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terça-feira, dezembro 30, 2008

A CIRCUNCISÃO ENTRE OS KIBALA E LUBOLO

Tenho-me guiado na coragem do Reverendo Gabriel Vinte e Cinco que tenho como guia espiritual neste “reencontrar origens” e procuro dedicar-me à causa que é "trazer a verdade sobre os Ambundu do Kuanza Sul".

E tento hoje abordar de forma vivencial a circuncisão entre os Ambundu do Kuanza-sul (Lubolo, Kipala, Kissama*, Haco e Sende)1.

Ao contrário dos Bakongo que por norma efectuam a circuncisão à nascença, os povos do Libolo e Kibala mandam os rapazes para a "casa de água" (onzo-y-mema)2 na adolescência ou na segunda infância, aí entre os seis ou sete aos quatorze anos de idade.

O acto, a circuncisão, chama-se Ù-tina. Consiste no corte do prepúcio. Se nas sociedades modernas tal cirurgia é efectuada por um médico ou para-médico, nas comunidades tradicionalistas é chamado um "mestre" (mesene) para o fazer. Normalmente, o "mestre" fá-lo à sangue-frio. Aconteceu comigo em 1982.

Aos olhos dos garotos, o "mestre" é tido como um individuo de olhos ensanguentados, talvez devido à enorme quantidade de sangue que fez derramar e que seus olhos já viram. É um individuo muito temido pelos rapazes incircuncisos que se apavoram à sua passagem, sendo igualmente respeitado pelos pais. A enfrenta-lo ficam apenas aqueles que não têm outra saída senão este desafio de vida ou morte e que lhes dará um novo estatuto social na comunidade.

A operação acontece, normalmente, junto a um ribeiro e bastante isolado da aldeia, para que estranhos não visitem os circuncidados, tão pouco haja contacto entre mulheres gestantes e os cadetes . O makiakia ou kaporroto 3 serve de esterilizante da navalha do "mestre" depois de cada operação cirúrgica.

Um ajudante ou um parente próximo dos mancebos ajuda o mestre, agarrando as mãos e prendendo igualmente as pernas do “paciente”, imobilizado-o.

Terminada a operação, o cadete senta-se em uma pedra ou um tronco onde deixa escorrer o sangue da cirurgia e lhe são colocados alguns “milongos” à base de folhas medicinais . Durante os curativos são ainda usados medicamentos como o mercuriocromo, tintura de yodo e a penicilina.

O período que demora a cicatrização é também de aprendizagem de várias artes e ofícios, como: caçar e pescar e são também transmitidas aos noviços noções sobre a sexualidade, vida familiar e social, bem como a feitura de armadilhas e utensílios.

Njine é a designação atribuída ao pénis circuncidado, ao contrário de Kifutu (incircunciso). Um homem que tenha “passado pela faca” ganha na sociedade um novo estatuto. Torna-se um homem maduro. Por isso, a própria sociedade condena determinadas acções como: tomar banho desnudado e em público, pois o individuo circuncidado é tido como um homem que deve ser respeitado e diferente dos outros rapazes, ainda que da sua idade, que não tenham passado pela “casa de água”.

A alimentação dos cadetes é feita de forma cuidada e selectiva. Não se alimentam de ervas e só pessoas que não mantenham relações sexuais durante o “aquartelamento” podem cuidar quer da alimentação, quer da guarda, dos circuncidados. Ovos e sal (por excesso) estão fora da dieta. Dizia-se no meu tempo que não se comia do bem e melhor do que no acampamento dos circunciso.

Só depois de curado o último mancebos é que o grupo regressa à casa, mas antes, os "novos homens" da comunidade procuram encontrar uma bananeira, em cujo caule fazem uma perfuração em que enfiam a "pontinha" do membro (diz/ia-se que era para escurecer a cicatriz). Em zonas com existência de imbondeiros o orifício é/era feito no caule desta árvore (a lenda atesta que tal acto dá grandeza ao órgão reprodutor.)

No fim de tudo, quando cumpridos todos os passos e rituais, uma zagaia (arco) e uma flecha (honji li musongo) são entregues a cada um dos cadetes que perfilam e caminham até à aldeia... Cada mancebo exercita disparando a flecha contra a porta de casa (podem ser várias casas indicadas) e são-lhe dadas algumas oferendas.

É ponto assente que ao longo dos anos muitos cadetes não resistiram a hemorragias e sucumbiram, o que tem levado as comunidades a encontrar um meio termo entre o moderno e o tradicional. Um enfermeiro, em vez de um artesão; lâminas individuais em vez de uma faca colectiva; anestesia em vez de à sangue-frio; entre outras inovações de que sou apologista, mas sem que desvirtue ma vertente social e educativa da circuncisão.

Não há, nesta região, registos orais sobre ocorrência, mesmo em períodos muito recuados, de incisão genital feminina, tão pouco de acampamentos de iniciação de raparigas que entretanto se casam muito cedo, comparativamente aos centros urbanos. A sociedade rural Libolense e Kibalense é permissiva à poligamia, condenando, porém, veementemente o adultério feminino e a poliandia que são sancionados com avultadas multas pecuniárias ao homem infractor, bem como de castigos físicos.

O Soba, entidade administrativa da aldeia, também administra a aplicação da justiça comunitária com base no direito consuetudinário.

Os tempos modernos são de busca de combinação entre o moderno e o tradicional, encontrando-se já os sobas a trabalhar lado a lado com os secretários de aldeias, os administradores comunais e os chefes das esquadras policiais mais próximas, buscando um equilíbrio entre o direito positivo e o costumeiro.

*Kissama foi até à criação da província do Bengo foi território sob jurisdição da província do Kuanza Sul. Foi igualmente, tal qual o Libolo e outras, regiões ambundu, dependência do Rei Ngola.

1- VINTE E CINCO, Gabriel: Jornal de Angola, 28/12/2008

2- Local da circuncisão.

3- Bebida alcoólica destilada à base de cana, banana, milho e outros produtos fermentados.

Luciano Canhanga

8 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Caro "Olhos Abertos", este seu relato é mais científico do que se fosse feito por um etnólogo/antropólogo. Enquanto este procura falar dos costumes e tradições dos povos e das gentes com a frieza e impessoalidade de quem se limita a descrever os hábitos de uma sociedade de abelhas, ou de formigas, ou de salalé, o amigo Luciano fala com o conhecimento que é fruto da escola da vida, que é o mais precioso.

Lembro-me que foi divulgado há poucos meses um estudo que refere que os homens circuncidados têm mais probabilidades de resistir à infecção do VIH/SIDA do que os outros. O estudo chegava mesmo a advogar a generalização da prática da circuncisão, como sendo mais um meio de auxílio ao combate à epidemia de SIDA.

Votos de um ano novo cheio de felicidade.

Anónimo disse...

ola luciano
duas pista para a sua aticar o farro joprnlistico.
- qual e a origrm do nome libolo e qual e a ligacao que existem entre os dessententes dos libolo com os lunda cokwe?
-como e feita a circuncio entre o povo lunda cokwe.

ao amigo Denudado
gostaria de comentar com propriedade sobre a circuncisao e o HIV mas como nao so perito no asunto nao me aventuro. mas factos sao factos e contra factos nao podemos argumentar e facto que os lundas e os kwanhamas sao os povos mas circuncisados de angola ainda assim os indeces de seroprevalencias nestas zonas sao das mas altas do pais.

K.A

Fernando Ribeiro disse...

Caro Luciano,
Muito obrigado pelas amáveis palavras que deixou no meu blogue.

Prezado K. A.,
o estudo que referi acerca de uma maior probabilidade de um homem circuncisado resistir à infecção pelo vírus do SIDA, em relação a um homem que não seja circuncisado, é científico. Logo, é baseado em factos, que foram analisados para se chegar a esta conclusão. Não é uma teoria feita no ar.

Note-se que o estudo não afirma que um homem estará protegido contra o SIDA só pelo facto de ser circuncisado. Nada disso. O que o estudo diz é que esse homem tem uma maior probabilidade de resistir à doença. Quer dizer, a circuncisão, por si só, não protege do SIDA, apenas ajuda. Há muitos outros factores que também estão em jogo. Estes factores podem determinar que um homem apanhe SIDA, mesmo que esteja circuncisado. A circuncisão é apenas mais uma protecção, que se tem que juntar às outras.

Os Tchokwe no Leste e os Kwanhamas no Sul vivem em regiões que fazem fronteira com países que têm uma incidência de SIDA muito mais elevada do que Angola. Não admira, por isso, que os contactos havidos com o outro lado da fronteira resultem num aumento do número de casos de SIDA entre os Tchokwe e os Kwanhamas, do que entre as restantes populações angolanas.

Eu nunca estive no Kunene. Por isso, o que vou escrever a seguir resulta apenas do que ouvi dizer. E o que sempre ouvi dizer foi que os Kwanhamas deixaram se se circuncisar há muito mais de cem anos! Já no tempo de Mandume eles não se circuncisavam! Refiro-me unicamente ao acto físico do corte do prepúcio, pois o restante ritual e os ensinamentos relativos à passagem dos rapazes para a idade adulta ter-se-ão mantido. Será que estou errado?

Ana Casanova disse...

Luciano,
gosto muito do teu blog pelas várias caracterisiticas que apresenta a vários niveis.
gosto da forma como escreves, dos temas variados e sempre com muito interesse e este despertou-me bastante interesse pelas variadas vertentes de que trata.
Os costumes antigos podem realmente ser mantidos quando têemm uma razão de ser e podem ser melhoradas as condições em que são feitos como a circuncisão.Já o que se faz em relação às mulheres em determinadas culturas acho de uma crueldade a todos os niveis já que não trás qualquer beneficio há saude.
Aproveito para te dizer que te linkei no meu blog.
Beijinhos e um Ano de 2009 com muita Paz e Sucesso!

Soberano Kanyanga disse...

Amigo Kashuna
Sei que um príncipe Lunda se tinha casado com uma princesa do Libolo.
Também já investiguei um pouco sobre a circuncisão (mucanda) entre os povos Cokwe. Preciso mesmo é de vivenciar. Assisti a cerimónias de fim de mucanda, mas não à mucanda propriamente dita.

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Oi, Canhanga, só hoje estou com tempo para responder ao desafio que me lançaste de me pronunciar sobre a circuncisão dos Ovimbundu.

Não tive a sorte de constatar os rituais de circuncisão na comuna natal, que dista perto de 100 Km a leste do Lobito. O que posso contar é baseado nos relatos e, sobretudo, no que testemunhei (1987-92) já no bairro da Santa-Cruz, subúrbio do Lobito, (até certo ponto representativo das práticas tradicionais) dos Vambalombo (oriundos de Kambandjo, Balombo).

Era no princípio da época seca que os «sutus» usavam das férias escolares para a operação. Os “pipos” eram retirados em casa de um “usevi” (de okuseva=circuncidar), que andava com os olhos encarnados o tempo inteiro, dizia-se, por efeito de tanto contacto com o sangue da esquina sagrada dos homens.

Ora, se não me deixaram frequentar tal tribuna, mal sei dizer se o mesmo gume servia para todos. O que posso dizer é que, para a desinfecção, usava-se cuspir kaporroto sobre o rubro veículo masculino. Nesta ocasião, os «nawa» (cunhado), cuja tarefa era imobilizar o «cindanda», entravam outra vez em cena assumindo o acompanhamento. Sob anuência da família, obviamente, os projectos-de-homem lá ficavam confinados por mais de 30 dias, sujeitos à educação verticalíssima e restrições inimagináveis. Nada de comer ovos, coisas com sal porque, acreditava-se, descobrir-se ia na hora do curativo.

Passavam milhentas vezes nos «ayamba va cinganji» (entre as pernas do palhaço), enquanto se exercitava a comunicação com este mascarado protagonista, disparando automaticamente as repostas em cada gesto dele. As falhas eram sancionadas com «muvanda» (martelar em forma de cruz dois paus sobre a cabeça do instruendo), sendo que mais tarde se cuidavam das complicações colaterais.

Já com a ferida curada, e antes de regressarem ao seio familiar, usava-se ir à margem do rio, fazer orifícios no caule da bananeira e afiar o «nile» (pénis). Masturbavam-se, há quem assim o prefira chamar.

De volta à casa, não só ostentavam o estatuto de homem, como também estavam mais do que habilitados para se comunicar com o «ocinganji». Apesar da pouca idade, eram claramente superiores a qualquer pessoa circuncidada no hospital, cujo indicador pejorativo era o sinal da sutura na cicatriz. E podiam acrescentar a tudo isso o legítimo direito de se rirem quando, por brigas no lar, eventualmente uma esposa na comunidade espalhasse que o marido fugia à faca, «ocilima» (não circuncidado).

Finalmente, peço o favor de não me perguntarem se acho que a circuncisão contribui para a expansão ou retenção do vírus da SIDA. É por demais escorregadia a linha entre ciência e cultura. Hoje, por favor, não.

Soberano Kanyanga disse...

Patissa,
Vou roubar-te algumas semelhanças de que me tinha esquecido: Enfiar a pontinha no caule da bananeira para escurecer a cicatriz, abstenção ao sal e ovos, zonas em que há/houvesse imbondeiros o orifício era feito no caule desta árvore. Dizia-se que engrandeceria (daria grandeza) ao objecto reprodutor. Nos banhos colectivos, em rios, os testados à faca eram os únicos que se podia banhar sem cuecas e de forma despreocupada e estavam sempre atentos àqueles que mergulhavam com roupas...

Anónimo disse...

Este Documentário me foi muito útil na pesquisa do trabalho de Antropologia... Que teve como tema Minha Cultura Ontem e Hoje.
Sou estudante da 12 classe no Ifal Instituto de Formação da Administração 02/07/2014