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quarta-feira, janeiro 22, 2025

A ETIM DE ONTEM E OS KALELUYA


Comparando com  dados demográficos de hoje, em 1975 éramos poucos e no início e metade da decada de oitenta parecíamos igualmente poucos, talvez uns 8 ou nove milhões. A fertilidade e a natalidade estavam em alta, mas as mortes pre-natais, neonatais e de homens adultos tombados na tropa não ficavam atrás, justificando um saldo natal com pouco crescimento. Para as viagens e deslocações, os autocarros e os carros de instituições e privados também não eram tantos quanto actualmente. EVA, ETP e ETIM, algumas rotas servidas com autocarros Keve e outras com camiões e camionetas Bedford e Ifa, levavamo-nos para todos os destinos do país, não nos importando tanto com a duração da viagem. Hoje, cresceu o número de transportadoras, a capacidade e comodidade dos veículos. Os destinos continuam os mesmos (pois o país vai crescendo apenas em termos de novas circunscrições e população que aumenta em quantidade e esperança de vida)..Todavia, as vias mais proximas das cidades parecem ainda padecer de carência de tranaportes públicos. O Kalumbu pede de volta o seu comboio. A Funda e Kabiri também sentem saudades do seu comboio de então, movido a carvão, assim como o Kikolo se quer juntar ao Paraíso e Monte Belo, tal como a Samba quer ver pessoas a deixarem de ser levadas em triciclos motorizados e caixas de camionetas nos destinos para Morro dos Veados, Mundial, Aeródromo e Ramiros.

As pessoas são muitas, sim. As necessidades aumentaram, é verdade. Os desafios somam-se todos os dias. Precisamos, todos, é de multiplicar as soluções e cuidar do que já existe!

quarta-feira, janeiro 15, 2025

CARNE COM 14 GRAUS

Na tropa tuga que os acolheu pela primeira vez, Serpa Pinto era cidade demasiado pequena para que dois jovens educados em missões protestantes não se reconhecessem.

_ Nasci em Ekovongo e cresci em Kamundongo. _ Apresentou-se o cabo Sabino ao cabo Coimbra. Corria o ano 66 do séc. XX. Os Movimentos de Libertação Nacional surgiam como cogumelos influenciados pelo fim da IIGM e conferencia de Bandung, com os ex-militares a vomitarem novas ideias jikulamesistas nos países de origem.

_ Também sou protestante de Cisamba e tenho a vida académica feita no Ndondi (ex Bela Vista, hoje Kacyungu). _ O aperto que se seguiu à apresentação dos dois cabos bienos, dois anos de diferença, foi como a bala de G-3 alojada na caveira dum insurreto. Assim eram as orientações salazaristas e thomazistas naqueles tempos "para Angola e em força" a fim de manter "a joia da coroa lusitana em África" onde enfrentavam, a par da Guiné de Amílcar Cabral, umas das mais duras e desgastantes guerrilhas. "Alojar a bala na caveira dos patrícios e fazê-los temer a nossa autoridade e poder", ordenavam os furriéis à praça formada por nativos e lusitanos chegados em aviões e navios metropolitanos.

Coimbra e Sabino enfrentaram com valentia e sabedoria os dois anos de tropa tuga até chegar a dispensa para a vida civil, cumprindo ou esquivando ordens para que não fossem submetidos a castigos nem tidos como subversionistas. Por outro lado, evitando também o confronto directo com os seus irmãos que nas matas e nas chanas lutavam com kanyangulu e mwana-kaxitu para dar fim ao poder do fascista Salazar e seu presidente peão, Américo Thomaz, das terras de Ngola, Ya Ndemufayo, Wambu, Ndulu yo lo Sima, Cinyama, etc.

Transcorreram os 48 meses esquivando uns e outros, embora o coração fosse revoltoso. Terminada a missão militar, Coimbra acabaria por alistar-se num curso de enfermagem.

_ Único caminho que tenho p/ ajudar a revolução é curar os populares e os compatriotas deixados feridos pelo calor da refrega. _ Disse para si mesmo no dia da decisão. E fez o curso geral de enfermagem, ano e meio, em Nova Lisboa. Seguiu depois para Kamanonge, distrito de Moxico.

Sabino seguiu-lhe no sonho, embora nada houvesse de acerto entre ambos. 

_ Agora que já não estou a servir vou me enquadrar no Movimento.

Tentou fazer-se à estrada até atingir a vila Teixeira de Sousa. Espinhos eram muitos e poucos com histórico militar transpunham as barreiras. Já um ano tinha voado, depois da dispensa da vida militar. 

_ A revolução também se pode fazer na recta-guarda. _ Assim pensou e procedeu sem demora. Enquadrou-se no curso geral de enfermagem e o destino levou-o igualmente a  Kamanonge, onde viria a reencontrar o seu antigo colega e conselheiro Coimbra.

Quando se avistaram pela primeira vez, em Serpa Pinto (hoje Menongue), Coimbra já era pai de segunda caminhada. Sabino ainda sonhava com a noiva deixada intacta em casa do padreMaurício,irmão de Argentina. Mal tinham começado a garinar o jovem, segundo ano do liceu concluído, foi forçado a enquadrar-se na tropa de ocupaçao colonial.

No reencontro de Kamanonge, Coimbra ia em três rebentos, enquanto Sabino contava dois filhos: Sozinho Kanyimonjo e Wandalika Kolohali.

Estavam no berço da revolta contra o sistema colonial. A proximidade com a Rodésia independente e permissiva aconselhava o recrudescer dos combates e até facilitou o surgimento do kasule entre os Movimentos guerrilheiros anti-salazaristas em Angola.  Coimbra na chefia da delegacia da saúde de Kamanonge recebeu o neófito Sabino que se fazia acompanhar da prole e companheira. Surgiram outros anos de companheirismo e cumplicidades entre duas famílias. Durante o sol atendiam os colonos e aldeões da circunscrição e, às noites, os "irmãos kambutas"que abundavam nas chanas trafulhosas do Leste.

Chegou a Revolução dos Cravos. Salazar já pagava pelos pecados e Caetano, seu substituto na ditadura primo-ministerial, via o diabo a assar "joaquinzinhos" em lume brando. 

_ Independência chegou! _ Gritaram as colónias. Negociações à mesa, 14 anos depois do início das nvundas do tunda mindele. Coimbra volta a Silva Porto e Sabino enfrenta a traição rasteira de irmãos de sangue e sofrimentos perante o chicote colonial.

_ É ovimbundu, é colaborador. _ Sem mais nem menos acusaram-nos com sede de lhe tomar a cadeira na delegacia deixada por Coimbra transferido. Preço da revolução feita sem cérebros encanetados. Fugido das masmorras pidescas, à cadeia disesca foi entregue, acusado de traição.

_ Nunca estive com eles. Nunca me simpatizei com eles. _ Defendeu-se perante uma acusação que não permitia advogado. Sol aos quadrados viu. Até estrelas depois de competentemente sovado. Resistiu à tortura e morte. Viu companheiros de desgraça, acusados de colaboracionismo com o Terceiro Movimento, partirem para nunca mais se ouvir falar deles. Com o passar do tempo, recebeu outros parceiros de sofrimento, rusgados na refrega inglória do 27 de Maio de 1977. Muitos deles seguiram o rasto dos primeiros. Desapareceram de dia para noite sem deixar rasto. Quando o sino da liberdade tocou, voltou à urbe nativa, fundada por Silva, o do Porto, onde voltou a encontrar o seu amigo e companheiro de todas as caminhadas que fora transferido para o confiscado hospital missionário de Kamundongo.

Vivem hoje aposentados, cuidando de netos a quem contam a cada sol um episodio, fazendo-lhes companhia a "pomada", as cicatrizes e as memórias.

_ Então, compadre, o que será hoje o nosso almoço? _ Perguntou Sabino na pele de visitante, enquanto ajeitava a sacola em que acomodava o galo trazido da fazenda.

_ Catorze graus, com carne e pirão. É tempo de independência, compadre. _ Respondeu Coimbra.

Rodeados por filhos kasules, sobrinhos e netos comuns, Coimbra e Sabino abriram seus livros de memórias que os descendentes foram anotando e mentalizando com atenção.

_ Vovôs, vamos escrever um livro com vossas recordações. _ Verbalizou Any Bingo, uma neta comum.

A cabidela foi regada com vinho tinto de 14 graus enquanto os mais novos festejavam com kisângwa.

quarta-feira, janeiro 08, 2025

AFUGENTAR PÁSSAROS & FORMATAR A EQUIPA

Já alguma vez se questionou "o que vai mal para que seus filhos/liderados não façam o que você ensina todos os dias?"

Acontece que, às vezes, passamos a vida toda a ensinar a mesma coisa sem que a equipa atine.

Vezes há em que eu mesmo desabafei que "ensinar também cansa!". 

Porém, a sabedoria recomenda "que ninguém se canse de ensinar", pois, "se o lavrador não coloca espantalho todos os dias à volta e dentro da lavra, os pássaros tomam conta dela"!

Aprendi essa máxima com a D. Maria de Lourdes Maria De Lurdes Bartolomeu que a ouviu de sua progenitora. Refleti sobre o seu alcance e revigorou-me, trazendo-a aos meus leitores.

É preciso "colocar sempre espantalhos para afugentar os pássaros". É preciso ensinar sempre até que se atinja o bem-fazer/bem-ser.

quinta-feira, janeiro 02, 2025

ANANÁS E ABACAXI: PARENTES OU DISTANTES?

Oiço em muitas conversas, no campo, se ananás e abacaxi são uma mesma espécie de planta ou diferentes. No Brasil, por exemplo, ananás e “abacaxi” são usados de forma intercambiável, embora o termo “abacaxi” se refira, geralmente, a variedades específicas como o Pérola e o Havaí.

Tratando-se de variedades de uma mesma espécie, aqui vão algumas diferenças e semelhanças:

Espinhos: algumas variedades de ananás têm folhas com espinhos nas bordas, o que pode dificultar o manuseio. A variedade Pérola tem folhas com menos espinhos ou sem espinhos, tornando-a mais fácil de manusear. Algumas variedades de abacaxi, como o Pérola, são conhecidas por serem mais doces e menos ácidas do que outras variedades de ananás.

Quanto à aparência, o abacaxi Pérola, por exemplo, tem uma casca mais amarelada quando maduro, enquanto outras variedades de ananás podem ter uma casca mais verde. Ambos têm uma estrutura semelhante, com uma casca externa dura e uma polpa interna suculenta. A fruta é usada na culinária em sucos, sobremesas e pratos salgados.

Horta do Kanyanga
O ananás é rico em nutrientes. Contém vitaminas A, C, B, além de minerais como zinco, magnésio, fósforo e cálcio. A bromelina, uma enzima presente na fruta, ajuda na digestão de proteínas. Possui também uma acção anti-inflamatória, pois ajuda a reduzir inflamações e melhorar a circulação sanguínea. A vitamina C e outros antioxidantes presentes na fruta tropical proteger contra doenças cardiovasculares, promove a eliminação de líquidos, fortalece o sistema imunológico, ajuda na perda de peso e no combate às infecções.

A fruta prospera em climas quentes e húmidos, com temperaturas entre 22°C e 30°C, sendo Luanda, com o seu clima tropical, é adequada para o cultivo. A planta prefere solos arenosos ou semi-arenosos com boa drenagem e um pH ligeiramente ácido (entre 4,5 e 5,5)34. O solo semi-arenoso de Luanda é ideal para o cultivo do abacaxi/ananás.

Eis algumas das condições para uma boa produtividade

Deve ter boa drenagem para evitar problemas de podridão da planta; A precipitação ideal é a que varia entre 1.000 e 1.500 mm anuais, distribuídos de forma uniforme; a planta necessita de um equilíbrio adequado de nitrogênio, fósforo e potássio; quando possível, a irrigação por gotejamento é eficiente para manter a humidade sem encharcar o solo.

Seja ananás ou abacaxi (variedades de uma mesma espécie de planta), o importante é dar o 1° passo e fazer as coisas com carinho e dedicação. Cada fruta ou verduras colhidas são Kwanzas poupados no mercado.

terça-feira, dezembro 31, 2024

O NATAL HODIERNO E O DA MINHA MENINICE

Na década de 80, quando cheguei pela primeira vez a Luanda, e mesmo na década que se lhe seguiu, éramos pobres. Havia pobreza em todo o musseque. Contavam-se os que tinham carros pessoais ou motorizadas. Conhecíamos o roncar de cada motor. Eram raros os que podiam levar para casa uma caixa diferenciada de cabaz, distinta das compritas que todos os trabalhadores (operários, camponeses ou intelectuais) podiam fazer nas "lojas do povo". As excepções eram mesmo excepções. Uns porque tinham patrões cooperantes e outros porque eram kambalaxeiros ...

Poucos eram os que tinham cantinas, lojas do povo (os supermercados de então) ou outras actividades paralelas geradoras de rendimento, tirando as pequenas profissões como sapateiro, funileiro, alfaiate, pasteleira, kitandeira, etc. Havia carências de toda a ordem, mas vivia-se o Natal. Vibrava-se. Não era por causa os bolos, os presuntos, as gasosas, os vinhos, os doces, os perus ou outros bens. Era pelo simbolismo da data: festa da família. A família alargava-se, ou melhor, elasticizava-se pois todos eram nossos parentes com quem partilhávamos os bolos, as parcas gasosas, a kisângua e tudo quanto houvesse.
As faixadas eram colectivamente pintadas pela miudagem que, em adição, engalanava as ruas à medida, criatividade e possibilidades do seu agregado. Os jovens feitos, nossos mais velhos de então também faziam uso de bebidas alcoólicas, mas eram mais contidos. Talvez inibidos pela carência, mas bebiam mesmo pouco. Hoje o Natal é mais despesismo, individualismo, oportunismo e outros ismos que não me parecem unir famílias nem criar laços fortificantes para o início de um novo programa anual.
Que venha 2025 e reponha o Natal da minha meninice!

sábado, dezembro 28, 2024

PARTIU O "TONY D'AQUI"

[Com funeral em Portugal, ainda sem data, o corpo deve partir de Luanda na próxima semana e ser cremado à chegada]

Perdi, a 27.12.24, o meu amigo-como-irmão e produtor do meu livro "Kitotas: recuos e avanços". O Antonio Rosario Pinto produziu ainda "O relógio do Velho Trinta", "Canções ao Vento" e "Amor sem pudor". Tínhamos outros projectos literários em carteira e ele não era de negar os meus desafios aos quais se entregava de forma altruistica.

_ Muitos dos que me chamam de kota 'portuga' eram pirralhos ou não existiam quando cheguei pela primeira vez a Luanda, no início da década de 80". _ Costumava dizer, o produtor e prestador de serviços de comunicação institucional e imagem organizacional.

Profissionalmente, há muito vimos realizando procedimentos concursais para a contratação de serviços e produtos de comunicação institucional. Foi nessas circunstâncias que nos conhecemos. Chamei-o para a Lunda Sul, para apresentar e explicar a sua proposta. Deste encontro nasceu uma amizade irmanada que se estendeu aos meus liderados (na Lunda Sul e em Luanda) e às nossas famílias. 

Fruto de suas idas a Saurimo e da sua mundividência, o António Pinto passou, como eu, a amar a cultura cokwe. Fez palestras para os meus estudantes na Universidade Lueji A'nkonde e para os constituintes do Núcleo de Leitura e Literatura da Lunda Sul (LevArte Lunda Sul). Visitou a "Oficina de Jornalismo" que realizámos a convite da Diocese de Saurimo que começava a dar preparação básica aos seus "futuros" profissionais da Rádio Diocesana.

Nisso de ligação com a Lunda, em particular, o António foi mais longe. Fez várias tatuagens com dizeres e imagens daquela língua e cultura, que me comunicava e pedia para confirmar a tradução, antes da aplicação. Uma vez, no Luari, fomos comer "mulambandjangu com xima". O António pediu água e a garçonete trouxe-lhe uma bacia para lavar as mãos. Entendemos o sinal como um convite para que apreciássemos aquele manjar com as mãos. O António, não se fazendo rogado, foi o primeiro a atacar com as mãos. Era tão angolano que metia inveja a muitos angolanos sem angolanidade. E o espanto foi total. 

_ Um branco a comer com as mãos não se vê todos os meses!" _ Comentava-se, procurando saber de onde ele era. Realmente, não era de se ver todos os meses. Era raro e só aplicável ao nível de pessoas descomplexadas como ele.

Em Luanda, estava eu a ministrar aulas de Rádio em uma IES (instituição de ensino superior). Quando ele se apercebeu logo solicitou vozes que podiam estrear na publicidade e fazer outros trabalhos de comunicação. Indiquei a Ana, uma jovem que tinha muito talento, e que me disse ter sido bem acolhida e treinada. É hoje voz incontornável em uma rádio da capital angolana.

Este ano, estivemos no seu último aniversário (62°). Já padecia, mas sempre esboçando alegria e vontade de viver. Tinha acabado de sair do hospital, por isso, questionei-o por "que nos convidara se ele não parecia estar bem"?

_ O nosso repasto já estava marcado e pago. Não podíamos cancelá-lo. _ Disse-me, seguido de um abraço. 

Mesmo sem o vigor de sempre, quis estar com os seus amigos angolanos que muito prezava. Dividiu-se entre os seus convidados angolanos e portugueses com quem procurou conversar e entreter. Fálamos sobre o sabor da vida, da amizade, de negócios e sobre o futuro. Esse que não sabemos!

Quando procurou por uma segunda opinião médica, empenhamo-nos em indicar-lhe uma clínica e uma casa em Windhoek, aonde fora buscar saúde. Regressou dias antes do Natal. Trocámos mensagens há 4 dias (23.12). Não falámos sobre saúde. Evitei. Pretendia levar-lhe mensagems positivas, todavia, li nas palavras que me escreveu que não estava bem, mas tinha o desejo de viver.

"Nossas mulheres e filhos precisam muito de nós e temos de viver, nem que seja por eles", costumávamos dizer/escrever.

Perdi o amigo que me levou a conhecer Alenquer e outras façanhas da vida. Não o acomlanhei no tour a Maputo. Devo-lhe. Tínhamos combinado ir a Moçamedes, passando pela Lucira. Também não cumpri porque a estrada prometida ficou por ser concluída.

O António era um cidadão do mundo, opened mind, sonhador, ecológico e que não dava espaço a conflitos, quaisquer que fossem.

_ A vida terrena é demasiadamente curta para ser desperdiçada com baboseiras. _ Dizia.

Quando a Isabel Ferreira publicou o seu livro "Fernando Daqui", passei a chamar o António Pinto por "Tony D'aqui", uma homenagem "in vita" a um cidadão português que escolheu Angola como sua casa e os angolanos de todas as raças, credos e culturas, como seus irmãos. Ele aceitou o cognome.

Manuela Ramos Pinto (esposa), André e Catarina (filhos), estou convosco nesse momento triste. O António é daqui, de Angola, e não sairá nunca dos nossos corações!

Até já ARP!

quarta-feira, dezembro 25, 2024

UMA EXPERIÊNCIA QUE SUPEROU DIPLOMAS

Se o motivo fosse académico ou procura de emprego a mesa de Natal seria um desfiladeiro de diplomas académicos. Mestre havia. Pessoas com dupla licenciatura também. Com mono-licenciatura e uns terminando, havia vários e de distintas áreas de formação. A que menos frequentou a escola, mas com um básico feito no bom tempo e uma experiência de mais de setenta anos, era a matriarca.
Depois de mesa posta, faltando horas para a transição do dia 24 para o de Natal, as luzes da sala se apagaram. Não tinha sido ainda corte de energia, nem obra de um "malandreco" de casa. Foi redução da potência. Algumas lâmpadas "chinesas", colocadas nos corredores e nos candeeiros de banca estavam acesas.
Enquanto os adultos e jovens procuravam recordar as teorias aprendidas nas escolas para tentar encontrar uma solução, a idosa, caminhando lenta com o peso da sua idade apreciava os "doutores e engenheiros" que viajavam e recitavam autores clássicos do mundo vasto da física e da electricidade.
O mais incomodado com a escuridão já tinha mandado comprar velas incandescentes para substituir a luz dos telefones que ficavam sem carga. Só o rés-de-chão, em que imperavam as "lâmpadas tuguesas", no dizer do dono do imóvel, estava entregue à escuridão. Os pisos superiores tinham umas luzitas que permitiam caminhar sem tropeçar e enxergar com quem se cruzasse pelo corredor.
Passou quase uma hora, os debates estavam acalorados e a solução distante. Ao jovem (quase) engenheiro electromecânico, apesar da sua categoria de filho, se dirigiam as maiores perguntas em busca de uma aparente saída airosa.
_ Diz-me filho, tu que estudas essas coisas, o que devemos fazer para acender as lâmpadas cá de baixo? Pelo menos podermos nos ver olho no olho e o garfo não escapar do prato. _ Atirou um dos tios.
_ Bem, aqui é preciso redimensionar o consumo total da estrutura e subdividir em fases diferentes. É uma das soluções futuras. _ Respondeu, convicto de sua ciência um dos jovens que se formava em Electromecânica.
O relógio caminhava apressado e não tardaria, todos cantariam o Feliz Natal!
Foi naquele instante, vendo a nossa aflição, que a septuagenária decidiu apresentar o seu "Ás de trunfo".
_ Aqueles candeeiros de banca estão a acender e a casa tem vários. Vejam ainda se há bastantes tomadas aqui na sala e experimentem.
o é que a ideia da velha Argentina Ernesto funcionou?!
A experiência da idosa superou todos os diplomas e teorias da academia.

domingo, dezembro 22, 2024

IRLANDA E LEONILDE VOLTAM AO AL NUR

A primeira visita aconteceu a 9 de Novembro/24 e visou assinalar os 45 anos da Irlanda Salongue que contou com o apoio abnegado de sua prima Leonilde Lusitano.

Para a segunda visita, as primas benfeitoras, Irlanda Salongue Canhanga e Leo Lusitano Paulo, chegaram ao internato de rapazes "Al Nur" às 11horas, deste sábado, 21.12.24, para comemorar o Natal com os cerca de 60 rapazes, levando consigo almoço, lanche e mantimentos diversos.

Porém, depois do almoço que lhes foi oferecido e servido pelas beneficentes, os meninos e os seus tutores muçulmanos abandonaram os visitantes, recolhendo-se para fazer o Asr, a oração da tarde. 

Os "maometanos" oram cinco vezes ao dia, nomeadamente, ao amanhecer (Fajr), ao meio-dia (Dhuhr), à tarde (Asr), ao pôr do sol (Maghrib) e à noite (Isha).

Segundo os frequentadores desta religião monoteísta "cada uma dessas orações tem uma importância espiritual significativa e serve como um momento de conexão com Alah" e são feitas voltadas para Meca e incluem recitações do Alcorão.

Os muçulmanos que consideram "Jesus um profeta, mas não filho de Alah", não assinalam o Natal (data festiva dos cristãos), sendo o Ramadão a sua principal festa religiosa.

Em 2025, o Ramadão está previsto para começar ao entardecer de 28 de Fevereiro e terminar ao entardecer de 30 de Março.

Papá Ibrahim é o responsável do Lar Al Nur, em Viana, Rua da Sanzala, tutelado por uma organização pro-islamista.

Terminada a reza, reapareceram em peso para saborearem o bolo e os bolinhos e receberem, formalmente, a oferta que incluiu uma caixa de loiça de porcelana e talheres, dois balões de roupa de fardo, bolas de futebol, caixa de pasta dentífrica, arroz (75 kg), embalagens de guardanapos e papel higiénico, massa alimentar (4 cx), sabonete (cx) sabão em pó (300 pct), calçado, água, sumos, bolo de Natal, bolinhos, etc.

"Quem não agradece o pouco, não o faz em presença de muito", disse Ibrahim, o tutor dos meninos.

Se o trabalho altruísta e beneficente são de extrema valia, olho para a islamização silenciosa e galopante com alguma preocupação, pois um dia "poderemos acordar com o Islão" como religião predominante em Angola, tendo de arcar com todas as suas "(des)graças". No meu Lubolu dizia-se "quem avisa amigo é!"

quinta-feira, dezembro 19, 2024

NEM TUDO ANDA PERDIDO

Odiano Francisco vive no Zango IV, na via que nos leva à centralidade do Zango V (Ex- 8 mil), no chonhecido como Bairro da EPAL. 
Com experiência em oficina (reparação de molas de viaturas e motociclos) e outros serviços, Odiano leva a sua vida entre trabalho por conta de outrem e alguns "biscates", preferindo vender a sua força de trabalho a "mexer em coisa alheia". Mas, Odiano é também dotado de um grande sentimento e acção altruístas.

Cheguei a ele por via de um incidente de trânsito que um buraco "mortífero" e crescente me provocou (19.12.24) na via que liga a Estrada para o Kalumbu e o Zango V. Saindo da centralidade, quase a chegar à via Zango-Kalumbo, próximo do troço em que se juntam os dois sentidos (descendente e ascendente), há um buraco crescente, estreito, profundo (motivado pela chuva e descaso de quem devia cuidar dele) e com uns dois metros de cumprimento. A iluminação pública que enchia de gaudio os ocupantes das casas da Centralidade do Zango V e os moradores próximos deixou de existir. Ou fundiram as lâmpadas e não aparece ninguém para as repor ou, pior do que isso, ter-se-ão roubado os cabos que alimentam as luminárias. Só pode ser!

Tendo passado inadvertidamente pelo buraco, estoiraram, de uma só vez, dois pneumáticos da minha viatura, criando-me um grande embaraço, das 19 às 23h00. Tão logo o Odiano se apercebeu da ocorrência e da desgraça a que eu estava votado, encostou-se a mim, dando-me apoio e conforto. Aconteceu perto de sua casa e ele dirigia-se à busca da sua esposa que trabalha em uma pequena superfície próxima.

_ Kota, não te vou deixar aqui sozinho. A zona é escura e podem aparecer "garlas". _ Disse ele em forma introdutória, perante a minha incredulidade e desconfiança que foi dissipada pelo correr dos minutos, criando em mim confiança e segurança.

Contou um pouco se sua vida, suas lutas e pequenas conquistas. Limpou-me as lágrimas que me inundaram o coração e respondeu-me aos vários porquês que não exteriorizei.

_ Kota, uma vez, eu e o meu irmão saíamos da ilha e tivemos uma avaria. Era noite e não tínhamos meios para reparar a viatura. Recebemos apoio de pessoas que não conhecíamos. Eu penso que ajudar quem precisa é importante e pode criar fortes amizades. _ Explicou.

A chuva é "obra da natureza". A correcção dos estragos provocados pela acção da chuva sobre a obra humana e facilitadora da vida é tarefa de reservada a alguns.

_ Infelizmente, kota, aqui, esse não é primeiro carro que estoira pneus. São muitos e quase todos os dias. Sorte é que ainda ninguém despistou ou morreu. _ Disse Odiano, na tua jornada de consolo, terminada com um desafio:

_ O kota tem cara de possuir muitos conhecidos lá em cima. Pode só lhes mandar uma reclamação para ver se vêm tapar esses buracos da via da Centralidade? Assim se morrer pessoa vão vir lamentar?!

Mais não lhe disse. Ele falara por mim. Ajudei-o a lavar as mãos e a garganta que já ia ressequida de tanta fala e esforço em desmontar e montar 4 pneus, depois de aparecer o socorrista saído de Cacuaco com mais um pneumático suplente. Tivemos de combinar, dois a dois os pneus de uso permanente e os suplentes, o que nos levou igualmente a desmontar os dois sobrevivos.

Por tudo quanto disse e mostrou o Odiano, coadjuvado pelo esforçado e diligente Cardoso António, meu colaborador na Kam&mesa, tenho cada vez mais convicção de que as excepções existem e nem tudo (ainda) anda perdido!

domingo, dezembro 15, 2024

APROVEITANDO A CHUVA, PLANTANDO BATATA

As notícias desta semana, apontam algumas mortes feridos e desalojados como consequência da chuva em algumas cidades de Angola, sendo Luanda, Bengo e Benguela algumas reportadas pelos media. Pois é, enquanto a chuva é “amaldiçoada” por alguns citadinos, sobretudo em áreas com drenagem deficiente, ela é aplaudida pelos camponeses e agricultores que dela dependem para fazer os campos florescerem. Hoje, trago como anotações o plantio de batateira. A batateira quer produz batata-doce. Para início de conversa, importa anotar que há diferentes tipos de batata-doce, diferindo pela coloração, sabor, etc.

Em Angola, as regiões que mais produzem batata-doce incluem as províncias de Benguela, Uíge, Malanje, Cuanza-Sul, Moxico e Lunda Sul. Em Benguela, por exemplo, a produção de batata-doce tem aumentado significativamente nos últimos anos, especialmente na área de Dombe Grande. Todavia, é possível ter batata-doce em quase todo o país, incluindo Luanda, tendo em conta a fácil adaptabilidade da herbácea.

As espécies de batata-doce mais produzidas no nosso país são a Ipomoea batatas (batata-doce comum) e a Ipomoea batatas var. purpurea (batata-doce violeta), existindo outras.

A espécie Ipomoea batatas tem tubérculos de cor amarela ou laranja e é a mais comum. É conhecida por seu sabor doce e textura cremosa.  A Ipomoea batatas var. Purpurea tem tubérculos de cor violeta ou roxa e é menos comum. É conhecida por seu sabor mais intenso e alto teor de antocianina, um antioxidante.

A batata-doce é uma importante fonte de nutrientes e possui várias utilidades para o homem e animais domésticos:

Ela é rica em carboidratos, vitaminas (especialmente vitamina A e C) e minerais (como potássio e magnésio), sendo utilizada em uma variedade de pratos, desde sopas e saladas, purês, bolos, pães e sobremesas e ainda em panificação e confeitaria, especialmente em dietas sem glúten. Pode ser fermentada para produzir etanol, utilizado como biocombustível. Possui propriedades medicinais, como a redução da pressão arterial e a melhoria da digestão e contribui significativamente para a economia agrícola.

As folhas são comestíveis e podem ser cozidas como espinafre. São ricas em vitaminas A, C e K, além de minerais como ferro e cálcio. Servem ainda para forragem para Animais, sendo utilizadas como alimento nutritivo para gado bovino, cabras, porcos e outros animais. Possuem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias, ajudando na saúde em geral, podendo ainda ser usadas como cobertura vegetal para melhorar a qualidade do solo, aumentando a matéria orgânica e a retenção de humidade.

A batata-doce é também usada na indústria alimentícia como espessante e em outros produtos como adesivos e cosméticos.

Quanto ao melhor método de plantar batateira, aqui estão algumas dicas essenciais:

A batata-doce prefere solos arenosos e bem drenados. Evite solos pesados e argilosos; Antes de plantar, prepare o solo arando e remova as ervas daninhas. Adicione matéria orgânica para melhorar a fertilidade; plante as mudas de batata-doce em sulcos ou montes, com espaçamento de cerca de 30 cm entre plantas e 1 metro entre linhas; mantenha o solo húmido, especialmente durante o período de crescimento inicial. Todavia, evite o encharcamento.

Controlar as pragas e doenças é crucial. Geralmente, a batata-doce geralmente está pronta para a colheita entre 4 a 6 meses após o plantio, dependendo da variedade.

Em terrenos declivados, que deixam escorrer a água da chuva, esse é bom período para o plantio. Em terrenos alagados ou baixos, o melhor é esperar que a chuva diminua ou cesse.

domingo, dezembro 08, 2024

LAMENTOS TRAZIDOS PELA CHUVA

Em 1996, em Luanda, choveu aos cântaros. As ruas do Rangel e de outros bairros estavam literalmente inundadas e encharcadas, não havendo porções de terra firme e seca para se pôr os pés calçados em sapatos ou ténis. 

Como era "proibido faltar às aulas da Professora Gabriela Antunes (ALA, Inglês e Português), um jovem (de primeira caminhada) que estudava no IMEL e vivia no Rangel, Comite Njinga, decidiu calçar botas de chuva e fazer-se à escola. Para o seu espanto, em vez de os colegas se jogarem contra a administração que não cuidava do saneamento, atiraram-se, em estigas, contra o colega. Um fraco teria desistido de frequentar as aulas, mas ele, focado, seguiu o seu rumo.

"Chover é obra da natureza" e chove em todo o lado. Em outras paragens, a administração, através de trabalhos de engenharia hídrica, cuida de encaminhar as águas pluviais a córregos naturais e valas artificiais que as conduzem ao mar ou outros canais de recepção. Não acontecia no Rangel.

Em vez de se atacar o culpado pela situação de intransitabilidade nas ruas do Rangel e em outros bairros de então, atacou-se a vítima. E parece que procissão continua.

O jovem estigmatizado é hoje o Soberano Kanyanga

domingo, dezembro 01, 2024

HOJE VAI A ENTERRAR UM GÉNIO

(Rangel em Luto)

Os génios são raros e aparecem na vida das pessoas e das sociedades de forma esparsa. Cada génio o é no seu mundo (que pode ser grande ou circunscrito). O inventor da lâmpada foi um génio. Mozart também foi (ninguém tocava como ele no seu tempo cronológico e histórico), assim como quem (nascido no meio da pobreza) retira a família da indigência, dá dignidade e, acima de tudo, um nome reconhecido e respeitado pela sociedade. 

Nelson Ferreira Cabanga  enquadra-se nessa última descrição de génio. Todavia, a sua genialidade não se ficava por aí. Nos seus últimos anos, tinha se tornado em um exímio tocador de reco-reco, amante da música nacional de qualidade e vida intemporal (sempre acompanhada à dança), promotor de literatura no bar da sua Capirica (Pousada) e de convívios inter-amigos do e no Rangel, Sumbe e outras paradas. O Ngulu do Capirica era uma de suas marcas, para além da "Brand" NEFECA que era abreviatura de seus três nomes.

Ainda pequeno, no areal defronte ao antigo Supermercado Kiluanje (onde se acha hoje a Escola Ekwikwi II), Nelson destacou-se no trato com a bola, o que lhe fez ganhar a alcunha de Ndunguidi, por sinal, nome de um craque do futebol angolano de então e de todos os tempos. 

Pandy Santana, contemporâneo de Nelson Cabanga, recua ao "Ano da Formação de Quadros", 1979, e decreve o amigo de infância com quem conviveu mais de 45 anos:

"Um amigo do futebol com bolas de meias e sacos, das brincadeiras nocturnas à luz da Lua no nosso musseque Rangel. Já adolescente, Nelson deixou Luanda rumo a Ngunza Kabolo, Sumbe, onde ingressou no Instituto de Petróleo, formou-se engenheiro e construiu uma carreira exemplar, sempre pautada pelo brio e pela dedicação.

Mais que um profissional de sucesso, Nelson era um visionário, um empreendedor. No bairro, onde guardamos com alguma vaidade as nossas memórias da infância, criou o Capirica, um espaço que se tornou um marco no Rangel, ponto de encontro de gerações, amigos e de outras pessoas de pontos próximos da banda. Com este projecto, ele uniu pessoas e fomentou a cultura, o desporto e algumas iniciativas de solidariedade, marcando positivamente a vida de muitos.

Homem de família, Nelson edificou não apenas um legado profissional, mas também uma bela família, que agora carregará a sua memória como inspiração".

Quanto a mim, o primo Nelson, ultimamente "kota Cabanga", era o primo inspirador. Conheci-o apenas em 1989. Eu saído de férias do Lubolu e ele do Sumbe onde estudava no INP.

Ele era amigo de seus amigos e eu construindo ainda os meus poucos (da minha faixa) em Luanda. Havia, contudo, algo comum que era/é a escola. Quando, em 1992, ele terminou o ensino médio e começou a trabalhar em uma petrolífera francesa, perguntei-lhe que curso tinha feito e, em 1993, escolhi igualmente o de Geologia e Minas, no mesmo instituto que, entretanto, não cheguei a fazer. 

Lembro-me como hoje o dia em que fomos ao Kikolo (entre o Cemitério e a igreja católica) comprar os primeiros blocos com que construiu a casa para a família. Foi ele quem retirou os pais da casa de renda.

O tempo correu. Ele crescendo na indústria petrolífera e eu no jornalismo, fomos aprofundando a comunicação e os laços de parentesco. O nosso último plano era desenhar a árvore genealógica, aproveitando os poucos idosos que ainda nos restam. A empreitada fica pela metade. Algumas coisas estão anotadas e publicadas, mas falta o detalhe trazido por uma amena discussão. Quando me apresentou a Capirica, de novo o imitei e projectei a Kam&mesa.

_ Ó Nelson, tens de deixar que os parentes usem as instalações da Capirica sem pagar no mínimo metade dos custos. Tens salários e manutenção no fim de cada mês. _ Alertei ao me aperceber que cedera quartos para parentes que se deslocam ao Rangel.

_ Tens razão, primo, mas eles são nossos parentes e têm mais dificuldades do que nós. _ Respondeu-me. Corria o mês de Setembro e estávamos engajados em solucionar o funeral e pós-funeral de um nosso cunhado.

Chegou Outubro e a saúde do Nelson fraquejou.

_ Primo, estou avariado no cubico. A velha Maria está a cuidar de mim. _ Disse-me em mensagem no dia da independência.

_ O Nelson doente em casa e a tia Maria a cuidar dele só pode ser coisa leve. _ Pensei enganado.

Dias depois, mandou-me descrever fotos de nossos parentes já finados.

_ Primo reconheces?

_ Tio Ferreira (teu chará), tio Ernesto e avó Hebo. _ Anotei.

_ E o último? _ Indagou o Nelson Cabanga.

_ Este é o Moisés. Não precisei de descrever porque é de mais fresca memória. _ Expliquei, ao que ele concluiu:

_ Afinal és mesmo kota!

Conhecedor do seu mundo, vivendo e respirando o seu Rangel, Nelson foi autor de várias crónicas publicadas no seu mural de Facebook e algumas no Jornal Cultura, descrendo vivências no Rangel e Sumbe, sempre apimentadas com aspectos históricos e culturais.

Retomo o Pandy Santana para dizer que nenhum discurso nos ameniza a dor da perda do "kota Cabanga" que é grande. Todavia, "as suas conquistas e o seu exemplo permanecerão como testemunho de uma vida vivida com propósito e generosidade".

Os que ainda têm voz choram. 

Os que têm lágrimas lacrimejam. Os que têm força procuram levar o Nelson à sua última morada.

O Nelson era um homem de paz e com um coração que bombeou o altruísmo até ao último toque. Que o seu exemplo nos inspire, alivie o fardo da pobreza intelectual e material e amenize os nossos egos!

Até já, kota Cabanga!

Soberano Kanyanga, 01.12.24.

sexta-feira, novembro 29, 2024

O ISLÃO E A "SORTE" DO NOSSO FUTURO

No sábado, 09.11.24, convivi com as crianças do Lar Al Nur que acolhe rapazes em Viana. Sita na rua que nos leva da Vila ao Bairro Sanzala.

A instituição "regista uma média mensal de 60 crianças e adolescentes" estratificados entre órfãos levados pelas famílias (há sempre a tramitação com a administração municipal), desaparecidos aí levados pela administração e crianças desfavorecidas, igualmente aí "depositadas" pelos parentes ou pessoal da administração de Viana.
Quem visita o lar, nota que há vontade e preocupação de os tutores cuidarem dos menores, empenhando-se no máximo de suas capacidades e possibilidades.
_ Eles estudam aqui até à nona classe e depois fazemos contactos com instituições públicas de ensino médio para as inserir no sistema. _ Explicou o coordenador adjunto do Centro.
Quanto à frequência do ensino superior, para aqueles que atingem esse nível sem conseguir um "padrinho" que o retire da instituição, o responsável adiantou que têm feito, igualmente, contactos com as universidades e institutos públicos para os inserir.

_ Quando aparece uma instituição patrocinadora, alguns chegam a frequentar universidades privadas. _ Aditou.
Os jovens apenas abandonam a instituição depois de reinseridos na sociedade. Quando estejam a trabalhar e possam auto-sustentar-se.
_ Alguns dos professores foram nossos internados. Uns encontraram famílias acolhedoras ou reencontraram os seus parentes e outros conseguiram autonomizar-se. _ Contou o responsável.
O visitante cedo se apercebe das dificuldades vividas quer pelos mentores do projecto quer pelas crianças e adolescentes ali acolhidos: água, detergentes, roupas individuais e de cama, alimentação, brinquedos, livros, utensílios diversos, afecto de parentes e visitantes, etc. É longo o rosário de inexistências que só um trabalho abnegado e realizado com amor consegue contornar.
Todavia, no que diz respeito a preocupações, quanto a mim, não é tudo. A Organização Não Governamental promotora do projecto "Al Nur" é de cariz muçulmana e os miúdos são, à partida, inseridas e ideologizadas de acordo com a doutrina da religião islâmica de que são membros os seus tutores. Para uma criança ou adolescente que vive de caridade alheia, faz pouca diferença o facto de não ter opção religiosa. Até agora, parece normal. Pode haver, todavia, questionamentos a fazer.
A Constituição de Angola estabelece que "o país é um Estado laico", o que significa que "há uma separação entre o Estado e as religiões". A Constituição garante ainda que todas as religiões sejam respeitadas e que "o Estado forneça protecção às igrejas, lugares e objectos de culto, desde que estejam em conformidade com as leis e a Constituição". Todavia, olhando para algumas tendências ou seitas islamistas fundamentalistas e radicais e o que nos poderá ocorrer a longo prazo, dada a propagação, à grande velocidade, do Islão e o que os praticantes nacionais desta religião poderão reclamar adiante. A penetração dos radicais, normalmente é silenciosa. No princípio, impera a beneficência, o comércio, os casamentos multi-étnicos e religiosos. Depois surgem as imposições ligeiras de as esposas e os filhos não puderem frequentar outras religiões. Depois, quando estas comunidades crescem e aumentam o número de cidadãos nacionais convertidos e doutrinados, exigem-se outras cedências que passam a ser direitos de cidadãos nacionais como participação plena em vida política, controlo de determinados segmentos da economia, enfim. Estamos preparados ou anos preparar para o que poderá surgir amanhã? Há países em que as minorias radicais iniciaram por pedir direitos iguais, fizeram-se crescer com artimanhas bem elaboradas e já exigem que os outrora maioria se comportem como eles... eis a questão!

sexta-feira, novembro 22, 2024

A CHUVA, A AGRICULTURA E O CONDUTO

Bem, o dia amanheceu tristonho para os kimonya¹ das cidades. Até ao meio-dia, "pinguiscou" água dos céus, como gostava de brincar o meu amigo Maninho Sócrates, referindo-se aos aguaceiros.
Não foi chuva que impedisse um agricultor a fazer-se a caminho do "arimo" ou largar a enxada no meio da jornada. Foi um gotejo demorado, mas que brigou com o calor causado pelo exercício físico do trabalho campestre.
E, sob gotejos não muito densos, mas persistentes, aproveitei corrigir um canteiro cujo milho tarda em germinar ou não quer germinar.
Da anterior colheita, havia sobrado umas espigas "kamabwinyi" que podem resultar em resolutas massarocas. Descarocei e levei os grãos à terra. Aproveitei completar a metade do terreno que aguardava por sementes. Quiçá, tenhamos algum milho para divertir os dentes daqui a quatro meses.
O milho é de colheita rápida e, em sistema de regadio, podem acontecer três colheitas anuais em um mesmo campo. Quem tem kibembe grande e puder intercalar o período de sementeira, chega a ter milho durante todo o ano.
Uma gajajeira, seis bananeiras e duas anonáceas foram transplantadas e a elas somadas alguns ramos de batateira, não faltando o bambu para conter a zona junto à vala que é propícia ao enravinamento.
Mas a prosa de hoje, embora associada ao campo, tem a ver com as tarefas que a sociedade rural atribui aos homens e às mulheres e outras que são comuns.
Na mesma manhã viajei para o interior. A uns dez ou menos quilómetros da vila da Kibala, vi rapazes com altas canas que usam para a pesca numa represa agrícola. Era sábado, dia de descanso escolar. Reparei que, tirando poucas, as meninas eram raras nas aldeias e na estrada.
Os rapazes sim. Uns com instrumentos rudimentares de pesca e outros com artefactos de caça. Viajei para os tempos da minha meninice.
_ As mães e as filhas estão na lavra. _ Cogitei.
É tempo de deitar sementas à terra e ou retirar as ervas daninhas que podem prejudicar o crescimento dos produtos. Essa tarefa é comum, todavia, se a mãe e as filhas colhem verduras e levam fuba, mandioca, batata, nhame, lenha (as raparigas) e outros mantimentos, é tarefa do pai e seus filhos cuidarem do conduto. A dieta equilibrada impõe a associação de vegetais e carnes (incluindo peixes e aves).
Um pai kinaña mbala² e filhos que não caçam nem pescam levam a mãe e as irmãs à condição de vegetarianas inconscientes. Por isso, os rapazes, cedo ainda, se esmeram na arte de confeccionar artefactos e técnicas de pesca e caça, começando com pequenos animais roedores, passarinhos e pássaros, estendendo-se aos antílopes, javalis e outros.
Na pesca, começa-se em pequenos rios e represas, sobretudo quando a chuva provoca a turbidez da água e expõe o bagre ou a enguia à isca armadilhada com salalé ou minhoca.
O subir da idade, ao que se acrescem as técnicas aprendidas na escola de iniciação masculina (circuncisão), vão aprimorar a ciência e os desafios.
Resumindo: a pesca e a caça foram confiadas aos homens, assim como desmatar, roçar e plantar bananeiras que exigem maiores esforços.

1- Preguiçosos
2- Que só passa o dia na aldeia.

sexta-feira, novembro 15, 2024

ESCAPARAM COMER KALULU DE GALINHA

Para o conhecimento comum, apodado de outras interpretações fenomenológicas e científicas, o tempo era de chuva e devia chover. Mas, mesmo vistas dos altos céus, as nuvens eram crianças esbranquiçadas a brincar no areal e que correm apressadas atrás da bola de trapos, sem nunca definir previamente o destino. Fazia, por isso, sol de assar castanhas e saudades de chuva e temperos que apenas traziam, na imaginação, o cheiro às narinas.

Mangodinho e Lito encontraram-se de novo.
Primeiro num evento inter-africano, no qual confluíram vários povos. Pessoas amigas e rostos conhecidos em encontros e reencontros internacionais, assim como angolanos que apenas soltam o "olá" quando estão na estranja, onde a vaidade de uns perde rede ante a simplicidade de outros. E diz-se que o angolano é mais solidário fora do país do que dentro das fronteiras. Será?
Bem, Mangodinho é já, pode dizer-se sem errar, homem viajado. Gaba-se ter perdido a conta de passaportes emitidos. E diz mais: "não é apenas por caducidade. É mesmo por ausência de mais folhas por carimbar".
Lito, benguelense ainda jovem, conhece meio mundo. Se calhar mais do que metade. Tratando por "tu" o inglês, língua que domina o mundo do negócio, Lito tornou-se um jovem de primeira linha na empresa que que trabalha. Mas não é só o Shakespearismo dele que o levará "ainda mais longe" como apregoam os que o conhecem por aonde passa. É um jovem que tem sempre livros à mão e que baixa a orelha para ouvir os mais velhos. "Experiência é escola e as universidades e os livros formais não nos dizem tudo", comenta ele, quando abordado sobre a sua "manina" de ouvir os mais velhos como o Mangodinho e outros que nasceram muitos antes de Mangodinho.
Depois do encontro no evento inter-africano, ambos descobriram ainda que estavam alojados no mesmo hotel e andar. Passaram a andar juntos. Passaram a usar o mesmo táxi, a frequentar as mesmas lojas para engordar os olhos e a se sentarem à mesma mesa nas horas escolhidas para as refeições. Quem os visse não teria dúvida. Pelo menos as Joborienses tinham-nos como brothers e, sempre que vissem um a caminhar sozinho, vinha de trás uma pergunta que se tornou típica.
_ Where's you brother?
As quatro semanas foram bem vividas, diga-se, tirando a falta de um bom funji ou pirão que a pepe não substitui. Sumos de gengibre, kitolesa, pomadas de boas safras, águas simples e gaseificadas, abacate e espinafres, carnes tenras de ovelha, stake e t-bone são bons no começo. Quando os dias em falta minguam é a saudade da terra e de suas marcas que invade o viajante. A mente pensante enche-se de imagEns do kalulu, luku, funji ou iputa, kisângwa, lungwila, sakamadeso, mfúmbwa, losaka, xingo, kalembula, matamba, ixi ya mulwiji, entre outras coisas que agradam a boca e enchem o estômago. As conversas, sempre apimentadas e, às vezes, viajando de tema para tema, tomaram como recorrentes os traços da angolanIdade, como os pratos de cada região visitada. Mangodinho e Lito têm outras coincidências internas, daí considerarem-se "amigos como irmãos". Ambos viveram nas distantes Lundas e têm a região ovimbundu como terra incontornável.
Chegou o dia do bye bye South Africa. A companhia era a mesma. Desta vez não havia atrasos nem "overbooking" e o passarão voou à hora prescrita. Assentados na mesma fila, nas cadeiras E e F, respectivamente, Mangodinho e Lito puderam dar azo às conversas postergadas pelo trabalho e sonhar quando o sono se tornou mais forte que o vinho.
_ Mangodinho, acorda é hora do almoço. _ Despertou Lito que cumpria o desafio de ler 50 páginas do seu volumoso livro.
_ Qual é o pitéu, Lito? A senhora já te disse?
_ Acho que é kalulu de galinha.
_ Hum! kalulu no avião? Deve ser com funji!
Os dois entreolharam-se e accionaram as glândulas salivares para transformar o aludido kalulu em bolo alimentar. Para o espanto de ambos, foi-lhes servido caril de galinha que Lito percebera kalulu de galinha.
_ É a saudade da comida que nos falta. _ Rematou Mangodinho, dando um toque no ombro de Lito.
Já muito atrás ficara a grande cidade mergulhada em uma floresta artificial. Lito e Mangodinho comentavam que Johannesburgo não parecia ser apenas uma facilitação da pluviosidade média anual que chega a mais de 780 mm, quando Luanda tem uma média de pluviosidade anual de cerca de 285 mm. É o amor ao verde, o respeito pela vegetação, que fazia tudo influir, "um nível que todos os humanos devem desejar e atingir", segundo últimas palavras de Lito.

sexta-feira, novembro 08, 2024

BEM-VINDO, CAMARADA WELLCOME!

As lojas eram do povo. Os governantes também. Até os malucos tinham donos, os seus parentes que deles cuidavam e com eles se preocupavam. Havia malucos, mas não os víamos desnudados e famintos como agora. Para o acesso ao pão, faziam-se filas nos depósitos, mas os malucos também comiam.

Nas cidades grandes, havia lixeiras e eram muitas. Só que quase não tinham lixo como o de agora. As ruas eram limpas. Manhã cedo, cada mamã ou sua filha mais amada estavam de vassouras nas mãos. As ruas eram varridas de ponta à outra. Cada casa agia à dimensão do comprimento do seu quintal ao eixo da via.

Os gatos miavam noite adentro, brancos pretos e malhados, e comiam ratos. Não eram tidos como bruxos. Vezes havia em que os gatos roubavam peixe na grelha, mas os maninhos ficavam de olho. Um olho no peixe e outro no gato. Não eram os irmãos dos maninhos que roubavam o peixe na grelha, nem a panela de cachupa.
E dizia-se: conselho de uma mãe servia para todos os meninos da rua. Ralhete de um pai, idem. Os desencaminhados eram banidos por todos. Não se viam tias a defenderem parentes larápios e havia tios para repreender e a tropa para os endireitar. Os tropas cumpriam missão. O salário que era "subsídio de suor e sangue" era quando calhasse. Não era salário, nem emprego como se vê nos dias de hoje, não!
Kaxarandanda ficava longe. Longe dos olhos e das pessoas da cidade grande. Tinha pessoas estudadas e aeroporto como noutras capitais e o povo de Kaxarandanda aprendera a respeitar e a bem receber os seus visitantes. Não tinham impressoras nem serigrafias. Escreviam mesmo em rolos de tecido branco, comprado na loja do povo. E era com cartazes, feitos à maneira local, que bem-vindavam os governantes.

A coisa mudou, quando algumas coisas distantes lhes foram impostas. Sim. Impostas mesmo. Mudou suas rotinas. Veja: o aeroporto era de terra batida e tinha manutenções semanais. O novo é asfaltado e cai aos pedaços. A árvore grande geradora de sombra permanente foi derrubada e a casota substituta tem nascente no tecto e mete água por dentro.

Bem, vamos à estória.
Manuel Kwaku Dimoxi era activista político. Perdera a mão numas kitotas sangrentas que tiveram lugar em Kaxarandanda. Dizem que foi no intervalo pequeno entre uma guerra e outra. O dia de sol intermitente, com nuvens que viajavam ora lentas ora apressadas pelo vento, estava no pico. As gentes caloriadas pareciam ter apanhado chuva. Era dia de visita oficial.

O Dimixi havia apenas avisado que Kaxarandanda receberia uma visita importante. Era pessoa mesmo da vila que trabalhava e vivia na capital. Por isso, para as pessoas saberem que Kaxarandanda não era um lugar qualquer, mas gerador de gente que foi longe na administração do Estado, o nome era para descobrir quando o mon'a'bata chegasse e se apresentasse por cima da escada do avião, onde os pioneiros lhe aguardariam com o lenço branco.

Kwaku Dimoxi, nas vestes de secretário para a acção política, era também o instrutor dos pioneiros e fez-se por isso à escada do avião. Os pilotos não tinham ainda aberto a porta. De cima para baixo, Kwaku Dimoxi a querer ver como estava o povo organizado para receber o camarada-conterra-chefe-grande de nome ainda incógnito, olhou para a inscrição pregada sobre a porta da casa que recebe os passageiros desembarcados. Com os conhecimentos sólidos que lhe conferem a sua quarta classe do tempo colonial leu sem soletrar: "Bem-vindo, Wellcome"

_ Porra! _ Soltou a maliciosa interjeição, num som quase inaudível, mas que despertou os dois pioneiros que tinham os lenços nas mãos. _ Nasci aqui. Cresci aqui. Fiz tropa aqui. Esse camarada Wellcome, com esse nome, é daonde? Daqui não pode ser!

sexta-feira, novembro 01, 2024

A CONVERSA QUE NÃO TIVEMOS E O ÚLTIMO PEDIDO

Durante duas décadas e meia de conhecimento mútuo e conversas multi-temáticas algo me terá escapado. Não me lembro termos falado sobre a eventualidade de o Ismael Mateus ter praticado algum desporto, mesmo sabendo que a sua estrutura física era propícia para o basquetebol ou handebol.

Todavia, sabendo que nasceu no Sambizanga, acompanhou o pai à cadeia de São Nicolau (Bentiaba), tendo se feito homem em Luanda, não é de afastar a possibilidade de ter, com os amigos, se entregue à bola para lazer, assim como faziam as crianças, adolescentes e jovens da sua época.
Espero que os seus conterrâneos, como o Manuel Loth e outros, venham debitar doxa a propósito do tema Ismael e a prática de actividades desportivas.

Carlos Calongo retoma, numa prosa datada de 04 de Outubro de 2024, Miguel António (contemporâneo de Ismael Mateus, na Rua da Nocal) que afirma que, na sua mocidade, Ismael Mateus tratava a bola de futebol por tu, tendo sido "defesa central irreverente, líder/capitão do Grupo Desportivo da SIGA", empresa de plásticos que se acha(va) perto da cervejeira acima referenciada.

Quanto ao ver outros a jogar, era fervoroso apoiante do seu Progresso Associação do Sambizanga e, em Portugal, apoiava vivamente o Benfica, cujas alegrias e tristeza o afectavam permanentemente.

No último domingo, ganhei coragem e fui ver aquele "poste" que sustenta a placa publicitária que sugou subitamente o Ismael de nós, no fatídico 01 de Outubro/24. Fica junto a um campo multiusos, na Avenida 21 de Janeiro, entre a FAPA e o começo do Bairro Rocha Pinto, onde se acha um túnel que vai dar à Estrada da Samba.

Busquei as experiências do meu Lubolu. Na via Kalulu-Kisongo há um entroncamento onde foi morto, por agentes a soldo do regime pidesco colonial, nos anos sessenta do séc. XX, um fazendeiro cafeicultor que rivalizava com os portugueses e israelitas da região. Tristes, mas desejosos de recordar aos malfeitores o seu acto hediondo, os amigos construíram no entroncamento o túmulo do assassinado. Dai em diante, o local passou a ser chamado de "Phambu y'Anibal (entroncamento do Aníbal). Na Munenga, uma curva que levou à morte um notável por acidente de viação, ganhou também o seu nome. "Curva do Rocha Cruz".

Fiquei a pensar, a conversar com os meus botões, enquanto o carro deslizava a velocidade de caracol. Aquela curva, ou melhor, aquele campo multiusos em que todos os dias, manhã e pôr-do-sol, os jovens cuidam da manutenção física, podia ganhar o nome do Ismael Mateus para perpectuarmos a memória do insigne jornalista, analista e escritor que viveu as últimas quatro décadas do século XX e as duas primeiras do séc. XXI.

Ousei, por isso, em mandar um whatsapp ao meu Camarada Manuel Homem, sugerindo-lhe que o campo fosse designado Ismael Mateus. Colha ou não a sugestão informal feita ao Governador de Luanda, esta é a minha derradeira homenagem ao padrinho de quem guardo doces lembranças.

=

terça-feira, outubro 29, 2024

O HOMEM NAS VIDAS DE UMA MULHER

Domingo cinzento de um mês chuvoso. Tudo parecia andar preguiçoso: o cantar madrugador dos galos, o uivar matinal das lobas ciosas, o acordar das gentes cansadas da tonga semanal e o acumular das nuvens do céu ainda acinzentado, sem sol nem fundo azul. Apenas três vozes se ouviam na sanzala.

Registisso, Ignorisso e Esquecisso, contemporâneos desde a mukanda e feitos amigos para a vida, caminham em direcção à area em que fizeram lavras. É lá também onde se produz o Kanyome que afugenta o frio mais intenso de Cyapya Ndalu e transforma os homens reservados e silenciosos em falantes e filósofos momentâneos. Ignorisso é um deles. Sem esse aditivo, contam-se-lhe as palavras proferidas durante uma marcha conversante de hora e meia que abate seis quilómetros.

Naquele dia, a conversa era fiada. Registisso e Esquecisso, os que sempre tomavam a iniciativa, não teinham anunciado nada. Nadinha. Os primeiros duzentos metros, depois do ponto de encontro que foi a Escola do Povo, tinham sido de surdina colectiva. Apenas a respiração barulhenta de Ignorisso os fazia co mpanhia, até que, fazendo recurso à memória, Registisso abriu um dos capítulos de sua vida.

_ O meu pai morreu em 1982, aos 42 anos, de doença natural, cárdio-respiratória. É normal num contexto anormal em que vivíamos no início da década de 80. Talvez pela doença que o apoquentava, desde adolescente, não tinha uma estrutura corporal robusta e atraente. Viam-se-lhe os ossos e vezes há em que se lhe podiam contar as costelas desenhadas no corpo desnudado. Era, todavia, um homem dedicado e esforçado como bom trabalhador agrícola, caçador e pescador nos rios da região em que habitou. Era engenhoso. Criou peixe em um rio que não os possuía. Hábil na caça com cães. O que dele melhor se falava era a sua habilidade em levar carne para casa. Evitava tomar makyakya e não fumava. Já a minha mãe era o inverso na sua mocidade. Fumava em cachimbo (era princesa e atrevida). Como a nossa casota era pequena (redundância propositada), os seus desentendimentos rápidos chegavam aos meus atentos ouvidos. "Feio, pobre, etc." Lembro-me de ouvir estas e outras expressões que ele geria com elegância e muito silêncio. 

Os dois amigos ouviam sem interromper. Algo comovidos. Algo ansiosos em ouvir a próxima nota, até que Esquecisso interrompeu.

_ E nunca os viste a lutar? Teu pai tinha paciência. Eu quando o sangue me ferve não admito abusos...

_ A vias-de-factos, terão chegado apenas uma vez, mas longe de meus olhos. Cheguei a tal conclusão porque ambos estavam arranhados.

_ E que achavas do teu pai, em relação à tia que era mais dada a trafulha? _ Questionou Ignorisso.

_ Aos meus olhos, o meu pai valia pouco perante a minha mãe que se gabava de possuir poder: poderio político, por ser princesa, e poderio económico, por ter parentes em Luanda que sempre a podiam auxiliar financeiramente em caso de alguma necessidade mais premente. Ele, era uma espécie de "cão-de-merda que não tinha onde morrer". Mas, era um bom pai. Carregava-me ao ombro eu para a escola e ele para a tonga. Queria ter um filho professor" que, depois, ensinasse as outras crianças a sair da escuridão. Ele sabia assinar, lia e escrevia as cartas de outros parentes da aldeia. Em contrapartida, a minha mãe, sobretudo depois de viúva, esforçou-se em criar os filhos. Com e sem marido exerceu poder, mas nunca chegou a ser homem. A masculinidade é doação única e divina!

À medida que a prosa de Registisso ganhava profundidade, a cadência do passo aumentava e o destino se encostava mais aos olhos. Nisso de visitar o guarda-memórias,  Esquecisso também visitou as suas e trouxe ao conhecimento dos companheiros uma situação ainda recente.

_ Olhem! Vocês sabem que no mês passado estive na capital onde fomos nos despedir do irmão da minha ndona. Nas poucas vezes em que conversei como amigo com o meu recém-finado cunhado pude saber do sofrimento por que todos passamos em vida. A desvalorização por parte de quem decidimos caminhar juntos, mesmo nos entregando às causas até ao último esforço. O quê que somos aos olhos delas?

_ Somos meros "cão-de-merda", recebidos com reclamações, resmungos e bafos, atirando-nos ao "rosto" os nossos insucessos, mesmo nunca deixando de tentar o melhor. _ Responderam Registisso e Ignorisso que, desta vez, interagia como nunca.

Empolgado, Esquecisso continuou com as indagações.

_ Para que valemos mesmo? Vocês sabem? 

_ Pra nada! _ Respondeu Registisso, complementando o amigo.

_ O que eu assisto é que os filhos já existem e alguns são grandes. A sexualidade abranda. Algumas vezes (quase sempre), na hora do "vamos ver", o indivíduo é recebido com reclamações, quando não são ataques e ou dislates. Que fazer?

_ Nada! _ Respondeu desta vez Ignorisso.

_ Volto à estória sobre os meus pais. _ Atirou Registisso. A minha mãe foi viúva por três vezes. Um individuo que morreu sem deixar história, o meu pai que morreu aos quarenta e dois anos, deixando quatro filhos e o sucedâneo de quem a minha mãe teve um filho. Amo a minha mãe como ninguém. Todavia, me pergunto até hoje:

O que faz os homens morrerem antes das mulheres, vocês sabem? _ Atirou provocante, sem, no entanto, dar tempo a respostas.

_ Nos dias que correm, a minha mãe não pára de elogiar o bom homem que foi o meu pai. Já lá se foram 42 anos. É a imagem que lega aos netos e às minhas irmãs mais novas que tiveram menos convívio com o papá. Fez a sua parte. Engoliu os sapos e sorveu igualmente a água do charco. Morreu herói. Talvez, um dia, sejamos também lembrados assim, como herói que foi vilão! Se calhar, tal como o meu pai, o teu finado cunhado tenha já sido transformado em querido e saudoso herói e nós, quiçá, no post-morten, venhamos a sê-lo também. Que acham?

Ignorisso e Esquecisso que o ladeavam estenderam os braços e o envolveram num abraço. Estavam já prestes a chegar ao alambique do Ensinisso, irmão mais novo de Ignorisso que estava a destilar kanyome para o seu alambamento.

_ Olha, mano Registisso, quem deve ouvir novamente a nossa conversa é esse miúdo que quer ter mulher, apontou o irmão mais velho, antes mesmo do kwata-kwata.

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Publicado pelo Jornal de Angola de 27.10.24

quinta-feira, outubro 24, 2024

AS TCHETCHÉNIAS DE NOSSAS VIDAS

 A Tchetchénia entrou no nosso quotidiano luandense através da guerra travada naquela República Russa entre 1994-1996. Era presidente da Rússia Boris Ieltsin e da independentista Tchetchénia Dzokhar Dudaiev morto em um ataque aéreo russo e substituído por Alan Makhadov dois anos depois.

As notícias, más, que nos chegavam, via media, reportavam batalhas tão intensas, na capital tchetchéna, Grozni, entre os contendores. 

Como os luandenses são bons imitadores e com elevadas doses de criatividade, os nossos "makongo" familiares também passaram a ser designados por Tchetchénia.

Igual ou pior que a guerra na Tchetchénia terá sido o conflito entre o Irão e Iraque, no início da década de 80 (1980_88) e que também ficou popularizado no nosso linguajar luandense de então.

_ Esse wi está à procura de Irão-Iraque e vai ter! _ Dizia-se em alusão a quem estivesse à "procura" de brogodjó.

Voltemos à Tchetchénia. Lembro-me de uma minha sobrinha, hoje bem formada e casada, que, por ter nascido no tempo da primeira guerra da Tchetchénia e por a relação entre os pais ter sido tensa, foi apelidada, pelos tios (todos nós adolescentes e jovens de primeira caminhada), de Tchetchénia. É o nome pelo qual ainda a tratamos carinhosamente. 

Uns nem sabem que ela tem um nome bem-sonante ao que juntou o apelido do esposo.

Bem, a Tchetchénia surge aqui (nesse texto) para ilustrar que no lugar em que se acha o edifício (na foto) à esquerda existiu um inacabado que fora assaltado por oportunistas e ou homeless person. Um meu primo, já finado, tinha um quarto em um dos 14 andares do antigo prédio da Tchetchénia. Era assim designado por ser um "paraíso de confusão".

Os "tchetchenos" foram desalojados e realojados, tendo o edifício sido demolido. Deu lugar ao que se vê na foto (à esquerda).

terça-feira, outubro 15, 2024

VISITA GUIADA A MASSANGANO

Massangano chama-te!

Uma das razões dos fins-de-semana prolongados ou pontes, quando o dia de feriado calha quinta ou terça-feira é fomentar o turismo interno. Dezassete de Setembro, Dia do Herói Nacional, calhou numa terça-feira e, por isso, as famílias tiveram os dias de sábado, domingo, segunda e terça-feira para descansar e desfrutar.

Para quem trafega no sentido Luanda-Dondo, EN 230, a antiga vila de Massangano fica no lado direito, faltando 25 quilómetros para se chegar à velha cidade do Dongo. Do desvio (ainda em terra batida, todavia já devidamente terraplenada) são apenas 25 quilómetros até se chegar à margem do majestoso Rio Kwanza que se espreguiça na sua calma viagem ao Atlântico. Aqui, numa elevação atalaia, chegou Paulo Dias de Novais, no séc. XVI, estabelecendo a primeira Câmara Municipal do Primeiro Governo Português em Terras Angolanas. Um dos empecilhos ao turismo interno é (ainda) a falta de serviços associados como restaurantes, acomodação, guias turísticos competentes e comprometidos e lojas de conveniência onde se possa adquirir lembranças.

Massangano tem recebido alguns turistas nacionais e internacionais com destaque para família Tucker dos UA (cuja origem é angolana) que, depois de alimentarem os olhos e a mente com conhecimentos sobre os primórdios da presença portuguesa em Angola e o tráfico de escravos, acabam por se retirar por falta de serviços de apoio ao turista.

Tino Cardona, um jovem forasteiro (benguelense) quer que "os turistas venham e permaneçam", está a erguer, bloco a bloco, assim como "grão a grão a galinha enche o papo", um resort que vai impulsionar o turismo no futuro município.
"Já faltou mais e o Resort está a ser equipado com bungalows, quartos normais, esplanada e restaurante", diz, confiante, Tino Cardona, que conheceu Massangano por via do escutismo e turismo religioso.
A partir de Janeiro de 2025, a comuna de Massangano passa a município, desmembrando-se de Kambambe e, ao chegar à sede, quem o vai receber (daqui a alguns meses) será a instalação turístico-hoteleira do Tino. 

_ As obras decorrem bem e já há cinco quartos prontos" de muitos outros por concluir. _ Explicou o investidor.

Uma vez confirmado o estatuto de município, Massangano (que, ao ganhar novo estatuto, devia ter o topónimo ajustado à sua etimologia e semântica) poderá ter uma câmara municipal e um edil, numa situação de termos autarquias.

Metros à frente, começa o conjunto de escombros que guardam a história de Massangano. 

_ À direita, está o que foi tribunal e casa de reclusão. Se viras novamente à direita, encontras as ruínas do que foi a cadeia. Tinha celas subterrâneas. _ Desta vez o narrador é o administrador comunal adjunto de Massangano.

Ao lado esquerdo (a entrar), está o edifício que foi a casa do governador Paulo Dias de Novais. "Mais tarde, serviu de casa dos sipaios", explica Carlos Ângelo Cacoba, administrador comunal adjunto. Depois, está a esquadra da polícia e a sede da administração comunal que vai ser elevada a municipal, já em Janeiro de 2025. As ruínas da antiga Câmara Municipal, século XVI, ficam depois da actual administração. Apar da igreja são os únicos edifícios com utilidade diária e permanente. A antiga Câmara Municipal fica antes da Fortaleza. Mais adiante vê-se a igreja católica e, trezentos metros à frente, seguindo o caminho do Kwanza em direcção ao Atlântico, está o que foi a Praça de Escravos

"Aqui eram avaliados e comercializados como objectos. Os aptos para qualquer transação eram, depois, baptizados na igreja onde recebiam um nome e embarcados, rio abaixo, até ao que é hoje o Museu da Escravatura, seguindo para as Américas e outros destinos". Mas, sobre Massangano não é tudo. O nosso cicerone conta que havia um forno e mostrou o caminho.

"Nele eram jogados os indivíduos sem valor comercial, doentes, inválidos, deficientes, etc. Estes eram jogados no forno como se de leitões se tratassem", conta Carlos Cacoba, possuído de comoção pelos infelizes.

As ruas de Massangano eram iluminadas a candeeiros. Os postes construídos emmpedra onde eram afixados os candeeiros a azeite torcida mantêm-se hirtos e gritam aos ventos e aos que passam a história sobre o seu desempenho e serventia.

Outros espaços que continham casas do tempo áureo da localidade estão em desaparição, podendo ser vistos poucos outros escombros e ou bases "escondidas" entre os casebres dos actuais moradores, feitos a base de pau-a-pique, barreadas e cobertas de chapas de zinco ou folhas de palmeiras. Outras casotas são de adobe (tijolo de terra bruta sem cozimento em forno). Há, porém, um detalhe: todas as casotas de Massangano têm energia eléctrica e podem ser vistos também alguns fontanários. 

Tendo conhecimento de edifícios seculares reabilitados na Europa e notado o estado de depreciação avançada que apresentam os sobrados de Massangano e outras ruínas históricas espalhadas pelo país, uma pergunta me persegue: existirá alguma disposição legal que impeça a reconstrução de ruínas históricas como as de Massangano?

Ora, reza a história que Massangano foi, na verdade, a primeira Câmara Municipal, a primeira sede de governo portuga no território Ngola que evoluiu para Angola. Paulo Dias de Novais foi o primeiro governador português a chegar a Angola e tinha como principais acções explorar os recursos naturais e promover o tráfico negreiro (escravatura), formando um mercado exclusivo de escravos.

Novais obteve do rei D. Sebastião (1568-1578) uma Carta de Doação (1571), que lhe dava o título de "Governador e Capitão-Mor, conquistador e povoador do Reino de Sebaste na Conquista da Etiópia ou Guiné Inferior", nome pelo qual a região de Angola era então conhecida, ou simplesmente Capitão-Governador Donatário. Partiu de Lisboa em 23 de Outubro de 1574 e desembarcou na chamada Ilha das Cabras (actual Ilha de Luanda) a 11 de Fevereiro de 1575. Na ilha já existiam cerca de sete povoados e Novais encontrou sete embarcações fundeadas e cerca de quarenta portugueses estabelecidos, enriquecidos com o comércio negreiro, ali refugiados dos Jagas. Acredita-se que já estivessem ali estabelecidos há alguns anos, uma vez que na ilha também existia uma igreja e um padre.

Estabelecendo-se na Ilha das Cabras, Novais recebeu uma embaixada do rei Ngola Kilwanje Kya Samba (29 de Junho de 1576), recebendo a permissão deste para se mudar para terra firme, para o antigo morro de São Paulo, onde fundou a povoação de São Paulo de Loanda.

Pelos termos da Carta de Doação recebida, Novais deveria expandir o território para Norte até às margens do rio Dande (Bengo), para o Sul, e para o interior ao longo do curso do rio Kwanza. Tinha ainda a obrigação de construir uma igreja, fortalezas e de doar sesmarias, para assentamento dos colonos. Partiu em direção às terras do Ndongo, em busca das lendárias minas de prata de Kambambe, avançando pelo vale do Kwanza até à sua confluência com o rio Lukala, onde (perto dela num terreno alteado que permitia visualizar qualquer embarcação que circulasse nos dois sentidos do rio) fundou a vila de Nossa Senhora da Vitória de Massangano, em 1583.

Novais faleceu em Massangano, em 1589, aos   79 anos, e lá foi sepultado, defronte da Igreja de Nossa Senhora da Vitória, em túmulo de pedra. As suas cinzas foram mais tarde transladadas para a Igreja dos Jesuítas em Luanda, pelo Governador Bento Banha Cardoso, em 1609.

Terminando como começámos esta "visita descritiva", a primeira Câmara Municipal de Angola pode ser restaurada, depois de 2025.

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Texto publicado pelo Jornal de Angola de 22.09.2024