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quarta-feira, janeiro 15, 2025

CARNE COM 14 GRAUS

Na tropa tuga que os acolheu pela primeira vez, Serpa Pinto era cidade demasiado pequena para que dois jovens educados em missões protestantes não se reconhecessem.

_ Nasci em Ekovongo e cresci em Kamundongo. _ Apresentou-se o cabo Sabino ao cabo Coimbra. Corria o ano 66 do séc. XX. Os Movimentos de Libertação Nacional surgiam como cogumelos influenciados pelo fim da IIGM e conferencia de Bandung, com os ex-militares a vomitarem novas ideias jikulamesistas nos países de origem.

_ Também sou protestante de Cisamba e tenho a vida académica feita no Ndondi (ex Bela Vista, hoje Kacyungu). _ O aperto que se seguiu à apresentação dos dois cabos bienos, dois anos de diferença, foi como a bala de G-3 alojada na caveira dum insurreto. Assim eram as orientações salazaristas e thomazistas naqueles tempos "para Angola e em força" a fim de manter "a joia da coroa lusitana em África" onde enfrentavam, a par da Guiné de Amílcar Cabral, umas das mais duras e desgastantes guerrilhas. "Alojar a bala na caveira dos patrícios e fazê-los temer a nossa autoridade e poder", ordenavam os furriéis à praça formada por nativos e lusitanos chegados em aviões e navios metropolitanos.

Coimbra e Sabino enfrentaram com valentia e sabedoria os dois anos de tropa tuga até chegar a dispensa para a vida civil, cumprindo ou esquivando ordens para que não fossem submetidos a castigos nem tidos como subversionistas. Por outro lado, evitando também o confronto directo com os seus irmãos que nas matas e nas chanas lutavam com kanyangulu e mwana-kaxitu para dar fim ao poder do fascista Salazar e seu presidente peão, Américo Thomaz, das terras de Ngola, Ya Ndemufayo, Wambu, Ndulu yo lo Sima, Cinyama, etc.

Transcorreram os 48 meses esquivando uns e outros, embora o coração fosse revoltoso. Terminada a missão militar, Coimbra acabaria por alistar-se num curso de enfermagem.

_ Único caminho que tenho p/ ajudar a revolução é curar os populares e os compatriotas deixados feridos pelo calor da refrega. _ Disse para si mesmo no dia da decisão. E fez o curso geral de enfermagem, ano e meio, em Nova Lisboa. Seguiu depois para Kamanonge, distrito de Moxico.

Sabino seguiu-lhe no sonho, embora nada houvesse de acerto entre ambos. 

_ Agora que já não estou a servir vou me enquadrar no Movimento.

Tentou fazer-se à estrada até atingir a vila Teixeira de Sousa. Espinhos eram muitos e poucos com histórico militar transpunham as barreiras. Já um ano tinha voado, depois da dispensa da vida militar. 

_ A revolução também se pode fazer na recta-guarda. _ Assim pensou e procedeu sem demora. Enquadrou-se no curso geral de enfermagem e o destino levou-o igualmente a  Kamanonge, onde viria a reencontrar o seu antigo colega e conselheiro Coimbra.

Quando se avistaram pela primeira vez, em Serpa Pinto (hoje Menongue), Coimbra já era pai de segunda caminhada. Sabino ainda sonhava com a noiva deixada intacta em casa do padreMaurício,irmão de Argentina. Mal tinham começado a garinar o jovem, segundo ano do liceu concluído, foi forçado a enquadrar-se na tropa de ocupaçao colonial.

No reencontro de Kamanonge, Coimbra ia em três rebentos, enquanto Sabino contava dois filhos: Sozinho Kanyimonjo e Wandalika Kolohali.

Estavam no berço da revolta contra o sistema colonial. A proximidade com a Rodésia independente e permissiva aconselhava o recrudescer dos combates e até facilitou o surgimento do kasule entre os Movimentos guerrilheiros anti-salazaristas em Angola.  Coimbra na chefia da delegacia da saúde de Kamanonge recebeu o neófito Sabino que se fazia acompanhar da prole e companheira. Surgiram outros anos de companheirismo e cumplicidades entre duas famílias. Durante o sol atendiam os colonos e aldeões da circunscrição e, às noites, os "irmãos kambutas"que abundavam nas chanas trafulhosas do Leste.

Chegou a Revolução dos Cravos. Salazar já pagava pelos pecados e Caetano, seu substituto na ditadura primo-ministerial, via o diabo a assar "joaquinzinhos" em lume brando. 

_ Independência chegou! _ Gritaram as colónias. Negociações à mesa, 14 anos depois do início das nvundas do tunda mindele. Coimbra volta a Silva Porto e Sabino enfrenta a traição rasteira de irmãos de sangue e sofrimentos perante o chicote colonial.

_ É ovimbundu, é colaborador. _ Sem mais nem menos acusaram-nos com sede de lhe tomar a cadeira na delegacia deixada por Coimbra transferido. Preço da revolução feita sem cérebros encanetados. Fugido das masmorras pidescas, à cadeia disesca foi entregue, acusado de traição.

_ Nunca estive com eles. Nunca me simpatizei com eles. _ Defendeu-se perante uma acusação que não permitia advogado. Sol aos quadrados viu. Até estrelas depois de competentemente sovado. Resistiu à tortura e morte. Viu companheiros de desgraça, acusados de colaboracionismo com o Terceiro Movimento, partirem para nunca mais se ouvir falar deles. Com o passar do tempo, recebeu outros parceiros de sofrimento, rusgados na refrega inglória do 27 de Maio de 1977. Muitos deles seguiram o rasto dos primeiros. Desapareceram de dia para noite sem deixar rasto. Quando o sino da liberdade tocou, voltou à urbe nativa, fundada por Silva, o do Porto, onde voltou a encontrar o seu amigo e companheiro de todas as caminhadas que fora transferido para o confiscado hospital missionário de Kamundongo.

Vivem hoje aposentados, cuidando de netos a quem contam a cada sol um episodio, fazendo-lhes companhia a "pomada", as cicatrizes e as memórias.

_ Então, compadre, o que será hoje o nosso almoço? _ Perguntou Sabino na pele de visitante, enquanto ajeitava a sacola em que acomodava o galo trazido da fazenda.

_ Catorze graus, com carne e pirão. É tempo de independência, compadre. _ Respondeu Coimbra.

Rodeados por filhos kasules, sobrinhos e netos comuns, Coimbra e Sabino abriram seus livros de memórias que os descendentes foram anotando e mentalizando com atenção.

_ Vovôs, vamos escrever um livro com vossas recordações. _ Verbalizou Any Bingo, uma neta comum.

A cabidela foi regada com vinho tinto de 14 graus enquanto os mais novos festejavam com kisângwa.

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