Viajávamos da capital
ao interior, minha terra natal. Ao longo do trajecto de 270 Km, revezados entre
pavimento selado e buracos que ameaçam os automóveis, é Man Prole, o músico do
Kwanza-Sul, quem nos faz companhia com as suas
melhores quetas de todos os tempos.
- Papá, ele está a
cantar o quê? - Pergunta o filho derradeiro, algo aborrecido. A queta que me
leva aos anos oitenta do século finado nada lhe diz. Pior ainda porque cantada
em Kimbundu, língua que só ouve soar quando é visitado ou visita a avó que
intercala sempre expressões lusitanas e o seu Kimbundu materno.
- Ele está a cantar que
a mãe está a pensar e a chorar o filho desaparecido na tropa. - Traduzi para o
infante.
- Papá, na tropa é
longe?- Voltou a indagar o petiz, agora
interessado na explicação.
- A tropa não é um
lugar. Tropa é o militar. No passado todos os jovens rapazes eram obrigados a
ser tropa e muitos morriam na guerra.
- Guerra é o que papá?
É como no filme que fazem tiros?
- Sim, filho. Faziam
disparos mas eram de verdade e as pessoas morriam mesmo. Morreu muita gente
longe de casa e sem que os familiares tomassem conhecimento do óbito. Havia
pessoas que eram choradas devido a falta de notícias mas que reapareciam.
Quando assim sucedesse, as famílias faziam festa grande. Outros jovens idos ao
serviço militar eram esperados e nunca mais vinham. Mas as mães nunca desistiam
de procurar por notícias dos filhos ausentes ou de lamentar. É isso que Man
Prole canta.
- E o papá também foi tropa
como o meu padrinho?
- Sim, filho. Fui tropa
mas estive na rectaguarda, a guardar a vila de Kalulu enquanto os tropas mais
velhos iam fazer barreira à frente.
- E o papá andava de
traz como o carro quando anda de rectaguarda? É por isso que a casa da avó
ficou muito distante, n´é papá?
A conversa entre pai e
filho ia animada. O volume da música tinha sido baixado ao máximo. Com o
gotejar furioso da chuva só se ouvia mesmo um ruído imperceptível o que parecia
agradar o infante que questionava com mestria.
- Papá o meu padrinho
me disse que a guerra já acabou. É verdade, papá?
- Sim, filho.
Felizmente, já não há guerra. Por isso é que viemos de carro ver a avó e agora
vamos visitar a tia. Antes não era possível andar de carro em segurança porque
os que estavam nas matas queimavam os carros.
- Eles, assim, eram
bandidos, não é papá?
- Sim. Digamos que sim.
Era assim que os tratávamos mas agora já são nossos amigos. Paz é perdoar os
erros do passado e fazer coisas novas em comum.
O rapaz, seis anos
ainda, pareceu ter percebido a explanação sobre os lamentos reproduzidos pelo
músico Man Prole: a guerra, as mortes, a paz e a reconciliação e reconstrução
nacional. Porém, antes mesmo que adormecesse, o arrastar da blindagem num
buraco que se candidatava a cratera, junto à ponte do Longa (EN120), fê-lo
despertar e voltar às perguntas.
- O papá disse que
guerra já acabou. E porquê que o carro se arrastou?
Fiquei segundos sem
responder. Enquanto endireitava o que lhe dizer, preocupei-me em encontrar um
sitio seguro, já no lado da Quibala, que não prejudicasse a circulação dos
outros automobilistas e parei para ver eventuais danos na viatura e esticar a
coluna há muito afectada por uma lombalgia. O rapaz aproveitou desfazer-se da
ureia e apreciar outros meninos, alguns de sua idade, que empunhavam umas
raízes com um cheiro intenso e seiva branca.
- Papá, olha. Os
meninos estão a mostrar ao papá uns paus. É quê?
Antes mesmo que
ensaiasse a resposta, um coetâneo do Arlindo passou à frente e atirou:
- É mulondolo. É
"midicamento" para dor de coluna e "outrascoisa" dos mais
velhos. Tio, compra. É barato e se quiser pode provar na raiz ou no charope
(raízes demolhadas num frasco).
Katerça, assim nomeado
por nascer numa terça Luarenta, conforme narrou, frequentou a primeira classe
na escola de Kikole. Tem nove anos, apesar de aparentar menos. "Me
ferraram na altura", explicou-se quando o informei que o meu "kasule" tinha
apenas seis. Contou que vende (raízes de) mulondolo (ao que dizem com
propriedades analgésicas e afrodisíacas) para juntar dinheiro para a roupa e os
cadernos que vai usar no próximo ano lectivo.
- Aqui é assim. Os mais
velhos vão redar (pescar com tarrafa) e vendem o peixe que sobra para ter
dinheiro. Nós crianças, assim que o rio (Longa) está muito cheio, para não nos
arrastar na água, cavamos mulondolo e vendemos "nos" tios que vão a
Luanda ou no Huambo. Outros, conforme o tio está a ver, ficam a tapar os buracos na estrada e os motoristas também lhes oferecem dinheiro. - Explicou o petiz, sem gaguejar e acrescentando: se o tio não
gosta de mulondolo pode comprar milho fervido "na" minha mana que
está ali, na sombra.
Abri a porta moedas da
viatura e descobri uma nota de valor modesto que estiquei ao bracito do rapaz.
- Toma Katerça. É para
comprar mesmo um caderno. Espero que chegue. É uma pena o tio não ter mais...
- Obrigado tio. Deus te
ajude e te faça vir mais vezes aqui. E mulondolo vai deixar? Não quer um
"kabucado" de favor? – Retribuiu o rapaz.
Agradeci a oferta
desinteressada do Katerça e aconselhei-o que estudasse sempre, não se
esquecendo, todos os dias, de fazer os exercícios do livro de matemática, para
além de exercitar a leitura.
Na minha terra há um
adágio que reza “kayete lya sapo kayoto”! (o que não se exemplifica não
convence ou não anima!). Para que ficasse claro, contei-lhe um pouco da minha
experiência.
- O tio, quando era
pequeno, também vendeu, ajudando a mãe. Hoje tenho emprego graças à escola,
exemplifiquei.
Katerça agradeceu e eu
parti, debaixo dum teimoso chuvisco, quase a verter a terceira lágrima.
Os instantes seguintes
foram novamente do Arlindo que meteu a limpo as dúvidas sobre mulondolo e
aquela estória contada ao menino Katerça sobre as vendas do tio enquanto miúdo.
-O papá vendeu o quê? O
papá fez o quê com o dinheiro? – Foi um perguntar sucessivo a que se seguiram
respostas que já não ouviu. Embalou com os batimentos da chuva sobre o
tejadilho da viatura e quando despertou já tínhamos chegado à casa da tia
Júlia.
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