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sábado, janeiro 16, 2016

INSTANTÂNEOS DE UMA VIAGEM APRESSADA


Cateculo: aldeia dos meus amigos de adolescência, Avelino Toneco​, Lito​, João Paulo e outros nos tempos em que vivi e estudei em Kalulu. A Cateculo íamos, aos fins de semana, eles buscar mantimentos e eu acompanhando-os e aprendendo como escalar uma palmeira e colher o vinho de palma fresquinho e docinho. E me diziam: bom maruvo não se bebe no chão!

Cateculo é uma aldeia no meio da floresta, rodeada por cafesais e palmeiras. Infelizmente, vi muitos campos que continham cafeeiros cobertos de nada. Toda a vegetaçao foi cortada e queimada. Talvez onde se colhia café, semente de pouco valor comercial nos dias que correm, se pense semear milho ou plantar mandioqueira. A fome e o imediatismo tb nos podem levar a isso.

Marginal do Dondo: aqui ainda se come bom kakusu a mil angolares à beira do Kwanza que é o nome oficial da moeda nacional. Pena é inexistirem wc's e os detritos das casas ribeirinhas serem cegamente canalizados para o grande rio de Angola. Há que se tomar medidas pois isso de os detritos humanos alimentarem peixes e os peixes alimentarem os humanos pode resultar em "jihadi nyi malamba".

Pedra Escrita: aglomerado populacional para aonde confluiram e confluem povos de várias aldeias da regiao. Os Kuteka, os Kipela, os de Tumba Grande, os descendentes de ovimbundu que trabalhavam nas antigas fazendas, os antigos "recuas" do Kisongu, Longolo, etc. foram agregados à força pelo comandante Infeliz quando persistiam em ficar nas lavras ou constituindo aldeolas familiares. A aldeia com mais de quinhentas familias e umas quatro mil almas ja tem escola e água canalizada (embora bruta). Falta alguém se lembrar de concluir o posto médico cuja empreitada iniciada ha mais de cinco anos foi esquecida na décima fiada. É hoje refugio de cabras e lagartos...

Ruinas da Fortaleza de Kalulu: fiquei triste ao ver a nossa fortaleza no estado que a foto mostra...

Construída sobre o Monte Lukulu, que estará na origem da designação da vila de Kalulu, vila sede do Libolo, no Kwanza-Sul, a Fortaleza de Kalulu (ou Calulo nome oficializado nos registos topográficos) foi um dos maiores bastiões da resistência nativa à fixação dos europeus nas terras de Ngola até ao século XX.

Nos tempos da minha infância e adolescência, na década de noventa do século XX, ela cumpria ainda o seu papel militar, sendo o local onde se concentravam as melhores peças de artilharia do exército governamental que fazia face a uma rebelião armada e, por isso, seu último reduto. O entrar e sair de militares era sempre tido como sinal de algum alerta de que o cheio a pólvora podia estar próximo ou sinónimo de novas aquisições em termos de tecnologia militar. Basta ver que o Palácio do Administrador está erquido à entrada do forte.

No tempo da guerra civis entre angolanos a Fortaleza de Kalulu era um local inacessivel a civis comuns, sendo quase místico para a miudagem do meu tempo o que havia e ou acontecia no seu interior, para além das "armas pesadas" e dos "tropas mais cacimbados" que entravam e saíam. Das raras vezes que vi o seu controlo a mudar de mãos, mesmo que fosse por curtos minutos, senti parte da derrota, assim como sentia dor ao ver pedaços de pedra a ela arrancados à força de canhões e morteiros. Mas, dia depois, retornados duma fuga forçada, lá estávamos de novo, a curar as feridas, apagar as cinzas e a contemplar a dureza da nossa Fortaleza contra a qual, infelizmente, a acção voraz do tempo tem sido implacável.

A abertura da Fortaleza de Kalulu ao público aconteceu nos anos de paz efectiva, isto é, depois de 2002. Com a desmilitarização da vila de Kalulu a fortaleza passou a acolher as antenas reprodutoras dos sinais da Televisão Pública de Angola e da Rádio Nacional de Angola.

Embora seja considerada pelos nativos do Kwanza-Sul e por muitos historiadores, que leram sobre ela ou a visitaram, como um "local de memória colectiva", desconheço a existência de um diploma legal que a eleva a património Histórico Nacional, como acontece com outros edifícios classificados, pois não vi nenhuma placa com tal indicação, nem à entrada nem no seu interior.

De uma coisa, porém, tenho plena certeza: a Fortaleza de Kalulu é memória colectiva dos angolanos sobre a resistência oferecida pelos nativos à presença europeia, levando os invasores portugueses a erguer na elevação que se acha no interior da vila um forte em pedra bruta para melhor se defenderem e desferir fogo de artilharia contra os nativos que se revoltavam de tempo em tempo. No seu silêncio, ela conta também o estoicismo dos povos do Lubolu e arredores contra a usurpação de suas terras, subalternização da sua cultura e mutilação de seus usos e costumes. Um povo fraco e submisso que tivesse renunciado a sua organização política, social e cultural não teria merecido tamanha honra dos conterrâneos de Paulo de Navais.

Sobre os anos das refregas entre movimentos desavindos ao sair de Alvor e, depois, entre o Governo instituído no país e a rebelião armada, a Fortaleza de Kalulu guarda outra História e estórias. Vai daí também a necessidade de se redigir tudo quanto ela registou, formar-se jovens guias que recontem estes episódios aos visitantes da sede administrativa do Libolu que vai conhecendo um crescimento do número de visitantes, sobretudo nos dias de Futebol que é animado em semanas intercaladas pela equipa do Clube Recreativo do Libolo que está na 1ª divisão, ostentando já quatro títulos de campeão nacional.

Depois de ter sido reduzida a depositária das antenas que reproduzem os sinas da Rádio e Televisão Públicas, que caso fossem colocados na elevação maior, Kaliematuji, até dariam maior serventia em termos de alcance dos referidos sinais, a Fortaleza de Kalulu cai aos bocados, como facilmente observará quem para lá se desloca, não se observando movimentação no sentido do seu restauro e ou uma mera reposição dos blocos que se desprenderam do muro, fruto de continuada acção humana ao tempo das refregas e da acção do tempo.

Sabendo que o Palácio do Administrador municipal, que fica à sombra da escadaria da centenária fortaleza, beneficia de restauro, aproveito lançar um SNF (Salvem a Nossa Fortaleza) , procurando que seja lido e alguma alma com poder e apego à memória colectiva se lembre de exercitar a magistratura de influência positiva junto dos poderes político e económico ou mesmo leve mão ao bolso para que se  preserve a Fortaleza de Kalulu.

Já perdemos, com esse andar despreocupado, o Fortim da Kibala cujas pedras foram emprestar força aos alicerces das casas de adobe, não faltando muito para que o mesmo destino seja dado aos blocos que compões a Fortaleza de Kalulu.

Segundo o investigador Carlos Figueiredo, também ele um libolense a prestar docência em Universidades de Macau e Brasil,​ que se juntou a esse apelo, "...com a perda do Fortim da Kibala, infelizmente, apagou-se também uma página importante da História do Libolo. Na altura em que o fortim foi construído, a Kibala era parte integrante do Município do Libolo. No final do séc. XIX e princípio do séc. XX, a localização estratégica de Calulo foi importantíssima. Na Fortaleza de Calulo estava instalado o Posto Militar que funcionava como centro de todas as operações expedicionárias tanto na área do Libolo como nas circunscrições vizinhas da Kissama, do Seles e do Bailundo. O fortim da Kibala foi construído para dar apoio a essas expedições e servir como testa de ferro aos ataques dos nativos da região do Seles e do vale do Longa. O Município da Kibala só foi desanexado do Libolo em 1921, depois de concluída a pacificação da região".

Tornam-se, por isso, imperiosos a responsabilidade moral e o dever histórico-patriótico de todas as mulheres e homens conscientes de toda Angolas que devem unir esforços para a preservação do nosso passado comum, em Kalulu e em outros cantos do nosso país.

Nota: Parte do texto publicado na edição de 15 Jan 2016 do Semanário Angolense.

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