Translate (tradução)

terça-feira, maio 27, 2025

QUANDO AS LÁGRIMAS NOS ACOMPANHAM

No dia 26 de Abril, duas situações de profunda comoção aconteceram e, a mim, não passaram despercebidas:

Depois de dez anos de vivência e cinco meses de ausência física, o Nelson ainda vivia [simbolicamente] em casa da Lena. Ao entregar os pertences de uso particular do esposo finado ela [viúva] estava a retirar de sua casa o que restava do marido. Era a desaparição total [física] do Nelson daquela casa [não da mente dela, isso leva tempo ou mesmo é impossível]. Por isso, a viúva entrou em prantos. Chorei com ela.

Infelizmente, manda a tradição que a viúva ou o viúvo deve apresentar/entregar aos parentes de sangue os pertences de uso pessoal do de cujus.

Quando chegámos ao Rangel, depois de reunir com a tia Maria [mãe do Nelson], o cenário repetiu-se.

A tia Maria nasceu em Luanda, mas glosa um refinado Kimbundu kibalista que provoca inveja a muitos que nasceram lá e se "calcinharam", misturando 70% de português e restos de palavras de que se recordam em Kimbundu kibalista.

Quando a convidei para ver as coisas do filho finado, resgatadas da casa da viúva, onde este morou durante uma década, a tia Maria exteriorizou:

_ Omon'ami watoka'a kwamamô!

Essa expressão, para quem interpreta a língua [e não faz tradução linear] é muito profunda.

Estava a receber, espiritualmente, o filho peregrino.

O Nelson Ferreira Cabanga já não está entre nós desde 27 de Novembro de 2024. A recepção, pela mãe, dos seus antigos pertences foi como receber o que restava do filho. Daí o "watoka'a kwamamô [regressou à casa da mãe]. Foi tão profundo que as lágrimas não me avisaram e seguiram o caminho habitual da tristeza.

sexta-feira, maio 23, 2025

"ME TOCA SE ÉS PESSOA!"

Nos bairros periféricos de Luanda, habitados por gente com descendência rural, e nas comunidades do interland era comum e ainda pode ser que se oiça, em contendas ligeiras ou de forte agravo, a expressão "me bate se és homem completo".

Permita-me a confissão: aos 5 anos troquei os dentes. Dos dentes de leite passei à dentição definitiva e, de 18 passei a 32 dentes (quando me vieram os de ciso. Estava num processo de completamento. Assim, fui homem completo até aos 8 anos. Sim, até aos oito anos. 

Nisso de estar completo ou incompleto, não tenho contado o corte de unhas e cabelo, pois são permanentemente renováveis. Todavia, aquela cerimónia de integração social, chamada circuncisão, fez-me "homem incompleto", pois uma partícula do meu corpo foi removida. A isso se acresceu uma cirurgia ao baço, tendo sido removida parte do vital órgão, embora os médicos admitem a possibilidade de sua regeneração. Portanto, desde os meus oito anos que já não me encaixo na categoria de "homem completo".

Voltando à "vaca fria", não sendo "homem completo, desde cedo", de igual sorte desde muito cedo deixei de disputar completudes ou levantar a mão em querelas sobre quem mais grita ou quem tem a mão mais leve. Sempre que me foi endereçado o pedido "me bate se és homem completo", bati em retirada, preferindo ouvir impropérios como "boelo, fraco, incapaz" etc.

A expressão "me bate se és homem" é frequentemente usada em contextos de provocação ou desafio, geralmente em situações de conflito verbal. Ela carrega uma conotação de incitação à violência, desafiando a masculinidade ou coragem do interlocutor. Esse tipo de linguagem pode perpetuar estereótipos de gênero e incentivar comportamentos agressivos, o que é profundamente problemático.

É essencial repudiar o uso de expressões como essa, pois elas reforçam uma cultura de violência e desrespeito. Promover o diálogo respeitoso e a resolução pacífica de conflitos é fundamental para construir uma sociedade mais harmoniosa e igualitária. A violência, seja verbal ou física, nunca deve ser normalizada ou incentivada.

Por outro lado, "me bate se és homem" reflete e perpetua uma série de implicações sociais que são importantes assinalar e reflectir sobre:

A frase associa a força física à masculinidade, reforçando a ideia de que "ser homem" está atrelado à capacidade ou vontade de exercer violência. Isso não apenas distorce as expectativas em relação ao comportamento masculino, mas também contribui para a manutenção de papéis de gênero limitantes.

Ao desafiar outra pessoa à agressão, a expressão normaliza e banaliza os conflitos violentos, diminuindo a percepção das suas consequências. Essa atitude pode criar um ambiente em que a violência é vista como uma resposta aceitável ou até mesmo esperada.

O uso de expressões como essa desestimula o diálogo respeitoso e construtivo, promovendo confrontos ao invés de cooperação ou entendimento mútuo. Isso pode dificultar a criação de relações mais pacíficas e harmoniosas na sociedade.

Desafios dessa natureza podem pressionar indivíduos a agirem contra as suas crenças ou valores, apenas para se adequarem às expectativas sociais ou para evitar a percepção de fraqueza. Isso pode gerar stress emocional e até mesmo traumas, dependendo das circunstâncias.

A consciencialização sobre o impacto de expressões dessa natureza é essencial para combater a sua aceitação e incentivar práticas linguísticas mais saudáveis e respeitosas. Substituir provocações por diálogos empáticos ajuda a transformar o ambiente ao nosso redor.

É essencial repudiar o uso de expressões como "me bate se és pessoa", pois elas reforçam uma cultura de violência e desrespeito. Promover o diálogo respeitoso e a resolução pacífica de conflitos é fundamental para construir uma sociedade mais harmoniosa e igualitária. A violência, seja verbal ou física, nunca deve ser normalizada ou incentivada.

Já ouvi também homens: crianças, adolescentes, jovens e outros de barba rija e calvície denunciada a se dirigirem a mulheres com a expressão inversa, "me toca se és mulher completa!".

Já escrevi acima que não me considero e nem sou "homem completo". Para quê bater em uma mulher, mesmo que fosse homem completo?

Afinal, diz o ditado popular que "quem evita não é burro!"

Publicado pelo Jornal de Angola a 25.05.25

segunda-feira, maio 19, 2025

IMORTALIZE-SE O TCHOIA!

Nas crónicas, Man Barras era amigo de Mangodinho, assim como Kanyanga esteve ligado ao Tchoia. So closed, como dizem os anglófonos.
Não se foi a tempo de aferir a existência real de Man-Barras. Mangodinho, porém, tinha corpo, nome e morada, embora as acções lhe fossem atribuídas pelo cronista/contista. Ele, pessoa real, emprestara apenas o nome ao personagem.
Tchoia foi o criador do personagem Man Barras. As crónicas merecem estar em um livro e os herdeiros são apelados a isso. Kanyanga criou Mangodinho. Mangodinho morreu. Passam dois anos. O Lauriano Tchoia deixou-nos, hoje, fisicamente. Vamos depositar, esta quinta-feira, 22, os seus restos mortais (detesto essa expressão, mas não encontrei outra melhor). Está a ser um dia muito triste, pesado, saturado. Nada consegue amenizar a nossa dor e tensão que altea.
Depois das boas-vindas, o Lauriano Gabriel Tchoia deve estar a contar as novas estórias terrenas a Mangodinho (o real). Quanto ao Kanyanga, ainda respira, pestaneja, marca passos cada vez mais lentos e trôpegos. Aguarda a sua vez chegar.
=

quarta-feira, maio 14, 2025

AKUKU, MAKAYA YATEMA!

À mesa, um despertador, à corda, barulhava no seu tic-tac-tic-tac a cada segundo que passava. No fundo, ele era também um relógio destinado a marcar apenas a hora do almoço.

Os meus conhecimentos, aos 4 anos, se limitavam à hora treze. Era naquele momento em que ele gritava furiosamente, como um comboio descarrilado.
_ Trimmmmmmmmmmmmmm! vibrava ensurdecedor, às vezes, que a avó Kikumbu, já no limiar da sua maioridade, chegava a não perceber o mundo à volta.
_ Ndeno kamwasene (1), vociferava a velha aflita.
O almoço, este, estava sempre pronto antes daquela sineta que nos punha voluntariamente de pé e a correr, rumo à baixa, ao riacho inseminado de peixe de água doce que meu pai se gabava de ter sido o obreiro.
Estávamos na Fazenda Kitumbulu do meu avô Fernando Dambi ou Ngana Muryango onde se diz me terem encomendado para nascer, no Mbango de Kuteka, no óbito doutro meu avô, o materno, Knyanga Mungongo ou Ñana Ñunji que era soba grande, exercendo o seu poder de régulo a partir da capital do território, Mbanze yo'Teka.
É pena que as minhas vivências com o avô Dambi tenham sido na primeira infância e o meu "saco" do passado carregar muito pouca informação, mas escreverei, um dia, sobre o toque de chamada daquele velho empenhado em trabalhos campestres ou consulta de adivinhação".
Primeiro tocava o despertador a que chamávamos de relógio de mesa, depois alguém tinha que pregar um enorme berro, à distância, com o código secreto:
_ Akukuééééé, o makaya yateméééé! (2)
E lá vinha ele, meio satisfeito por poder matar o bicho, meio aborrecido por não ter terminado a empreitada. E todos, filhos, netos e visitantes que eram frequentes, sentávamo-nos à mesa para o repasto, regado com makyakya(3) para os mais-velhos.
À tarde, normalmente, era passada em conjunto no terreiro (4) ou no corte de ngando (papiro) material para a confecção de esteiras e outros objectos de cestaria.
Aos sábados e domingos, os homens adultos (sempre o avô, o pai, o tio César e outros visitantes) iam à caça com arcos, flexas e cães. Nós, os miúdos, acompanhávamos as nossas mães à pesca com cestos ou aproveitávamos a ausência dos pais para as nossas aulas práticas de armadilhar perdizes, pacas, macacos, pássaros e pescarias com nassas e anzóis carregados de salalé e minhoca.
O Atenção, cão pastor alemão que meu pai tinha conseguido do patrão da Fazenda Roussel, era o que mais caçava e, por isso, o mais querido da comunidade. Mas havia ainda o Tigre, o Tunga Laô, o Kelula e outros de cujas façanhas me lembro pouco. O meu querido Atenção, que teve durante a minha infância muitos xarás, foi morto por uma onça depois de renhida peleja que deixou ambos em estado crítico. Tanto o meu pai o curou, mas, não resistiu aos ferimentos. Teve funeral humano com uma caixa e campa em reconhecimento dos seus feitos. Do lado oposto, os caçadores da comunidade encontraram a onça esquelética debaixo de uma árvore, onde eventualmente tentava, também, curar-se das mordeduras do Atenção.
Às noites, à volta da fogueira, os adultos eram autênticas bibliotecas de secular saber. Contavam-se adivinhas, estórias de animais e histórias de factos ocorridos num tempo de ouvir dizer. Da escrita pouca importância se dava, mas a “oralitura” era obrigatória. Saber desvendar a genealogia era uma perícia apenas dos bons filhos, aqueles a quem se dizia algo, ouviam, interiorizavam e materializavam ou replicavam. Eram esses os interpretes nas conversas adultas e nas longas viagens. Os mais velhos deixavam os monitores começarem com as perguntas e respostas dos mais novos... Uma aprendizagem que se processava por meio da repetição diária de um rosário costumeiro a que os anciãos acrescentavam novos elementos. Novos contos, novas fábulas e novas experiências que complementavam os já absorvidos pelos noviços... E havia pedagogia!
=
1 Vão chamá-lo!
2 Avô, o tabaco à beira do lume quase que queima!
3 Kaporroto.
4-Local onde se secava e ensacava o café
=
Publicado no Jornal de Angola de 19.01.2025

quinta-feira, maio 08, 2025

CONHECENDO VIZINHOS

Há mais de 15 anos que vou ensaiando travessias fronteiriças (por terra), tendo conhecido os postos de Dilolo Gare (Lwaw), Kasanda (Lunda wa kusangu), Luvu (Zadi), Masabi (Kabinda) e Santa Clara (Namakunde). 

O comércio, "motor de maior potência" é que, normalmente, dá vida aos movimentos fronteiriços pendendo estes mais para o lado forte. [Os laços familiares também têm influência, mas não são os que chamam as alfândegas, zungueiros, carteiristas, malabaristas e outros agentes do bem e do mal]. Quem tem mais a dar vende mais e recebe mais dinheiro que robustece a economia do seu país e povo.

Atravessei a fronteira, via Kasamba, saído de Dundo, por duas ou três vezes, tendo comprado bubus, vestidos e camisas congolesas chamado pelo pregão "basin de qualité". As bijuterias, maioritariamente, "banhadas" e passadas como verdadeiras, são deles. A comida, os combustíveis os electro-domésticos e os Kwanza são nossos, mas é deles a praça maior. Ou seja, há maior número de vendedores quando a praça é deles (do lado deles). 
Em Dilolo, a "visita" calhou-me em um dia de mercado aberto. Os angolanos vendiam kakeya, mandioca e outros produtos alimentares que não eram tantos. Os "zaikôs" tinham quinquilharia diversa e vestuário "made at home", apresentando-se ávidos de atravessar e ficar, enquanto os deste lado (mais ao mar), quando passassem os quilómetros permitidos (ou dentro do raio) era para buscar saúde ou visitar parentes. 


Tal encontrei no Luvu [2014], quando a formalização de laços familiares entre o meu irmão e uma moça de Mbanza-a-Kongo me levou ao mercado fronteiriços à compra de "Or", malavu, sapato-sola-seca e outras coisas infalíveis em um pedido de casamento tradicional [bantu]. O gasóleo, petróleo, feijão, arroz, peixe fresco e seco eram nossos. Eles também vendem coisas, mas as habituais e acima descritas. 

Em todos os pontos fronteiriços visitados, há desequilíbrio entre quem vende o quê, mas nunca como vi na fronteira a Sul, onde os que mais vão e voltam somos nós [angolanos]. E dizem que a taxação alfandegária "desregrada?" afugentou os comerciantes empresariais, deixando o posto fiscal à mercê dos revendedores de rebuçados e maçãs. Não tive tempo para confrontar e não pode essa passagem ser tomada como verdade acabada, embora se notem cada vez menos compras empresariais. Isso é verificado e os moradores contam-no de boca desabrida. O que não diminui, porém, são as idas e vindas de angolanos para comprar coisinhas que devíamos já ter para consumo imediato ou encontrar algo que se venda no nosso lado para o consumo deles. Esse é um desejo ardente, mas o que é que eles, namibianos, não têm e que precisam de comprar em Namakunde/Santa Clara?

A planície com escassa vegetação é a mesma [nos dois lados]. A seca no tempo de estiagem e as zonas alagadas quando chove são as mesmas. A estrada sem buracos, as casas [grandes, médias ou pequnas] contruídas de forma ordeira, os campos de masangu e masambala à beira da estrada e das aldeias, as manadas sempre acompanhadas de pastores e fora da rodovia são deles. 







 


quinta-feira, maio 01, 2025

ANTIGAMENTE: NANYI WANGIBONGELA KAMBONGA KA DYALA?

[Quem terá encontrado uma criança de sexo masculino?]

O tambor, uma lata de leite em pó de qualquer marca, agredido por um ferro, um pedaço de madeira ou uma pedra, gritava ao máximo de sua força e potência sonora. Pá-pá-pá-pá.

Atrás do som, uma, duas ou três senhoras, lábios secos e pés empoeirados de tanto gritar e caminhar, soltavam um coro, alegre para a nossa inocência de kandenges e preocupante para as mamães que podiam estar naquela situação um dia, a contar com as nossas travessuras e o seguidismo ao Mam-Brás, ao cavalo-tica-tica, e, sobretudo no tempo de Carnaval [que ainda era da vitória]. Essas, as mamães, confirmavam antes a presença dos seus tumbonga e prestavam-se em passar informação e pedir detalhes sobre o garoto ou garota desaparecida.

- Pá-pá-pá... O gritar intrépido da lata já ampliado ia deixando rasto na rua varrida, manhã cedo, pelas mamães que não permitiam o convívio com a imundície com que nos confrontamos hoje. Nisso de limpeza das ruas, cada mamã ou sua filha, adulta ou adolescente, atacava o seu lado. O lixo tinha lugar, o balde, no quintal, e depois o depósito com ou sem contentor.

Atrás do barulho da lata, ou quase em simultâneo, a manhã aflita e suas companheiras gritavam, quase já sem forças. Animava as apenas a esperança em reencontrar o filho amado.

_Nanyi wangibongela kambonga Ka dyaléééé? E a lata tambor continuava batucando.

É esse o Rangel do meu tempo, século passado, quarenta e cinco anos já.

E o som, as trambiquices, as magoelas na carroça do carro do vizinho ou dum visitante qualquer, as pescarias de "bagudas" na vala Senado da Câmara, junto ao Catetão, as cercanias da DTA para apanhar loiça descartável já descartada, os pinos na Chicala e ou na Praia do Mbungu, as castanhas de caju que só o comboio permitia chegar ao quilómetro trinta de Viana, tudo isso ainda no ouvido e na memória.

- Vocês, estão a ouvir né? É melhor tomarem cuidado. Se calhar quem se perdeu é vosso amigo da bola ou de brincadeiras. Quando a mamã fala não sai é mesmo para não sair.

Qualquer vizinha era tia. Era mamã no aconselhar, no repreender, se necessário, e acarinhar quando injuriado. 

_ Filho 'lheio tem 'mbora razão dele. P'ra quê só fazer no filho da outra quando você também tem kambonga? - Acudiam, quando nos visse injustiçados.

Hoje, com escolas do povo, colégios privados, ATL e creches para todos os bolsos, media e redes sociais para todos, nem o pregão que procura o filho desaparecido, nem as brincadeiras são as mesmas. Tudo mudou. Até às razões das desapropriações dos meninos. Hoje a atenção redobrada é com raptores de menores. Porque a TV os jogos, as escolas e os quintais murados feitos prisões já não as leva tanto a caçar gafas, apanhar peixinhos para guardar em aquário de garrafão cortado, nadar inocentes no perigo da Chicala e Mbungu ou pendurar-se ao comboio para chegar à fonte de castanhas de caju. São outros os males e os remédios também.

=

Publicado pelo Jornal de Angola, a 30 de março de 2025.