, no metrô, surge então a importância do mapa de Lisboa, ou seja, dos transportes públicos da cidade. O Metrô, com as suas quatro linhas: a vermelha-Alameda/Oriente; a verde -Cais do Sodré/Telheiras; a azul -Baixa-Chiado/Amadora Este e a linha Amarela que vai do Rato a Odivelas é meio de transporte público mais procurado, quer por nacionais quer pelos turistas, levando-os aos mais recônditos sítios da capital lusa, às vezes, com os préstimos do comboio de superfície, das carreiras, do táxi e até de amigos. É para tal que existem os amigos, quanto mais não seja para pôr a "fofoca" em dia.

- Comué na banda, tá-se? - Pergunta o Pedro, 20 anos na tuga e sem meios ainda para regressar. Finge um sotaque lisboeta mas nota-se no encadeamento das palavras a fraqueza do vocabulário e a mistura entre português lusitano e um calão já arcaico deixado no auge da sua criação em Luanda.

- Yá! vive-se. Há crescimento.  - Responde-lhe o amigo João Manuel, turista de ocasião que frequenta uma formação profissional de duração intermédia.

E o teu regresso? – Ataca João Manuel, procurando encontrar uma resposta convincente sobre a sua estada na antiga metrópole, numa altura que até os tugas se colocam na fila da frente para atacar as terras deixadas em 1975.

- A minha volta? Daqui há nada. É só tempo de reunir uns farrapos e completar a mobília. – Justifica-se, enroladamente, Pedro que, ao que se diz, já dormita debaixo duma ponte quando não é a sobra da estátua dos heróis que o abrigam em tardes de sol abrasador.

São essas as conversas nos cafés e noutras andanças entre os que vão a Portugal em missão turística, estudos ou de trabalho e os que lá ainda estão nas bumbas precárias, nas pedreiras ou nos bares.

Pedro, um jovem nascido no Cazenga e que nas refregas de 1992 entendeu vender à socapa a cubata da mãe e emigrar para a tuga, que na altura “batia” é um dos que, envergonhados por nada terem amealhado durante o tempo de vacas gordas por lá e balázios por cá, enterraram a vida na copofonia para enfrentar o frio. Erguem hoje terras alheias a troco de migalhas, que dizem ser bem maiores do que aquilo que nos vai ao prato aqui no país, algo que até o pior dos cegos já vê e desmente.

Ainda na Tuga, é no metropolitano de Lisboa que a África se casa com a Europa civilizada. Em cada paragem, o modo poético de estar europeu é sempre cortado ou pela brutalidade de um homem do leste europeu que ignora a leitura dum jornal, preferindo a fala, ou pela harmónica de um pedinte qualquer. E os pedintes que aumentam dia após dia, são homens de todas as idades e sexos.

Na linha azul do metropolitano, por exemplo, é presença obrigatória a de um cão kabiri, aparentando apenas dez semanas, viajando em ombro forte dum rapaz também nos seus dez anitos que chama a atenção de quem é atento a essas coisas. O silêncio corta até os murmúrios dos africanos sempre dispostos a debates. O rapaz faz chorar a harmónica com o farfalho de seus dedos. Não tarda, chovem moedas no copo descartável amarrado ao instrumento musical. A cena se transfere para a carruagem seguinte, e a pobreza ruma até à morte.

Os africanos mudam de linha mas a estória continua. A peça seguinte é executada por dois adultos de grande compleição física. Dir-se-iam, no nosso linguajar, “caenches” de primeira hora. Um leva no colo uma guitarra e o outro uma harmónica. Soa um fado e os portugueses são os primeiros a aliena-los com moedas. De repente, irrompe uma voz incómoda entre os africanos.

- Não há por cá subsídio de desemprego?

À pergunta se segue o silêncio e só as moedas falam no copo. A moda antiga de dar pão ao pobre ou uma sopa morreu. Era uma vez. Passou à história. Ao menino que se devia dar uma escola, pois o pepino ainda pode ser torcido, dão-se moedas e todos aderem até os Padres que se fazem transportar na carruagem. A formação profissional é negada aos jovens desempregados a troco de um fado barato e ainda dizem que problemas como estes só estão em África. Todos vêem, mas fingem não estar atentos ao que lhes queima a barba, porque só o Marburg em Angola é preocupação, só a Dengue em Timor ou cólera em São Tomé matam. Ninguém quer ver. E lá se vai o metropolitano com uma estória que já virou história.

Todos os dias em todas as paragens, o mesmo cão no ombro do mesmo rapaz, o mesmo fado na mesma carruagem e o mesmo dinheiro.
NB: Crónica (ainda actual) escrita em Lisboa, a 4 de Maio 2005. Versão publicada a 18 de Abril de 2015 no Semanário Angolense.