Crónica 01
- Afilhado, se um dia
fores à Huila, não te esqueças de chegar às cascatas da Huila. Sou comandante
da esquadra comunal. A cascata é, para além do Cristo Rei, Fendas da Tundavala,
Serra da Leba e Serra da Xela (Chela), um dos melhores locais para visitar e
arregalar os olhos. - Disse-me o padrinho, numa conversa havida há já dois meses.
Chegadas
as férias, preparei a "Maria" (nome da carrinha) e fiz-me à estrada: Lwanda-Sumbe-Kanjala-Lopito-Mbengela-Xongoloy-Kilenges-Luvango (Morro da Xela, Cristo Rei, Humpata, Serra da Leba, Tundavala) – Xibya,
Mercado das Mangueiras (Namibe), Luvango. Confira as estórias
Perto
de mil quilómetros da capital de Angola à capital da Huila, a caminho do alto e
montanhoso Sul do país. Entre troços recomendáveis e outros que quase nos
cortam a respiração, ante a presença brusca de buracos assassinos, desfiz-me de
Lwanda-cidade até à ponte erguida sobre o caudaloso e manso Kwanza, a afogar-se no largo Atlântico. É a cobrança de
portagem que me desperta a atenção.
- Tomara que de
trezentos em trezentos quilómetros houvesse essa forma de levar dinheiro ao
cofre do Estado. Andámos a reclamar que as estradas estão más, quando pagamos
pouco ou quase nada para as manter. - Atirei ao meu canino amigo e, mais uma vez, companheiro de viagem. Este concordou
e a viagem ganhou motivo de conversa: as portagens necessárias e os impostos
devidos ao Estado.
- Que tal também uma
cobrança de portagem na ponte sobre o Kwanza, junto à localidade de Kabala? É
recente, imponente e, tarde ou cedo, carecerá de manutenção. - Atirou Martins,
em jeito de provocação, sem se dar conta que os Kz 210.00 pagos na portagem não
tinham sido facturados. O Estado fora aldrabado pelo funcionário e nós,
distraídos, limitamo-nos a avançar sem cobrar a nota de facturaço.
- No regresso, temos
de pedir a factura e se o homem for o mesmo, terá de nos passar o documento em
falta. É preciso que alguém se lembre disso. A ponte tem de fazer o seu
pé-de-meia nesses tempos de verdinhas raras. – Complementei.
Viagem turística é
para ver tudo à volta e à beira da estrada. Mas quando a rodovia nos convida para
testarmos a potência do motor e a nossa aptidão, somente os sinais de trânsito
nos impedem de baixar em demasia o acelerador: visibilidade, condições da via,
estado técnico do meio e atenção redobrada são condimentos para uma condução
defensiva. Assim aprendi num curso em Catoca.
Não tardou chegar ao
Longa, Porto Amboim (onde o sol nos convidava para uma praia que ficou adiada
para uma próxima digressão), rio Keve (onde o bagre fumado, à mostra na kitanda
ribeirinha, faz verter água na boca faminta de quem deixou Lwanda sem tomar o
mata-bicho). Daqui ao Sumbe foram dois assobios.
Calmo, mas sempre
perigoso, o monte do Xingo (pescoço? De quem seria?) apresentava-se valentão
até para os mais destemidos do volante e acelerador. Mudança intermédia, entre
força e velocidade, com o travão sempre a meio. Ao entrar para a antiga cidade
de Novo Redondo, a Maria apresentava o depósito a meio e teve de ser
alimentada.
Já a sair, surgem
casas sobrepostas na montanha que atende pelo nome do Médico-Guerrilheiro do
Glorioso M. Uma fenda se presta a engoli-las a qualquer hora desses dias
pluviosos. As casas erguidas em degraus sulcados sobre o monte argiloso
apresentavam um semblante tristonho e medonho. O motoqueiro abordado não hesita
em apresentar-nos o bairro.
- Aqui é no Américo
Boa Vida. – Disse empolgado.
Olhei para o Martins
que aproveitou a paragem para se aliviar da ureia e joguei rasteiro:
- O camarada Ngola
Kimbanda merecia um chará mais organizado. Aqui não vislumbro boa vida. Olha
para aquela casa abandonada, com a lateral desabada e sem acesso?
Colhemos as imagens
possíveis e cavamos. Uma fomezita se fazia anunciar. Teríamos de resistir até
Kanjala onde "as bombas e dinamites
que despedaçaram a ponte sobre o rio que
dá nome à localidade não meteram medo ao povo unido" que ali
fixou residência e sempre fez o seu negócio agroalimentar. Deslizamos sobre a
nova travessia, também ela construída à base de ferro e betão, mostrando aos
amigos da pólvora que o país se faz com trabalho.
- Kanjala é fome
pequena. - Explicou Miqui, a jovem que disse ter nascido e crescido na aldeia,
mas num tempo já de poucas refregas. Sobre os autores da barbárie contra as
pessoas, os edifícios e a ponte, Miqui, aparentemente bem avisada e disposta
apenas a servir o seu pirão que mata a fome, preferiu não comentar.
- Ó mano, nesses
tempos os pais já não andam mais a falar sobre essas coisas. Quando nasci a
ponte já estava na água e nunca me disseram quem foi que a partiu. – Esquivou-se
ela da provocação, destapando as panelas que reluziam ao sol. Mas é já ao nos
despedirmos que Miqui solta um detalhe: estão a ver aquela "kamunda,
katito, tito" (montículo pequenino
pequenino), é ali que se escondiam.
- Mas, que fome
tinham os homens da pólvora que em vez de procurarem por comida a descarregaram
sobre a ponte? – Indagou o Martins, cuja resposta ainda aguarda.
O peso do pirão com kalulú, que não tinha peixe seco, fez
pressão sobre o pedal acelerador e não tardou chegarmos ao Lopito que me
surpreendeu com a estátua que representa um camionista que abraça numa mão o
volante e noutra a kalashenikov. O jardim que enfeita a rotunda está
mínimamente cuidado, tirando os zungueiros e as crianças que jogavam
despreocupadas a sua garrafinha por cima da relva. Consultada a placa sobre o
monumento, diz tratar-se de uma “homenagem
aos motoristas e ajudantes que de 1975 a 2002 ajudaram o povo e o poder
instituído a levar mantimentos a todos os cantos do país”. Fiz-me à câmara
e, por pouco pediria o livro da cidade para deixar o meu assentimento:
"Homenagem merecida". Mas livro não havia nem tempo. Mbengela (Benguela)
chamáva-nos apressada pois havia encontro “cirúrgico” combinado com o primo
Casemiro, cuja casa devia conhecer. E o encontro foi no Hospital Provincial que
registava um dia de pouca agitação.
Sol ardente, sede a
cobrar água para os lábios ressequidos. Bem próximo do Hospital, a Morena cobiçava-nos
desejosa para farfalharmos as suas areias brancas e águas límpidas. Resistimos:
“Ficas na agenda, ó Praia Morena”.
Não vi o vermelho das
acácias, se calhar por não estarem na rodovia que me conduziu ao Xongoloi (Chongoroi). Antes, no primeiro
desvio para o Wuambu (Huambo),
mulheres de pastores de bovídeos exibem o “mahini”.
Aqui tratam-no apenas por leite azedo e não exactamente mahini como no sul. Cardealmente, estávamos ainda no oeste e não
exactamente no sul como os nortenhos de pouca instrução catalogam os que
nasceram abaixo do Kwanza. Não tardou surgir a vila que nos recebeu debaixo de
chuva grossa.
- Atenção, compadre, à ponte! Tem uma faixa
vedada à circulação. Que terá havido? – A pergunta do Martins ficou perdida no
roncar da Maria que pelejava contra a distância enquanto eu tinha como
adversários os intrusos assassinos e o asfalto molhado.
Com o sol a namorar o
mar, um controlo policial desperta a nossa atenção. À meia-distância estava uma
ponte metálica prestes a ruir. Um trilho lateral indicava-nos que uma outra
fora levada pela fúria da água. Levantando o rosto fui agraciado com a
expressão, “Seja benvindo à província
da Huila”. Estávamos a adentrar o município de Kilenges (Quilengues), cuja vila
se apresenta bem cuidada e asseada. A administração municipal tem no entorno um
jardim com representação de espécies da nossa fauna. Antes, um parque infantil
atende pelo nome de Jacaré. O templo católico, a caminho do duo centenário,
também se mostra alegre e decorado. Fazer fotos se mostrou irresistível.
- Sejam bem-vindos ao
nosso município e desfrutem das belezas da Huila. – Gritou-se do outro lado da
estrada, ao que fomos agradecer e perguntar se se objectava a colecta de
imagens.
- Turismo sem fotos é
como casamento sem filhos. – Disse irónico o mano de Kilenges, sempre com um
sorriso nos lábios.
Entre Kilenges e
Luvangu (Lubango), está Hoke (Hoque), comuna que eterniza um valente comandante
das forças armadas angolanas, tombado em missão patriótica. Simione Mukune é o
nome do bairro que fica depois do ponteco. O local, contam os moradores, tem
dado, em tempo chuvoso, dores de cabeça aos automobilistas e governantes.
- Por cá passam
muitas viaturas que vão ao Kunene (Cunene), Namíbia, Moçâmedes e outros
destinos, procedentes do norte (Luanda, Benguela, Huambo, etc.). – Contou Zito,
um jovem que se apressava em pedir boleia para Luvangu.
Debaixo de um céu já
sem sol, ligo o rádio e a música nos convidava: “Vem, vem, vem| Vem conhecer Luvangu| Luvangu te espera”... A
cidade era um clarão abraçado pela estátua Real implantada sobre o alto da Cela
(Chela).
- Chegamos, compadre.
Estás a ver aquele cerco montanhoso? É mesmo ali. Já lá estive por duas vezes
em missões de serviço. – Atirei ao Martins que não conseguiu disfarsar a sua
alegria.
- Finalmente, Luvango!
O medidor de
distância apontava: mais de novecentos
quilómetros percorridos entre Luanda e a cidade erguida sobre o sopé do monte
da Cela (Chela).
Sem comentários:
Enviar um comentário