[Baseado em narrativa do Castro Albano e vista de constatação]
— Veio visitar-me, quando comecei a engatinhar — contou o Castro, baseado em relatos de sua mãe, Kambandu ka Luxandi, que tem um olhar que mistura lembrança e saudade.
O pilão nasceu ali, entre paus, escopro, martelo, conversas e pausas. Não foi apenas um presente. Foi um pacto. E logo serviu para esmagar cana-de-açúcar, cujo suco serviu para confecionar a saborosa e sempre presente walwa ou kisângwa, bebida que o patriarca saboreava como quem escuta os que há muito partiram. Ele dizia que o gosto da cana moída naquele pilão era diferente, como se a madeira tivesse memória própria.
— Esse pilão já viu mais caminhos que muitos homens. Acompanhou-nos de Mbango a Munenga, de Munenga ao Lususu, do Lususu ao Mbango de Kuteka - incluindo a lavra junto à vala da Senhora Kasenda_ e do Mbango à aldeia de Pedra Escrita — narrou a tia Kambandu.
Várias foram as viagens, as epopeias, sempre com ele à cabeça construindo novas estórias. Ficou na casota da lavra, voltou para a casa da aldeia e nunca reclamou. É como se soubesse que a sua missão não era apenas moer. É lembrar.
Hoje, quando a velha Kambandu o usa, na aldeia de Pedra Escrita, não é só o som do pilador contra o pilão que se ouve. É a voz de Kyuma, é o riso da velha Kambandu, é o cheiro da infância misturado ao suco doce da cana, e da fome afugentada pelo milho e bombô triturados naquele pilão. E o Castro Albano, filho de Kambandu ka Luxandi e neto de Kyuma, sabe que enquanto esse pilão existir, nenhum esquecimento será completo.
Na tradição bantu, o pilão é muito mais do que um utensílio doméstico. Ele é símbolo de continuidade e herança. Passado de geração em geração, o pilão carrega a memória dos que vieram antes. Cada marca na madeira é uma história, cada uso é um rito de ligação com os ancestrais.
É também centro da vida comunitária. Em muitas aldeias, o som do pilão marca o início do dia. É um som que une, que convoca, que anuncia o preparo da refeição e o pulsar da vida.
O pilão é ainda um instrumento de iniciação e aprendizagem. Crianças aprendem a pilar com os mais velhos, num gesto que é ao mesmo tempo físico e simbólico — aprender a transformar, a sustentar, a respeitar o alimento.
Confecionado por homens da aldeia, o pilão é elemento feminino e sagrado. Tradicionalmente manuseado por mulheres, o pilão representa o poder de nutrir, de transformar o cru em cozido, o bruto em alimento. É também símbolo de fertilidade e de força silenciosa.
É ainda tido com objecto de rituais e cerimónias. Em algumas comunidades, o pilão é usado em ritos de passagem, como casamentos ou funerais, sendo considerado um elo entre o mundo dos vivos e o dos ancestrais.
Assim, o pilão da tia Kambandu, confecionado pelo seu sogro Albano e Kyuma, não é apenas madeira. É tronco de memória, tronco de identidade, tronco de pertença. É por isso que resiste ao tempo. Já lá se foram perto de cinquenta anos!
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