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segunda-feira, setembro 29, 2025

A LAVRA DE NINGUÉM

Na aldeia de Rimbe, onde o rio Kazondo se insinuava como veia ancestral entre dois domínios, o das mulheres ao norte e o dos homens ao sul, o tempo não corria: meditava. Ali, o presente era uma sombra alongada do que fora sonhado, mas jamais plenamente alcançado.

Rimbe emergira do êxodo dos migrantes de Kuteka e de Katoto, almas errantes que, fugindo da pólvora e da ignorância, carregavam nos ossos o esboço de um município utópico, a Munenga, cuja concretização tardaria quarenta e cinco anos, quando os fundadores já não mais existissem: mortos, dispersos ou tragados pelo esquecimento.
Ao norte, onde o Kazondo se entregava ao Riaha, rio maior, as mulheres, sobretudo as raparigas, lavavam louça, purificavam o corpo e desenhavam sonhos com a água. Era o território da higiene, da subsistência e da esperança doméstica.
Ao sul, onde o rio contemplava a nascente guardada por uma montanha perene em verdor, os homens — valentes, inválidos, infantes, mancebos e anciãos — encontravam abrigo, silêncio e vício. Era o domínio da introspecção, da força e da fuga.
Foi nesse sul que os mizangala, jovens de espírito inquieto e engenho improvisado, começaram a se envolver com a Kangonya, erva de leve combustão e vasto alcance. Para uns, era estímulo ao labor braçal; para outros, altivez compensatória diante da ausência de coragem ou eloquência. Mas havia os que, tragados pela erva, se afundavam no ócio absoluto. Não se avivavam para nada e tombavam como pintainhos em poça de água. Pareciam-se com sombras de si mesmos. Eram os “molhados”.
Com o aumento exponencial dos adeptos e os efeitos deletérios da planta, a administração municipal, respaldada pela força policial, passou a fiscalizar lavras e hortas ribeirinhas. Repreendia, e por vezes conduzia os infratores ao tribunal da municipalidade, onde se lhes impunha dias de reclusão e trabalhos sociais. As plantas eram arrancadas e incineradas ao sabor dos ventos montanhosos, como oferendas à ordem pública.
O primeiro a ser colhido pela repressão foi Obaid, surpreendido em flagrante inspiração sob a árvore que sombreava uma planta de lyamba. Alegava que ali pensava melhor, que o mundo lhe surgia mais claro quando o fumo ascendia.
Depois veio Ojna, cuja lavra, batizada de Chaleira, não apenas produzia, mas abastecia a comunidade e cercanias. Visitantes vinham de longe e os amigos o apelidaram de “o farmacêutico da montanha”. Mas também ele foi alcançado pela repreensão policial. Condenado a trabalhos sociais, ouviu sermões que não curavam.
Etnerc, mais discreto, cultivava o que chamava de horta da lucidez. Mas nem a lucidez o livrou da punição. A aldeia começava a se fechar sobre si mesma e os homens sentiam que a terra lhes fugia assim como o Rimbe fugira aos seus fundadores.
Foi então que Ueta, mais avisado e igualmente apreciador da Kangonya, convocou os amigos sob a mesma árvore que abrigara os devaneios de Obaid. Propôs-lhes uma solução inédita:
— Abramos uma lavra de ninguém.
— Lavra de ninguém? Como assim? — indagaram os demais, entre risos e perplexidade.
— Uma lavra que não pertença a Obaid, nem a Ojna, nem a Etnerc, nem a mim. Uma lavra que seja de todos e de ninguém. Se vierem fiscalizar, não encontrarão dono. Se perguntarem, diremos: é da aldeia.
Lavra de Luciano Canhanga
A ideia germinou como a própria lyamba. Decidiram abrir o campo junto à nascente do Kazondo, onde o matagal era cerrado e o caminho, quase invisível. Cortaram apenas o necessário, deixando a natureza como cúmplice. A horta passou a chamar-se CHA — Cooperativa dos Homens da Aldeia.
Para que nenhum homem singular fosse responsabilizado, pregaram numa árvore visível a todos uma placa com três letras: CHA. E ali, entre o verde que nunca secava e o silêncio que guardava segredos, os mizangala reinventaram a pertença.
Rimbe, que um dia fugira dos seus, voltava a ser deles, mesmo que fosse só por entre fumaça, folhas e alucinações.

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