Corria
Dezembro e corria o ano apressado. Naquela semana era só sobre o natal que se
falava e "mánada", embora rumores sobre passagem de kwacas por certas
aldeias, raptos e saques soavam cada vez mais intensos e próximos. Era um
roncar permanente nos ouvidos de todos kalulenses: O horroroso ataque dos unitas à vila de kalulu, perpetrado a cinco de Setembro de 1983, podia repetir-se mais dias, menos dias, caso a guarda não fosse reforçada e com vigilância redobrada.
Para
refrear o temor, e conferir tranquilidade o batalhão de Luta Contra Bandidos
reforçava a preparação combativa e cantavam manhã cedo:
"Wazala kiba kyongo/Savimbi wakizalesa/wazala kiba kyongo/
Savimbi wakizalesa, nzaye!
...Ó Savimbi, ó Savimbi tundako/ó Savimbi, ó Savimbi tundako ko Kisongo!"
Os
estudantes da escola do II e III níveis Kwame Nkrumah de Kalulu já gozavam
férias natalícias. Eu era aluno alojado no internato e muitos que se
encontravam na minha condição já tinham partido ou arrumado as malas para ir
gozar o natal com seus familiares. kota Ngunza-a-Xika que durante dois anos fora
meu tutor estava naquele ano a leccionar na Munenga. Tinha abandonado a vila.
Estava porém na vila e no dia de Natal partiríamos juntos para Munenga e depois
à Aldeia de Pedra Escrita, aonde se tinham aglomerado os aldeões da extinta
Limbe. Estávamos em Dezembro à porta do natal, também dia festivo dos kwaca.
E parece
que estavam sem logística para a comemoração ou queriam aproveitar-se da festa
para impor o luto e roubar os parcos haveres dos kalulenses.
Estávamos
no Musafu (Mussafo), entre a padaria e a Missão. Madrugada de natal. Alvorada
no dizer deles. Os tiros começaram pela Banza, Depois pela Kapopa, um pouco
também pelo lado das mangueiras, onde estava uma guarnição das FAPLA (LCB) e
pelos lados do velho Duas-Horas, à saída para Vila Flor e Ndala Usu. Só não
entraram pela Kibuma e foi lá que nos refugiamos entre pedregulhos na montanha.
As balas assobiavam nervosos quando não pelejavam com as cadeias paleolíticas,
terminando aí a sua fúria.
As LCB
pelejaram até onde as forças permitiram, mas tiveram de desmontar o gatilho do
"grau de um pé" e outras peças médias de artilharia. A vila estava
tomada. Seguiu-se fogo, sangue e fumo.
Partiram
o tribunal, a conservatória dos registos, a polícia, entre outras instalações.
Mataram dirigentes e civis indefesos. Raptaram jovens para reforçar suas
fileiras e sexuar forçosamente as raparigas como era seu costume. Roubaram sal,
peixe seco, roupas e tudo. Desta vez não os vi, não. A experiência da Munenga
me tinha alertado para fugir ao lado seguro. Ao mato ou morro.
Ficamos
na mata e morro até os kwaca abandonarem a vila em chamas e choros. Partimos, a
pé, seguindo atalhos até proximidades da Banza de Musende, a caminho da
Munenga. Lá pernoitamos e no dia seguinte fizemos o resto dos 40 quilómetros
até à sede comunal para mais uma noite. No terceiro dia Ngunza e eu completamos
a distância de mais 26 quilómetros até Pedra Escrita onde três dias depois os
Unitas nos encontrariam. Tive de procurar refúgio na aldeia natal de minha mãe,
Mbangu-Kuteka, fazendo mais trinta quilómetros a pé. Lá fiquei até Finais de
Março de 1990.
De
regresso à Pedra Escrita, deparei-me novamente com os Kwacas que ali haviam
feito morada. Até Munenga, de regresso à vila de Kalulu, fui acompanhado pelo
soba, bem relacionado aos Kwaca, que comigo não frocou sequer uma palavra
durante o tempo que durou a marcha de 26 quilómetros.
À
chegada, já o sol visitava as traseiras das montanhas. Arrebol. As
populações começavam a retirar-se para Kanzangiri. Sorte minha, o chefe Gika
(oficial da segurança do Estado) que me conhecia bem, vinha de moto do Dondo e
decidiu levar-me até Kalulu. Já as aulas levavam três meses e o meu nome estava
riscado da lista.
Consegui
justificar as ausências e tive de aplicar a quinta mudança para recuperar as
aulas perdidas. Por sorte, na fuga eu tinha esquecido a roupa e levado os
livros. Valeu-me ter suportado o peso até Mbangu de Kuteka, pois lia e
exercitava.
Quando
saiu a pauta, apto, pedi certificado e guia de transferência para Ngola Mbandi, em Luanda,
onde fiz o III nível.
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