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sexta-feira, maio 01, 2015

A POBREZA QUE O TUGA NÃO VÊ


Nos meses de Março, Abril e Maio, Portugal, e concretamente Lisboa, é uma cidade muito iluminada. Não porque noutras estações do ano falte luz ou energia eléctrica como aqui (Angola). Não. É o sol que se prolonga, para além do raiar que é madrugador. E quando o sol não se põe ao Atlântico, o angolano ou africano recém-chegado às terras de Vaz de Camões tem dificuldades em buscar a quentura dos colchões e lençóis que o aguardam no hotel ou noutra albergaria.

No centro da cidade de Lisboa, o El corte Inglês, a Praça de Espanha, a Fundação Gulbenkian e outras paragens que incluem restaurantes, bares e tascas para “frascos” (imperiais e pomadas) e cafés são referências quase que obrigatórias para visitas periódicas e diárias.

Há porém quem pretenda viver um feriado, visitando os enormes centros de compras ou mesmo, vestido à paisana, enfrentar a enchente na Praça do Relógio (uma espécie de Roque Santeiro organizado). Só que não tarda, a repetição mata o espanto e a preferência começa a ser a cidade subterrânea, o metropolitano de Lisboa, com a sua grandiosidade crescente, que nos remete há alguns séculos de atraso se não corrermos a bom passo e com qualidade.

Aqui, no metrô, surge então a importância do mapa de Lisboa, ou seja, dos transportes públicos da cidade. O Metrô, com as suas quatro linhas: a vermelha-Alameda/Oriente; a verde -Cais do Sodré/Telheiras; a azul -Baixa-Chiado/Amadora Este e a linha Amarela que vai do Rato a Odivelas é meio de transporte público mais procurado, quer por nacionais quer pelos turistas, levando-os aos mais recônditos sítios da capital lusa, às vezes, com os préstimos do comboio de superfície, das carreiras, do táxi e até de amigos. É para tal que existem os amigos, quanto mais não seja para pôr a "fofoca" em dia.

- Comué na banda, tá-se? - Pergunta o Pedro, 20 anos na tuga e sem meios ainda para regressar. Finge um sotaque lisboeta mas nota-se no encadeamento das palavras a fraqueza do vocabulário e a mistura entre português lusitano e um calão já arcaico deixado no auge da sua criação em Luanda.

- Yá! vive-se. Há crescimento.  - Responde-lhe o amigo João Manuel, turista de ocasião que frequenta uma formação profissional de duração intermédia.

E o teu regresso? – Ataca João Manuel, procurando encontrar uma resposta convincente sobre a sua estada na antiga metrópole, numa altura que até os tugas se colocam na fila da frente para atacar as terras deixadas em 1975.

- A minha volta? Daqui há nada. É só tempo de reunir uns farrapos e completar a mobília. – Justifica-se, enroladamente, Pedro que, ao que se diz, já dormita debaixo duma ponte quando não é a sobra da estátua dos heróis que o abrigam em tardes de sol abrasador.

São essas as conversas nos cafés e noutras andanças entre os que vão a Portugal em missão turística, estudos ou de trabalho e os que lá ainda estão nas bumbas precárias, nas pedreiras ou nos bares.

Pedro, um jovem nascido no Cazenga e que nas refregas de 1992 entendeu vender à socapa a cubata da mãe e emigrar para a tuga, que na altura “batia” é um dos que, envergonhados por nada terem amealhado durante o tempo de vacas gordas por lá e balázios por cá, enterraram a vida na copofonia para enfrentar o frio. Erguem hoje terras alheias a troco de migalhas, que dizem ser bem maiores do que aquilo que nos vai ao prato aqui no país, algo que até o pior dos cegos já vê e desmente.

Ainda na Tuga, é no metropolitano de Lisboa que a África se casa com a Europa civilizada. Em cada paragem, o modo poético de estar europeu é sempre cortado ou pela brutalidade de um homem do leste europeu que ignora a leitura dum jornal, preferindo a fala, ou pela harmónica de um pedinte qualquer. E os pedintes que aumentam dia após dia, são homens de todas as idades e sexos.

Na linha azul do metropolitano, por exemplo, é presença obrigatória a de um cão kabiri, aparentando apenas dez semanas, viajando em ombro forte dum rapaz também nos seus dez anitos que chama a atenção de quem é atento a essas coisas. O silêncio corta até os murmúrios dos africanos sempre dispostos a debates. O rapaz faz chorar a harmónica com o farfalho de seus dedos. Não tarda, chovem moedas no copo descartável amarrado ao instrumento musical. A cena se transfere para a carruagem seguinte, e a pobreza ruma até à morte.

Os africanos mudam de linha mas a estória continua. A peça seguinte é executada por dois adultos de grande compleição física. Dir-se-iam, no nosso linguajar, “caenches” de primeira hora. Um leva no colo uma guitarra e o outro uma harmónica. Soa um fado e os portugueses são os primeiros a aliena-los com moedas. De repente, irrompe uma voz incómoda entre os africanos.

- Não há por cá subsídio de desemprego?

À pergunta se segue o silêncio e só as moedas falam no copo. A moda antiga de dar pão ao pobre ou uma sopa morreu. Era uma vez. Passou à história. Ao menino que se devia dar uma escola, pois o pepino ainda pode ser torcido, dão-se moedas e todos aderem até os Padres que se fazem transportar na carruagem. A formação profissional é negada aos jovens desempregados a troco de um fado barato e ainda dizem que problemas como estes só estão em África. Todos vêem, mas fingem não estar atentos ao que lhes queima a barba, porque só o Marburg em Angola é preocupação, só a Dengue em Timor ou cólera em São Tomé matam. Ninguém quer ver. E lá se vai o metropolitano com uma estória que já virou história.

Todos os dias em todas as paragens, o mesmo cão no ombro do mesmo rapaz, o mesmo fado na mesma carruagem e o mesmo dinheiro.
NB: Crónica (ainda actual) escrita em Lisboa, a 4 de Maio 2005. Versão publicada a 18 de Abril de 2015 no Semanário Angolense.

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