Já há muito não se ouve a buzina aguda de um camião recolector de lixo ou as toscas acelerações de um tractor agrícola adaptado às crateras periurbanas para o saneamento doméstico.
Quaquer moda não custa pegar e os miúdos dos musseques, cumprindo as orientações paternais e da Tv, em que muita confiaça depositavam, se tinham habituado a deixar o lixo à porta para ao primeiro sinal de presença do carro ou do tractor correrrem de lebre com o balde ou o saco preto à cabeça.
Os dias se foram sucedendo e os homens da câmara ora passavam de manhã, ora à tarde, ora à noite, ora nunca. Depois vieram as semansas e era dia sim, dia não e dias nunca até que o povo desabituou.
Da porta inundada e a pôr vergonha nas visitas de longe, o lixo foi ganhando pernas. Foi sendo levado à rua. À berma, junto ao lancil ou mesmo disputando espaços no passeio ou no pavimento asfático carcomido pelas águas sem esgotos e os Hiaces apressados amassava-o fazendo das estradas lagos de podridão. Homens, ratos e vermes paridos por insectos disputavam soberanias caseiras. E a solução escondida nos gabinetes tardava libertar-se, até que um dia vieram homens.
***
De colectes reflectores, cones ensaguentados, fardas multi-cores e vassouras empunhadas em braços cansados. Sófregos, sedentos e mal-nutridos, andajosos até. Calcanhares ao sol numa rua poeirenta duma cidade já sem nome. Ninguém encontra nela as condições duma capital ou ninguém, com vergonha, o quer pronunciar. À noite olha-se para o céu, claro ou escuro, e logo se descobre na presença ou ausência do astro o nome da cidade. Apenas a empresa em que pertence o mahindra com o atrelado rebentado de lixo e dezelo tem nome. Mas o tractor vai plantando-o pelas ruas em que passa, qual rastilho de cal num alinhado campo de futebol. E assim se dá continuidade fétida, à pódrida Avenida da Brigada. Aquela brigada de varredores tinha tudo menos a missão de higienizar.
Da porta inundada e a pôr vergonha nas visitas de longe, o lixo foi ganhando pernas. Foi sendo levado à rua. À berma, junto ao lancil ou mesmo disputando espaços no passeio ou no pavimento asfático carcomido pelas águas sem esgotos e os Hiaces apressados amassava-o fazendo das estradas lagos de podridão. Homens, ratos e vermes paridos por insectos disputavam soberanias caseiras. E a solução escondida nos gabinetes tardava libertar-se, até que um dia vieram homens.
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De colectes reflectores, cones ensaguentados, fardas multi-cores e vassouras empunhadas em braços cansados. Sófregos, sedentos e mal-nutridos, andajosos até. Calcanhares ao sol numa rua poeirenta duma cidade já sem nome. Ninguém encontra nela as condições duma capital ou ninguém, com vergonha, o quer pronunciar. À noite olha-se para o céu, claro ou escuro, e logo se descobre na presença ou ausência do astro o nome da cidade. Apenas a empresa em que pertence o mahindra com o atrelado rebentado de lixo e dezelo tem nome. Mas o tractor vai plantando-o pelas ruas em que passa, qual rastilho de cal num alinhado campo de futebol. E assim se dá continuidade fétida, à pódrida Avenida da Brigada. Aquela brigada de varredores tinha tudo menos a missão de higienizar.
E vários dias foram passando aumentando os sacos pretos, à berma, que aumentavan as dificuldades aos pagadores de taxa de circulação. O mahindra repassava hora e hora sem nunca parar. Os homens nele pendurados fingiam-se cegos aos montes que diasputavam os alpes. O mahindra limitava-se a deixar cair outros restos trazidos de cadiengues caseiros. Esferovites, papelões, entulhos e restos de betão inutilizado. Das letras que restavam na memória das crianças apenas se podia descortinar a palavra Solamber que era o nome da empresa.
***
Na madrugada da semana seguinte sacos, papelões e restos de carros vergastados pelo tempo repousam ali. Na rua Sardão Mariano, ao bairro do Soares, espera-se pelos homens das pás e camiões de caixas sanitárias, mas a única vida que se faz presente é uma Hilux de dupla cabina, climatizada e com dois cipaios de luvas sujas. Atiram os possiveis sacos, bem tratados, à carrinha e seguem o seu caminho. O resto repousará aí mais uns dias, senão mesmo semans, até que as larvas fecundem ratos e estes comam gatos.
–Devem ser da fiscalização, admiram-se os moradores. Mas onde estará o grosso da equipa? Interrogam-se ainda. Alguém viu a etiqueta dos que passaram por aqui? Ninguem responde, ninguém viu, apenas as lunetas dum zungueiro benguelense para soletrar na distância.
_ Mano, parece que é Kixiarrasquem. Essa empresa é bué. Até o lixo vai no carro de luxo...
E o que ficou quem o leva? Perguntam-se ainda hoje.
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Na madrugada da semana seguinte sacos, papelões e restos de carros vergastados pelo tempo repousam ali. Na rua Sardão Mariano, ao bairro do Soares, espera-se pelos homens das pás e camiões de caixas sanitárias, mas a única vida que se faz presente é uma Hilux de dupla cabina, climatizada e com dois cipaios de luvas sujas. Atiram os possiveis sacos, bem tratados, à carrinha e seguem o seu caminho. O resto repousará aí mais uns dias, senão mesmo semans, até que as larvas fecundem ratos e estes comam gatos.
–Devem ser da fiscalização, admiram-se os moradores. Mas onde estará o grosso da equipa? Interrogam-se ainda. Alguém viu a etiqueta dos que passaram por aqui? Ninguem responde, ninguém viu, apenas as lunetas dum zungueiro benguelense para soletrar na distância.
_ Mano, parece que é Kixiarrasquem. Essa empresa é bué. Até o lixo vai no carro de luxo...
E o que ficou quem o leva? Perguntam-se ainda hoje.
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Nas Perninhas e na rua do escravo Lino os dias são de disputas renhidas entre ratos famintos e gatos fartos. Gatos que fingem correr com os ratos mas que se abastecem destes. Ao raiar do sol aparecem primeiro os verdinhos empurrando barrigas. Tentam sencibilizar que o local não é para nguendas. Instruem o Zé Pequeno que, de chapéu feito balaio na igreja, recolhe as gorjetas a troca de paz.
Nas Perninhas e na rua do escravo Lino os dias são de disputas renhidas entre ratos famintos e gatos fartos. Gatos que fingem correr com os ratos mas que se abastecem destes. Ao raiar do sol aparecem primeiro os verdinhos empurrando barrigas. Tentam sencibilizar que o local não é para nguendas. Instruem o Zé Pequeno que, de chapéu feito balaio na igreja, recolhe as gorjetas a troca de paz.
Surgem depois os cadetes aos pares e cacetetes. Gato e gata ontam postos ou posições. Agitam os porretos e corre-se sem nexo.
Cai-se. Atropela-se. Cobra-se. Paga-se. Maltrata-se. Cansados, cadetes e verdinhos retiram-se para uma tasca ou taberna escondida e sorvem líquidos multi-efeitos.
O porreto volta a falar a sua língua predilecta. Os aflitos obedecem correndo, deixando para trás os seus pertences e o jantar dos ratinhos desprovidos do matabicho, mas não tarda reúnem-se à volta dos gatinhos, também eles desinteressados no filme.
De repende desponta um homem gordo, de casaco preto, se calhar conseguido numa zunga ou numa cobarde rusga e transportado num Prado de favor côr de cinza. O homem exibe ares de chefia e pergunta autoritário aos dois gatinhos azulados:
- Estão a dar rebuçados?
_Não chefe! Respondeu o que se achava mais atrevido ou menos constrangido à pergunta do chefe à paisana.
-E então? Voltou a questionar o homem exibindo um grosso fio de ouro no braço direito e os dentes amarfinados.
_Chefe de cada vez que enxotamos parece que estão a vir mais outras.
Fingindo não ouvir a resposta o inspector acenou ao chauffer para seguir a marcha em velocidade lenta. E foi vendo a cena coçando a barbicha algodoada de muitas ordens acolhidas ao vento.
E o povo vê no retrovisor do Prado a contínua luta entre os ratos famintos e os gatos desinteressados.
=
Depois do anoitecer, são dezanove e cinquenta e nove. Na nacional toca o ti-rim-rim, rim-rim-rim-rim! Dentro de segundos será o pioc-pioc-pioc. Carlitos Vasculhães vai pegar no comunicado superior e começar as kuribotas do dia. Hoje o povo está atento porque já andou ao adivinho todo mês para lhes dizer quem entra e quem sai na nguvulação. Desta vez querem gente que sabe trabalhar. Gente que vive nos bairros e que sabe como é viver na mesma cama com o mosquito da lama do tubo rebentado, com o rato do lixo não recolhido, com a barata da fossa entupida e com a constipação da poeira da obra suspensa... Esses sim, merecem a nossa comemoração.
E o povo está atento ao noticiário enquanto outros estão na internet do português magalhães. E a lista começa. Sua excelência o comandante de tropa e sobra grande usando da faculdade que lhe é conferida nos termos da alínea X do artigo Y da lei K... e o locutor avança na contextualização da jurisprudência perante a impaciência da Tia Zefa e clientela da barraca.
_ Possas, mas sempre os da mesma faculdade já ninguém mais que estudou aqui no IMEK ou no Makarenko?
Mas o radialista não liga à crítica, até porque não os houve. Mantém-se atento à ordem do papel e atira: Dr. Nza Kutimbe para o cargo de administrador do Kilamba Kiaxi. No cabrité vizinho umas palmas e entornam-se goles de Primus pela sorte do conterra e a possibilidade de mais umas facilidades. Na barraca da tia Zefa uns muxoxos e dores de cotovelo. _Mas esse então mora aonde. Faz o quiê? Sempre a se puxarem sacanas de merda...
O rádio vomita outros nomes e o povo reage quase de forma combinada. Estalidos bocais e assombros nuns, palmas e assobios noutros locais.
Engenheiro Francisco Mala Grande para admisnitrador do Rangel... Para Viana foi nomeado o camarada Povo Mulato...
Já tonto de nomes desconhecidos o povo reclama:
_Sempre os mesmos. Cipaios de onteontem, chimbas de ontem e fiscais de hoje. Nada mais sabem fazer do que correr com as nossas mamãs no Tira Cuecas e no Bota Larga, quando os empregos que surgem, mesmo nas obras, são apenas para os filhos e afilhados deles e as bancadas das praças do povo para as amantes e outras rabujentas... Tia Zefa, dá-me uma Soba Catumbela que vou festejar a desgraça do lixo que está sempre a subir!
O porreto volta a falar a sua língua predilecta. Os aflitos obedecem correndo, deixando para trás os seus pertences e o jantar dos ratinhos desprovidos do matabicho, mas não tarda reúnem-se à volta dos gatinhos, também eles desinteressados no filme.
De repende desponta um homem gordo, de casaco preto, se calhar conseguido numa zunga ou numa cobarde rusga e transportado num Prado de favor côr de cinza. O homem exibe ares de chefia e pergunta autoritário aos dois gatinhos azulados:
- Estão a dar rebuçados?
_Não chefe! Respondeu o que se achava mais atrevido ou menos constrangido à pergunta do chefe à paisana.
-E então? Voltou a questionar o homem exibindo um grosso fio de ouro no braço direito e os dentes amarfinados.
_Chefe de cada vez que enxotamos parece que estão a vir mais outras.
Fingindo não ouvir a resposta o inspector acenou ao chauffer para seguir a marcha em velocidade lenta. E foi vendo a cena coçando a barbicha algodoada de muitas ordens acolhidas ao vento.
E o povo vê no retrovisor do Prado a contínua luta entre os ratos famintos e os gatos desinteressados.
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Depois do anoitecer, são dezanove e cinquenta e nove. Na nacional toca o ti-rim-rim, rim-rim-rim-rim! Dentro de segundos será o pioc-pioc-pioc. Carlitos Vasculhães vai pegar no comunicado superior e começar as kuribotas do dia. Hoje o povo está atento porque já andou ao adivinho todo mês para lhes dizer quem entra e quem sai na nguvulação. Desta vez querem gente que sabe trabalhar. Gente que vive nos bairros e que sabe como é viver na mesma cama com o mosquito da lama do tubo rebentado, com o rato do lixo não recolhido, com a barata da fossa entupida e com a constipação da poeira da obra suspensa... Esses sim, merecem a nossa comemoração.
E o povo está atento ao noticiário enquanto outros estão na internet do português magalhães. E a lista começa. Sua excelência o comandante de tropa e sobra grande usando da faculdade que lhe é conferida nos termos da alínea X do artigo Y da lei K... e o locutor avança na contextualização da jurisprudência perante a impaciência da Tia Zefa e clientela da barraca.
_ Possas, mas sempre os da mesma faculdade já ninguém mais que estudou aqui no IMEK ou no Makarenko?
Mas o radialista não liga à crítica, até porque não os houve. Mantém-se atento à ordem do papel e atira: Dr. Nza Kutimbe para o cargo de administrador do Kilamba Kiaxi. No cabrité vizinho umas palmas e entornam-se goles de Primus pela sorte do conterra e a possibilidade de mais umas facilidades. Na barraca da tia Zefa uns muxoxos e dores de cotovelo. _Mas esse então mora aonde. Faz o quiê? Sempre a se puxarem sacanas de merda...
O rádio vomita outros nomes e o povo reage quase de forma combinada. Estalidos bocais e assombros nuns, palmas e assobios noutros locais.
Engenheiro Francisco Mala Grande para admisnitrador do Rangel... Para Viana foi nomeado o camarada Povo Mulato...
Já tonto de nomes desconhecidos o povo reclama:
_Sempre os mesmos. Cipaios de onteontem, chimbas de ontem e fiscais de hoje. Nada mais sabem fazer do que correr com as nossas mamãs no Tira Cuecas e no Bota Larga, quando os empregos que surgem, mesmo nas obras, são apenas para os filhos e afilhados deles e as bancadas das praças do povo para as amantes e outras rabujentas... Tia Zefa, dá-me uma Soba Catumbela que vou festejar a desgraça do lixo que está sempre a subir!
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E a festa continua. Uma cratera, um cabrité. Brotam moradias, brotam mercados. Novas estradas, novos charcos. Mais convivas se juntam à festa, vindos de distâncias incontaveis.
Luciano Canhanga
E a festa continua. Uma cratera, um cabrité. Brotam moradias, brotam mercados. Novas estradas, novos charcos. Mais convivas se juntam à festa, vindos de distâncias incontaveis.
Luciano Canhanga