🕊️ A morte é dura. Impiedosa. O mais poderoso adversário da vida — e aquele que jamais vencemos.
Os nossos encontros, presenciais ou digitais, eram fervilhantes de ideias. Concordávamos quase sempre; discordávamos, por birra ou convicção. Mas o bom senso reinava e tudo terminava em meio-termo, regado a amizade.
O último debate girou em torno dos povos que compõem a região de Catete. Ele dizia serem “povos do sul”; eu lembrava-lhe que os avós de Agostinho Neto e Lúcio Lara eram do Libolo — Centro-Oeste — e não sulistas. Ele ripostou: “Catete acolheu gente do planalto, ovimbundu, ao tempo das roças.” Entre risos, provocou: “Eram povos a sul do Kwanza.”
Respondi: “Nós, do Lubolu, estamos a sul do Kwanza, mas não somos ovimbundu. Sou Ngola, irmão dos Catetenses — de cima, de baixo e dos lados.”
Rimos com ternura. E ele, com humor:
— Ó Soberano, fica já assim. Hoje marcaste um golo, mas o nosso jogo terá segunda parte. O Cândido (Fortunato) marcou um segundo Kudisanga kwamakanba e estás intimado a não faltares.”
— “Está bem delegado!” — Respondi-lhe.
Agora, delegado... com quem vou debater na próxima tertúlia da CST1-2003?
...
Defendemos causas e percorremos caminhos. OCarlos não foi apenas camarada — foi O Camarada. Alma generosa, colega firme, irmão de jornadas e utopias. As nossas tertúlias navegavam entre o sagrado e o profano, entre política e fé, entre o país e o mundo.
Na UPRA, onde nos graduámos em Ciências da Comunicação (2003-2007), o destino caprichoso marcou nossas defesas para o mesmo dia, com mesma nota.
— “Porra, Camacoa! Se o tema fosse igual, iam dizer que andámos a kabular!” — brinquei.
Rimos com cumplicidade. Era laço eterno.
O Carlos liderava na escuta, unia na diferença, erguia pontes entre inquietos, ousados e sábios. Era bússola. Era alicerce.
Em Agosto de 2017, após as eleições, encontrámo-nos em debate acalorado. Ele já era colunista do Jornal de Angola; eu, semeava ideias na Nova Gazeta, Jornal Cultura e Semanário Angolense. Incentivou-me a escrever para o jornal-mãe. Seu incentivo deu frutos: escrevi “Ao debate, depois das eleições” — e entrei.
O Carlos inventou a Ngonguita _ Personagem central de sua prosa ficcionada. Elegeu-me leitor primário. As suas crónicas amadureciam como vinho bom — densas, memoráveis, saborosas.
Antes das eleições de 2022, decidi emprestar a minha modesta contribuição ao Partido.
_ Camacoa, preciso de material de campanha. Vou dar o peito pelo nosso Partido.”
Dias depois, recebi a caixa com material de propaganda que foi de grande utilidade. Palmilhei o Lubolu e a Kibala. Conheci Ndal'aXipo (Dala Kaxibo).
Em Junho passado, descobriu que um meu sobrinho trabalhava perto dele. Ralhou-me por não o ter apresentado o rapaz. Rimos. Conversámos. Cultivou, como sempre, paz e afecto. Voltámos a falar sobre os de Catete _ todos _, dos descendentes do Lubolu e das terras longinquas. Foi o último debate.
Cada vez que um dos nossos parte, algo se extingue em nós. A ausência pesa onde vibrava a presença. E o silêncio grita onde antes trocávamos ideias, gargalhadas e cumplicidade.
Partiu o Camacoa, Carlos Manuel Calongo Adão. Filho da nobre terra de Catete de Cima — como gostava de lembrar.
O choro estende-se além de Catete. Chora Angola inteira.
Carlos cresceu por mérito próprio, tornou-se cidadão da Angola total. E do mundo.
Levado pela comoção e revolta interna contra a maldita morte, voltei a adentrar o Cemitério do Alto das Cruzes. É chique, mas não nos devolve o Camacoa e nem nos deixa manter as tertúlias com ele.
O Carlos, nosso eterno delegado de turma, tinha o dom de liderar na escuta, unir na diferença, erguer pontes entre adolescentes inquietos, jovens ousados, profissionais firmes e kotas sábios. Era bússola, era alicerce.
Hoje, estamos mais incompletos e profundamente vazios. A saudade é o que fica. E nas palavras que nos deixou, encontraremos o refúgio para a dor.
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