À mesa, um despertador, à corda, barulhava no seu tic-tac-tic-tac a cada segundo que passava. No fundo, ele era também um relógio destinado a marcar apenas a hora do almoço.
Os meus conhecimentos, aos 4 anos, se limitavam à hora treze. Era naquele momento em que ele gritava furiosamente, como um comboio descarrilado.
_ Trimmmmmmmmmmmmmm! vibrava ensurdecedor, às vezes, que a avó Kikumbu, já no limiar da sua maioridade, chegava a não perceber o mundo à volta.
_ Ndeno kamwasene (1), vociferava a velha aflita.
O almoço, este, estava sempre pronto antes daquela sineta que nos punha voluntariamente de pé e a correr, rumo à baixa, ao riacho inseminado de peixe de água doce que meu pai se gabava de ter sido o obreiro.
Estávamos na Fazenda Kitumbulu do meu avô Fernando Dambi ou Ngana Muryango onde se diz me terem encomendado para nascer, no Mbango de Kuteka, no óbito doutro meu avô, o materno, Knyanga Mungongo ou Ñana Ñunji que era soba grande, exercendo o seu poder de régulo a partir da capital do território, Mbanze yo'Teka.
É pena que as minhas vivências com o avô Dambi tenham sido na primeira infância e o meu "saco" do passado carregar muito pouca informação, mas escreverei, um dia, sobre o toque de chamada daquele velho empenhado em trabalhos campestres ou consulta de adivinhação".
Primeiro tocava o despertador a que chamávamos de relógio de mesa, depois alguém tinha que pregar um enorme berro, à distância, com o código secreto:
_ Akukuééééé, o makaya yateméééé! (2)
E lá vinha ele, meio satisfeito por poder matar o bicho, meio aborrecido por não ter terminado a empreitada. E todos, filhos, netos e visitantes que eram frequentes, sentávamo-nos à mesa para o repasto, regado com makyakya(3) para os mais-velhos.
À tarde, normalmente, era passada em conjunto no terreiro (4) ou no corte de ngando (papiro) material para a confecção de esteiras e outros objectos de cestaria.
Aos sábados e domingos, os homens adultos (sempre o avô, o pai, o tio César e outros visitantes) iam à caça com arcos, flexas e cães. Nós, os miúdos, acompanhávamos as nossas mães à pesca com cestos ou aproveitávamos a ausência dos pais para as nossas aulas práticas de armadilhar perdizes, pacas, macacos, pássaros e pescarias com nassas e anzóis carregados de salalé e minhoca.
O Atenção, cão pastor alemão que meu pai tinha conseguido do patrão da Fazenda Roussel, era o que mais caçava e, por isso, o mais querido da comunidade. Mas havia ainda o Tigre, o Tunga Laô, o Kelula e outros de cujas façanhas me lembro pouco. O meu querido Atenção, que teve durante a minha infância muitos xarás, foi morto por uma onça depois de renhida peleja que deixou ambos em estado crítico. Tanto o meu pai o curou, mas, não resistiu aos ferimentos. Teve funeral humano com uma caixa e campa em reconhecimento dos seus feitos. Do lado oposto, os caçadores da comunidade encontraram a onça esquelética debaixo de uma árvore, onde eventualmente tentava, também, curar-se das mordeduras do Atenção.
Às noites, à volta da fogueira, os adultos eram autênticas bibliotecas de secular saber. Contavam-se adivinhas, estórias de animais e histórias de factos ocorridos num tempo de ouvir dizer. Da escrita pouca importância se dava, mas a “oralitura” era obrigatória. Saber desvendar a genealogia era uma perícia apenas dos bons filhos, aqueles a quem se dizia algo, ouviam, interiorizavam e materializavam ou replicavam. Eram esses os interpretes nas conversas adultas e nas longas viagens. Os mais velhos deixavam os monitores começarem com as perguntas e respostas dos mais novos... Uma aprendizagem que se processava por meio da repetição diária de um rosário costumeiro a que os anciãos acrescentavam novos elementos. Novos contos, novas fábulas e novas experiências que complementavam os já absorvidos pelos noviços... E havia pedagogia!
=
1 Vão chamá-lo!
2 Avô, o tabaco à beira do lume quase que queima!
3 Kaporroto.
4-Local onde se secava e ensacava o café
=
Publicado no Jornal de Angola de 19.01.2025