RASGANDO A SELVA II
O regresso a Luanda foi surpreendente. Previa um trajecto semelhante ao anterior, revendo o troço Huambo/Alto Wama que a noite e o cansaço não permitiram ver. Mas quis o condutor da Hiace encurtar o caminho, para o gáudio da maioria, e contornar o Huambo. O meu objectivo era também ver coisas novas para contar, nada mal, e concordei.
Sete horas e trinta minutos. A mulher acompanha-me ao Cisindo, 2 ou 3 km da Cidade. Aqui, viaturas para Luanda, Huambo e outros destinos, aguardam paciente e ordenadamente por passageiros. A ordem de chegada é cumprida pelos condutores.
Sobre estrada esburacada e poeirenta, mas com asfaltagem à porta, transpomos marcos importantes. Primeiro o desvio para Chitembo/Kuando Kubango. Antes, passamos por uma ponte provisória que obriga o condutor a uma perícia. Um buraco ao longo da travessia tem de ser acertado ao meio da largura dos eixos.
O rio chama-se Kukema e lembra terríveis combates entre as forças governamentais e da rebelião nos idos anos de 1993 e 1997. Dos dois lados da rodovia objectos de guerra legados à história lembram combates mortíferos que nos levam à reflexão sobre o quanto perdemos ao longo de anos inglórios.
Os nativos esforçam-se em esquecer as mágoas e não comentam. Os visitantes também não perguntam , embora curiosos, evitando que alguém lance farpas. A única voz que se sobrepõe é a do motor diesel da viatura Hiace.
Mais adiante está o Chinguar. Aqui passará o comboio, na sua ligação ao Kunje, (outra localidade que a guerra tornou famosa) para abastecer a cidade do Kuito. São apenas 2 ou 3 km do Kuito ao Kunje.
Na vila do Chinguar o mutismo desaparece e contam-se pequenas estórias sobre os benefícios da paz e sobre as casas velhas que a juventude reclama a todo o custo para reabilitar, mas que o governo não dá.
Atravessa-se a ponte ferroviária e sugam-se mais alguns quilómetros. Não muitos e entramos na vila de Katchiungo, município da província do Huambo.
Aqui a construção de uma grande obra a mando do Ministério da Educação ressalta à vista.
_Um Instituto Médio, se calhar. Murmura-se.
A estrada não pára, nem o carro. Entre buracos e asfalto vai-se alterando a aceleração e o percurso conduz-nos ao Bailundo e não mais à capital do Huambo. O percurso é para mim novidade.
Por embalas e comunas, fazendas e casas de pequeno comercio rural ganham rostos.
De metro a metro estacas delimitam a nova largura da estrada. Dez metros de plataforma ao invés dos actuais oito. Reconstrução da via em curso até que atingimos um trecho da via pouco maltratado pelo tempo e inacção humana. Uma senhora da casa dos 35 solta a voz e resmunga no seu “portumbundu”.
-É graças ao mano Mais Velho que esta estrada ficou assim boa.
Insulto para alguns e elogio para outros. O auditório prefere que o vento se encarregue das palavras, o mesmo vento que leva a música tocada por um rádio tosco.
Terminado o bendito trecho, novamente se dança aos saltos. Adiante se vislumbra uma clareira.
_ É a pista do Bailundo, alertou o motorista, pelo que me lembrei lá ter estado por duas vezes.
No Bailundo contam-se também pequenas estórias sobre a pista, a morte de Valentim Amões que tanto investiu naquela circunscrição e que podia ali aterrar o avião que o matou, se a montanha não se tivesse antecipado. Fala-se ainda sobre o Bunker de Savimbi (na foto), e eu falo sobre a História da criação deste reino do Mbalundu: “foram os nossos ancestrais da Kibala que o fundaram”.
Uns crentes e outros descrentes, o vento mais uma vez se encarrega das palavras.
No largo cívico da municipalidade três placas indicam os destinos: Huambo, Mungo e Alto Wama.
Tomamos o destino frontal que vai ao Wama. De repente o telefone toca. Entre companheiros de viagem fazem-se caras dóceis e outras inamistosas. Levanto o rosto e cruzo olhares com uma bandeira da Unita. O toque de chamada do meu telefone era o hino do Mpla e entendi a mensagem.
A mulher que me pedira para que a pontualizasse sempre que chegasse a um sitio com sinal telefónico perguntou pela minha localização e o porquê do silêncio.
Argumento que no Bailundo só havia Unita (Unitel), telefone que estava sem saldo. O Mpla (Movicel) tocaria no Alto Wama uma hora depois.
ALTO WAMA/PEDRA ESCRITA
O 4 de Fevereiro estava ao meio. Mal entramos para a novel estrada, negra de riscas brancas no meio e laterais, o polícia mostra ser a sua vez de “matar a sede”. Pedem-se documentos do condutor e da viatura mas parecem dizer menos do que mil kuanzas. O motorista desfaz-se dele “pagando”.
Era a segunda vez naquela viagem e outras tantas se seguiriam no Waco, Kibala e desvio da Munenga. Desta vez fico na aldeia de Pedra Escrita onde reside a minha mãe.
O relógio marcava 16 horas. Cheguei. Meu espanto foi que o bairro estava reunificado. É hoje apenas uma unidade que dizem ter sido nada fácil. A minha curiosidade procura pela escola e o centro médico que julgava existirem e a população responde que não havia.
Enquanto aguardo pelo regresso da “minha velha” que foi à lavra, recordo os anos da minha primária, dos quilómetros percorridos à pé, das escolas construídas com adobes feitos pelos alunos mais velhos e pelos pais, das carteiras de munzaza, das lavras dos professores que cultivávamos e das palmatórias na hora da tabuada, e resmungo.
-Como isso regrediu! Bons valores diluíram-se com a guerra e já ninguém quer saber do futuro!
Luciano Canhanga