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sábado, agosto 09, 2025

O BONÉ O CRACHÁ


A quentura do sol preguiçoso cedera lugar ao clima frio do cacimbo benguelense. Os raios mais atrevidos _ poucos_  penetravam pelas frestas entre as chapas de zinco do Pavilhão, tingindo de cobre os rostos apressados que cruzavam o recinto. Era fim de tarde, e o murmúrio da cidade e dos feirantes misturava-se ao ranger dos contentores, ao silvo distante do comboio, ao cheiro de peixe fresco e terra poeirenta e reclamar por rega. Ia eu a sair, quando os olhos me levaram a uma cena que parecia suspensa no tempo.

Ali estava ele — o soba — parado como quem procura um caminho entre mundos. Ao seu lado, uma senhora de olhar inquieto apertava a carteira contra o peito, e um jovem, que parecia filho ou seu sobrinho, observava tudo com espanto: as bancadas improvisadas, os tanques de criação, os apriscos, os estábulos, as lavras, as lojas. Era como se o mundo lhe tivesse sido revelado de súbito, sem aviso.

Desci os três ou quatro degraus com cuidado, como quem se aproxima de um altar. Antes de chegar até ele, retirei o boné — gesto simples, mas carregado de reverência.

— Boa tarde, papá. Posso ajudar em alguma coisa?

O soba ergueu o crachá com dignidade, como quem exibe um estandarte.

— Sim, filho. Sou soba daqui. Tive um julgamento e cheguei tarde. Estou com a minha ndona. A mim e a ela disseram que podemos entrar, mas o problema é o meu cunhado. O filho pode ajudar?

— Papá, dá-me um minuto e meio. Vou tentar conseguir um convite.

Ele assentiu com um sorriso cansado.

— Filho, a comichão é minha. Você "endende", nê? Então pode fazer dez minutos. Nós vamos te esperar aqui mesmo.

Entrei apressado, como quem carrega uma missão. Pedi dois convites emprestados e regressei com o mesmo passo urgente, situando o tempo não muito distante do prometido minuto e meio.

— Papá, o seu cunhado já pode entrar. Trouxe dois convites. Se complicarem a mamã, também pode apresentar este aqui. Se não precisar de usar, amanhã ainda poderá usar. Valem até segunda-feira.

O soba olhou-me com surpresa e gratidão.

— Ó filho, muito obrigado! Me fala ainda: você, com esse respeito todo, é daonde? Até te vi que só tiraste o chapéu para vir me cumprimentar.

— Sou do Kwanza-Sul. O meu avô era regedor, portanto seu colega. Via os mais velhos como lhe reverenciavam, e aprendi também na vida a valorizar os nossos papás.

Ele pousou a mão sobre o meu ombro com firmeza.

— Deus te acompanhe sempre, ó filho, e passe essa sua educação aos outros. Se ainda precisar de qualquer coisa, enquanto estiver aqui, é só dar a volta ao campo e perguntar pela casa do soba.

— Muito obrigado, papá.

Mostrei-lhe o caminho para o Stand de Benguela. O soba seguiu com passos lentos, acenando em gesto de gratidão. A esposa vinha atrás, e o cunhado atrás dela, como numa pequena procissão que expunha tambémo modus  vivendi e as relações hierárquicas nas comunidades .

Naquele instante, compreendi que há gestos que não se ensinam — apenas se transmitem. E que, às vezes, basta tirar o boné para abrir portas que não se vêem.


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Nb: a foto foi feita mediante pedido expresso e autorizada.

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