O dia estava agitado, como o vento frio que soprava impiedoso, parido e empurrado pela corrente gélida de Benguela. No vasto espaço ao redor do Estádio de Ombaka, agora metamorfoseado em ruelas e vielas por construções temporárias de stands, homens e mulheres se acotovelavam para passar, levantar ou pousar imbambas de toda sorte. O recinto fervilhava com a azáfama de feirantes vindos de todos os cantos de Angola: lá estavam 21 províncias e 326 municípios que representavam o povo, suas identidades culturais e as idiossincrasias de mais de 378 comunas.
Entre os muitos stands, um em particular chamava atenção — o do Úkwa, antiga comuna perto de Kakwaku da minha infância escolar. Ali, repousava a réplica de uma caçadeira esculpida em madeira, que parecia guardar memórias ancestrais.
— Chefe, estão a vender arma! — exclamou a jovem Suzana, talvez tomada pelo medo ou pela curiosidade pueril.
— Arma? De guerra ou de caça? — perguntei, aproximando-me.
O objecto, embora inofensivo, fez-me recuar quarenta e cinco anos no tempo. A memória trouxe-me a imagem da “passadeira” do tio Kapayo. Era assim que chamávamos a sua pequena caçadeira, usada para espantar os pássaros que desenterravam o milho recém-semeado. Os atrevidos que esvaziavam os mamões ainda nos mamoeiros tinham o mesmo destino — sobretudo os mais corpulentos, que, abatidos, viravam conduto em tardes de sol abrasado e fome de leão.
Às vezes, a "passadeira" do tio Kapayo, na nossa Munenga, também servia para afugentar macacos teimosos ou abater lebres quando a sorte sorria. Mas ninguém, além dele, ousava usá-la. Era dono de uma pontaria que gerava inveja e admiração.
— Quando eu crescer como o tio Kapayo, também quero ter uma igual — sonhávamos, primeiro com a chance de segurá-la, depois com o desejo de possuir uma que nos desse liberdade de disparar e levar o produto às mamães, que se alegravam quando nossas armadilhas traziam conduto para casa.
— Chefe, não sai tiro? — voltou a perguntar a Suzana, inquieta ao ver-me ensaiar uma posição de tiro.
— É de madeira. A verdadeira não pode ser exposta. Lá na nossa zona, as caçadeiras têm grande valor. Homem de verdade tem de ter uma, no mínimo. As pequenas são para abater aves que prejudicam o milho. Também servem para afugentar os macacos que destroem a banana, o milho e outras culturas. As grandes, essas só os mais velhos usam. São eles que se embrenham na floresta densa à procura de veados, corsas, porcos-espinhos, javalis, pacaças e outros animais.
Enquanto eu e a senhora do Úkwa desfiávamos rosários de lembranças, a Suzana balançava a cabeça em aprovação, acompanhando cada detalhe de uma história desconhecida e absorvendo o conhecimento como quem bebe água fresca em dia de calor.
Foi então que se aproximou um homem de porte firme, chapéu de palha e olhar sereno. Chamava-se Mário, artesão e contador de histórias da comuna da Munenga. Trazia consigo um pequeno tambor e uma sacola com diversas sementes.
— Essa caçadeira aí tem alma — disse ele, com voz grave. — Foi feita à imagem da que o Augusto Kapayo usava. Eu mesmo vi ele abater um porco-espinho com um só disparo, sem ferir a carne.
— Conheceu o tio Kapayo? — perguntei, surpreso.
— Conheci. Estudámos Dormimos juntos e passamos várias noite na mata, em tempos de caçadas. Ele dizia que a arma não era só para matar, mas para proteger o milho, a honra e os sonhos dos meninos da Munenga. As nossas caçadeiras atendiam a diversão e o imperativo de levar carne para casa. Lembro que o velho João, pai do Kapayo, trabalhou quase um ano a juntar o dinheiro para comprar a caçadeira que ofereceu de presente ao filho, quando esse completou a quarta classe do tempo colonial que era igual à vossa universidade de hoje.
A Suzana arregalou os olhos.
— Tio Mário, e vocês nunca tiveram medo de dormir na mata?
— Medo? Medo é como sombra: só aparece quando o sol está forte. À noite, quem tem caçadeira não tem medo. O caçador aprende a andar com ela sem tropeçar.
Nesse momento, juntou-se ao grupo uma menina de tranças apertadas e olhos curiosos. Chamava-se Lúcia, filha da senhora do stand. Trazia um cesto com frutas e uma pequena estatueta de madeira.
— Esta é a minha primeira escultura — disse ela, oferecendo-me. — É um macaco a fugir da lavra.
Sorri. A arte, ali, era memória viva. Já tinha visto tantos a fugir da lavra com uma espiga de milho na boca.
— Tia, e os homens do Úkwa não sentem medo dos animais na floresta? — insistiu Suzana.
— Filha, tudo se treina e aprende. Medo é para pessoa kawiso. Mas a vida é cíclica. Muitos dias têm sido de alegria para os caçadores, mas também já houve acidentes na mata em que o caçador virou presa.
Ensaiada a posição de tiro, aquele sonho de infância nunca realizado voltou a pulsar em mim. Mas havia outros afazeres. Parti, deixando a Suzana, a Lúcia e o velho Mário trocando saberes sobre a vida nas aldeias do Úkwa e da Munenga e sobre um país que, ali, se mostrava inteiro aos olhos de todos.
E a caçadeira, brilhante e silenciosa, continuava a contar histórias a quem soubesse escutá-la.
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