… me desculpa só ué. Eu só a otra. Também mereço ser feliz…
A música alta, tocada num Toyota Hiace empanturrado de gente, transborda cá fora, cuspindo ritmos dançantes e reflexivos, enquanto no apertado recinto senhoras puritanas e libertárias se flagelam com farpas que se esticam ao autor material da proeza.
-Mas esse moço foi criado então aonde, que está a trazer essas suas modas de segunda? Interrogou dona Mingas António, devota católica e frequentadora assídua do santuário da Muxima para a retenção do fraudulento Ti-Xico.
_Mana Domingas deixa só. Retorquiu sua comadre e companheira de rezas e viagens, Madalena José, também procedente do santuário além Kuanza, onde pretende a guarda dum sepulcral segredo.
Madó, como é conhecida na paróquia, é devota, muito dada à caridade e trabalhos sociais na comunidade. A sua elegância contrasta com a vida pacata que leva. Mãe de dois filhos, sem pai, apenas confiados à benevolência do Padre Jacinto que os tem como afiliados.
Enquanto as devotas tentam se acalmar, ou no mínimo procurar fôlego para engolir o “também mereço”do Damásio, uma jovem põe “lenha na fogueira” e desbota:
- Hoje em dia homem já não é empresa privada. Se você tá dormir ou mbora engordar com as regalias, as "outras" também querem…
Mal tinha terminado a exposição, do lado da cabine, desata Manuela, dirigindo-se às devotas e acrescenta:
_ Mamã, os tempos mudaram e os gostos também. Os tios agora gostam coisas que vocês nunca imaginaram fazer…
Domingas António meneou a cabeça e exclamou:
- Issungi! agora é assim? já não há mais respeito das mais velhas, até marido das vossas mães tão a receber e ainda vos acodem com música que as p… também merecem? Deus Nossa Senhora!
Entre o “conversa puxa conversa” uma autêntica confusão se instalou no Hiace perante a gratidão do cobrador que ia distribuindo odores fedorentos aos mais próximos.
_Esses jovens nem higiene laboral têm, possas! Mal o mecânico termina os trabalhos juro. Nunca mais essa merda! desabafa desgostoso, um quarentão.
A viagem prossegue. Com ela a “música do momento” que passa e repassa. Entre prós e contras se fomenta multi-logo e aumentam os volumes bocais. O que, cá fora, sai é já um turbilhão de vaias e elogios e palavras desencontradas. Sons paridos pelos altifalantes, gemidos do carro cansado e sufocado pelo excesso de peso e gritarias que procuram espaço num chilrear humano. Jovens atrevidos assobiam ao desgosto da senilidade ortodoxa.
À primeira paragem, Domingas António decide abandonar o carro e aliviar-se do sufoco. Junto à berma, uma orda de larápios a aguardavam com passos de fuga ensaiados. Mal dona Minga, com sacola a tiracolo, poisou o primeiro pé no chão, um atrevido espectou-lhe uma kibiona para a desconcentrar.
Aflita, entre resguardar a sanidade moral e a sacola, preferiu a primeira opção. Aliás nem tempo teve para pensar e a sacola com os haveres já repousava em mãos alheias.
-Socorro, é ngombiri!, socorro sô polícia! me levaram a pasta. Vociferava aflita.
A confusão reinante no interior do pseudotaxi estendeu-se à rua Revolução de Outubro, onde nem polícias, nem fiscais se aprontaram para o solicitado SOS. Os tempos estão mesmo mudados, atirou aos botões.
A sociedade impiedosa assistia impávida ao filme. O ladrão caminhava impune. E os carros se sucediam na paragem. Aos soluços ficou Domingas António, seguindo o rasto da música que rumava ao São Paulo, destino daquele Hiace. Sempre com a “queta do momento” num vai e vem sem fim. Me desculpa só ué. Eu só a otra. Também mereço ser feliz…
O tema levado à Capela, ai na Dona Amália, virou motivo de reflexão caseira para um debate de mulheres de idade a ser moderado por Madalena José.
_ Valerá apenas ceder ou vamos continuar a "muximar" para reter os nossos maridos? foi a pergunta da noite.
Dias passados a comadre Madó que ficou de animar o debate também surpreendeu o padre Jacinto com a sua melhor amiga, Maria, e a resposta tarda em chegar.
Até lá, outras prosas.
(na foto o rei Jacob e as suas "outras")
Luciano Canhanga