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domingo, janeiro 31, 2016

À VOLTA DA VELA APAGADA


Nessas visitas de reconhecimento ou de "ajuda e controlo", como as chamávamos noutro tempo,  fui ver a minha prima Rosária Albano, no Morro da Luz. A velha Rosária, como a tratamos carinhosamente, é uma pessoa de paz permanente, sem os fingimentos natalicios, e está sempre a rir e a fazer sorrir os que a cercam contando cenas, umas verdadeiras e outras que inventa para entreter os sobrinhos e netinhos. No oeste de África, ela estaria próxima de uma griot.

Ainda não sei por que razão, sempre que estamos juntos, ela não se esquece de perguntar a minha idade e eu, sabendo da sátira que vem sempre da boca dela, vezes há em que aumento mais uns meses ou mesmo uns anitos, só para adoçar a conversa.

Desta vez, começou a falar sobre a idade que eu e suas filhas tínhamos quando se deu a trafulha. E dizia a velha Rosária para a Remisa, a segunda das suas filhas, que "quando chegou a trafulha ela, agora já senhora, contava com apenas dois anos, sendo que a Geny, que vem a seguir à Remisa, estava no sexto mês de gestação". E foi tudo a propósito de quem era o mais velho entre eu e as suas duas filhas em presença.

A minha atenção redobrada para a leitura correcta do seu discurso levou-me a descodificar o que chamou ela de trafulha (confusão dos movimentos, antes e depois da independência de Angola).

- Mana, eu, a trafulha já me encontrou. - Expliquei para aclarar a questão das idades.

- Você, assim, tem já quantos anos? - Questionou ela, para depois acrescentar que "só sabia da data certa do nascimento dos seus dois primeiros filhos", pois era ainda moça, e recitou as datas com dia, hora e tudo.

- A Angelina nasceu no dia 15 de Setembro de 1965. Ela e o Segunda foi quase escadinha. Criei a Angelina só um ano. No ano seguinte, 01 de Agosto de 1967, nasceu o Segunda. O Toy e o Roque (filhos de uma irmã e uma prima respectivamente) nasceram em 1968. - Acrescentou a septuagenária.

Todos seguíamos atentos, inclusive os netos dela e o meu primogênito, Mociano que se acha mais dado às contas do que às estórias, dado o seu curso de Arquitectura.

- E por que a mana se lembra da data de nascimento dos primeiros filhos e não dos outros? - Voltei a indagar, antes ainda que lhe respondesse sobre a minha idade.

- Bem, essa aqui, apontava para a Remisa, enquanto buscava outra data memorável, é a que estava nas costas quando fui ao óbito do soba Kitinu (meu avô materno e homónimo). Encontrei a Kilombu tinha parido naquele mesmo dia. Por isso, você Luciano não pode ser mais velho da Geny. - Explicou ela meio equivocada.

- Então, se a mana foi com a Remisa ao colo ao óbito do nosso avô e encontrou a mãe deu-me à luz naquele mesmo dia, sendo que a trafulha ainda não tinha começado e a Geny ainda não estava na barriga da mana, como é que ela se torna minha mais velha? Quando eu nasci, a Remisa era a nené do colo. Quando chegou a trafulha ela tinha dois ou três anos e eu um ano. A Geny que no ano da trafulha estava na barriga da mana terá nascido em 1976. Portanto, eu tenho 41 anos. A Remisa tem 43 e a Geny tem 39. - Esclareci.

A idosa que seguia atenta a minha explanação, abanando a cabeça de cima para baixo, em jeito de aprovação, ficou alguns segundos com a bola de funje a meio caminho entre o prato e a boca. A kisaka estava já fria e mesmo a pasta de bombô estava também com pouco calor.

- Quarenta e um anos tem o mano? É muito. E eu que te encontrei "te nasceram" naquele mesmo dia em que a  tua mãe foi chorar o pai dela, avô Kitinu, tenho quantos anos? Só pode ser 250 anos. - Concluiu sem aguardar por uma resposta.

A assistência, sobretudo os netos e o sobrinho, o meu filho, fizeram gosto à boca e riram-se um pouco da desconversa da idosa.

- Avó, no mundo não há pessoa viva com essa idade. – Retorquiram os adolescentes.

- Mas eu tenho 250 anos. Me levem no governo para me apresentar na televisão. Se o Luciano tem 41 anos, eu só posso ter mesmo 250. -  Reforçou a velha Rosaria, preparando-se para contar outras malambas seguidas, sempre de forma atenciosa, pela moçada que se diverte e aprende com a velha da família.

É que no meio de tanta brincadeira da anciã há sempre lições que ficam retidas sobre a forma digna de viver em comunidade e alguns relatos históricos que complementam a narração científica.

Já depois da minha retirada, contaram-me que a preleção prosseguiu com os netos que pretendiam mais detalhes sobre o que ela chama de trafulha.

E constou-me que ela contou tim tim por tim tim o quão dura foi a Luta pela Independência de Angola e qual dos três Movimentos “ficou com o povo, dando vacinas, cobertores, sal e roupas de fardo, quando os outros regressaram às matas de onde voltavam de forma relâmpaga apenas para queimar tractores e pilhar galinhas”.

- Nós estávamos mbora com o Movimento do Neto que não fazia mal às pessoas. É por isso que chamo aqueles dias que antecederam e se seguiram à independência do tunda mindele como momentos de trafulha. - Concluiu a velha Rosária.

A vela, sobre a qual se formara uma roda, já tinha vivido a vida que lhe fora dada pelo fabricante. Sem energia eléctrica e sem outra vela substituta, os netos foram escapando um a um, chamados pelo sono. Ela continuava empolgada, ora recontando estórias ora intercalando adivinhas expressas no seu materno Kimbundu.

Porém, à medida que a roda ia ficando vazia, foi percebendo do passo apressado do relógio para o dia seguinte e, no final, a velha seguiu-os também.

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