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sábado, fevereiro 22, 2025

A FALSA OLIVEIRA

Quando a recebi, a arvorezita era franzina e alta que bailoçava ao vento. À chagada, a relação entre ela, a terra em que fora plantada e, se calhar, o sol tórrido do Zango IV, não foi boa, não!Levou perto de dois anos numa espécie de "toca e ninguém se mexe". Não secava nem apresentava folhas novas.

Em uma de minhas idas a Malanje, trouxe calcário dolomítico e polvillhei a base da planta. Talvez tenha sido um "santo molongo" e ela começou a sacudir-se da hibernação. Vieram-lhe folhas novas, verdes e fortes. Largava poucas ao longo do ano todo.

Quando comecei a podá-la para direccioná-la, o caule passou a engordar e a dar mais ramos que lhe formaram a copa. Continuou a poda para o direccionamento. Em finais de  2023, surgiram as primeiras flores e, no desabrochar do novo ano, surgiram as frutas parecidas às azeitonas agridoces e pretas quando amadurecidas.

Inicialmente, chamávamos a planta de oliveira. Três anos depois consegui uma oliveira original (daquela espécie que todos conhecemos e facilmente identificamos). Daí descartamos o nome anteriormente atribuído. 

Colhi duas ou três frutas que provei (já os guardas haviam saboreado umas e dito que "eram doces"). Voltei à pessoa que me ofereceu a árvore ainda pequenina, em 2020, e perguntar-lhe o nome da amárvore que iniciara a frutificar em 2024.


_ São azeitonas pretas  _ Disse.

_ Se são azeitonas, a árvore é oliveira (talvez uma das várias espécies existentes). _ Conclui, mas não muito satisfeito.

Desta vez, aumentou o número de flores e as frutas estão à mostra. É jamelão e está plantado no Zango, município de Kalumbu que, até 31 de Dezembro de 2024, era Luanda.

O jamelão, também conhecido como jambolão, guapê ou azeitona preta, oferece diversos benefícios para a saúde, tais como:

1- Sendo rico em vitamina C, ajuda na manutenção da saúde da pele, dos ossos e do tecido conjuntivo.

2 É fonte de fósforo, importante para a formação e manutenção dos ossos e dentes.

3. Possuidor de antioxidantes, contém compostos como antocianinas, quercetina e rutina, que ajudam a prevenir doenças como o câncer e outros problemas inflamatórios.

4. Possui propriedades anti-inflamatórias e ajuda a reduzir inflamações e aliviar sintomas de doenças inflamatórias.

5. Actua no ontrole da glicose, podendo ajudar no controle dos níveis de açúcar no sangue, sendo útil para diabéticos.

6. Saúde cardiovascular: Os antioxidantes presentes no jamelão ajudam a proteger o coração e melhorar a saúde cardiovascular.

7. Exerce acção anticarcinogênica, podendo ajudar na prevenção e no tratamento do câncer.

8. Melhora da digestão, pois ajuda a aliviar problemas como prisão de ventre, diarreia, cólicas e gases intestinais.

domingo, fevereiro 16, 2025

JUNTOS ERGUEMOS MUNENGA!

Nesta data, 16 de Fevereiro de 2025, publico, em primeira mão, o Slogan "MUNENGA_ Juntos Erguemos o Município!", assim como a grande "Pedra Escrita", localizada a cerca de 26 quilómetros da (actual) sede municipal, servindo de Ex-libris do novo município criando (por elevação de categoria) a 01 de Janeiro de 2025.

O Slogan e o Emblema são partes de mesma peça artística da autoria de Luciano Canhanga (contando com o suporte de Elizabeth Jai e Dilson Mota).

Todos os direitos reservados ao autor deste blog.

 

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sexta-feira, fevereiro 14, 2025

A QUALIDADE DO SOLO E A SAÚDE DA PLANTA


Repare no que lhe pode parecer "saúde" destas herbáceas.

A parte que apresenta um verde intenso é sorgo (massambala) e já vai na segunda colheita. Sim, a sorgo não seca, após colheita. Nascem-lhe filhotes que também produzem grãos.  Diz a ciência agrícola que a planta pode ir até à terceira ou mais colheitas, cujo rendimento vai baixando, obvio.

As herbáceas que apresentam um verde-amarelado são milheiros. O milheiro é de colheita única, assim como a bananeira. Mas aqui a diferença de coloração tem a ver com a riqueza do solo e exigência da planta. O milho requer melhores cuidados e solo mais humificado para que a planta cresça com vigor e tenha grãos desenvolvidos. A carência ou excesso de água tornam-se críticos para o milheiro, ao contrário do seu "primo" sorgo que é mais tolerante em relação à riqueza do solo e ausência de água. Todavia, o sorgo resiste melhor à inundação, pois cria raízes aéreas (acima do solo) que tanto podem absorver humidade em tempo seco como isolar a base da planta inundada e continuar a viver. Por essa razão, o sorgo é plantável. Sempre que apresente raízes acima do solo, pode ser cortado e plantado. O milho não!

O campo de herbáceas rasas é de batateiras que me estão a poupar alguns Kwanzas.  Kingombo, aliás quiabo, também temos, mas são poucos. Trinta metros quadrados, semeados de quiabos na minha horta, ficaram inundados. A batateira regozija-se com a inundação temporária, pois a água depõe matéria orgânica que serve de alimento à planta rastejante que se multiplica e cobre de verde o espaço.

domingo, fevereiro 09, 2025

ADEUS, CDA SAM NUJOMA!

Vai em paz, "presidente da minha filha"!









Sempre que Angola disputa jogos com a Namíbia, a Lúcia apoia o "país dela". E fica ela sozinha contra os irmãos que nasceram em Angola. Nasceu lá. Não tem a nacionalidade, mas "vive a Namíbia" como se fosse uma namibiana de jure.
Morreu, às 23h45 deste sábado, 8 de Fevereiro, em Windhoek, o Presidente Fundador (1990-2005) Dr. Sam Nujoma, aos 95 anos.
Em Angola, ainda no tempo das Kitotas, Nujoma vivia perto do Palácio. 
Acompanhando o meu finado tio Ferreira Ganga, fui, uma vez, sem o saber ad initio, à casa dele. Só depois de ter regressado ao Rangel e felicíssimo por ter recebido de oferta uma camisa castanha, de lã, com os botões à esquerda, o meu tio me disse que fôramos à casa de Nujoma, Presidente da SWAPO.
No Lubolu, o meu primeiro contacto presencial com os combatentes da SWAPO aconteceu em Fevereiro de 1984, na Munenga. Havíamos recuado da nossa aldeola familiar de Rimbe (proximidade da actual aldeia de Pedra Escrita), fugindo dos rebeldes da Unita que tudo atacavam e raptavam crianças, adolescentes e jovens. 
Saídos da antiga aldeia de Katoto (ficava perto da confluência entre os rios Ryaha e Mukonga) onde tínhamos ficado uma ou duas semanas (foi nessa altura que raptaram o António Neto e o seu o José Neto "Sabalu"), os mais velhos, liderados por Raimundo Carlos "Soba Xika", decidiram buscar por um refúgio seguro, na sede comunal, tendo nos abrigado (toda família extensiva) na casa de Manuel Albano "Kabenda".
Havia no comissariado comunal uma pequena guarnição das FAPLA que recebera de reforço um pequeno contingente de tropas da SWAPO. Devia haver, no total, um pelotão.
Chegámos ao fim da tarde e era hábito os militares visitarem as casas que tivessem recebido visitas, para conferir quem eram, a sua origem e os motivos da visita.
Eu tinha uma ferida descuidada que largava alguma secreção e odor. Um dos enfermeiros/socorrista da tropa da Swapo fez-me, naquela mesma tarde, um curativo único que, quando retirei a ligadura, duas ou três semanas depois, a ferida estava totalmente sarada.
Na madrugada do dia seguinte (entre noite e madrugada), a Unita atacou a sede comunal e mandou abaixo tudo o que puderam.
Voltei a lidar com os refugiados namibianos na Vila de Kalulu, entre 1987-1990. Eles estavam acampados na comuna da Kabuta e iam à vila de Kalulu apenas para compras e trocas comerciais. Os namibianos vendiam/trocavam roupas de fardo por galinhas, cabritos e outros bens alimentares com que reforçavam a sua dieta.

Aos do meu tempo, morreu o Camarada Nujoma, um freedom fighter.

Long life Angola!
Long life Namíbia!
RIP, Camrade Sam Nujoma!
We'll never forget you!

sábado, fevereiro 08, 2025

MEMÓRIAS DE KUTEKA E PEDRA ESCRITA

A 25 de Janeiro de 2025, cruzei, próximo da aldeia de Pedra Escrita, com uma parente que não conhecia. É neta ou bisneta do "Velo Xingwenda" [Velho Cinquenta], parente da minha mãe. 

Quando me foi apresentada pelo mano Gonçalves Manuel Carlos, recorremos à árvore genealógica para nos situarmos e, mesmo nunca me ter visto antes, quando se apercebeu que eu era filho da "avó Maria Canhanga", começou a recitar uma música dos tempos de xilimina [folguedos] dos anos 90 do século 20 e que fazia alusão a mim.

"Kajila bera mwititu twazeketu (3x)"[Passarinho diga, vamos pernoitar no ninho].

Em menos de 3 meses, na aldeia de Mbango yo'Teka, foquei imortalizado e recordado por pessoas que nasceram décadas depois de eu ter por lá passado, de Janeiro a Março de 1990, fugido da Unita que me correra de Kalulu e, semana depois, da aldeia de Pedra Escrita.

A jovem, parecendo minha mais velha (eu cinquentão e ela na casa de 30), lavava roupa, depois de ter preparado e posto a secar o bombó à beira da EN120. 

Eu, o mano Gonçalves, o Nelo e Páscoa fomos colher canas. A caminho da "kitaka" [horta] vi duas árvores que, na minha terra, atraem borboletas que nelas nidificam, surgindo, depois, os "mabuka" ou "katatu": uma é "munzaza" e outra, de folhas alargadas e em formato de coração dobrado em duas lâminas, é "ndolo".

Veio-me à mente outra canção do "xilimina" dos anos noventa:

"Moça mu kyaña ndolo, moça mu kyaña ndolo, mu kyaña ndolo we sosó lyamutena bwengi" [a moça, de tanto recolher e usar lenha de ndolo, a fagulha atingiu-lhe a zona nevrálgica"]. Na verdade, a palavra, aqui convertida em "nevrálgica" é um impropério. Só os jovens embriagados de kapuka ou lyambados cantavam essa versão ao lado de adultos. O dislate era sempre substituído por um termo não agressivo.

Naquele tempo das rusgas e raptos [rusgas de jovens abrangidos ou não para o serviço militar obrigatório e raptos da unita], o que se cantava era a saudade dos que tinham partido e que deles não se tinha notícias e a reinvenção das vidas para enfrentar os dias duros de futuro imprevisível. E assim, enquanto se metaforizava nas canções como "sambwa li sambwa obuji yatena moye" [entre duas elevações/lados o obus atingiu uma palmeira], também se cantava a saudade dos que tinham sido levados pela sorte madrasta e dizia-se "Kisasa kumbi otoka, bukanga twazeketu" [Quando Kisasa regressar vamos pernoitar fora de casa, a conversar, cantar e contar coisas nossas].

As letras eram curtas e repetitivas, mas com sentido e alcance muito longos.

"Bwahila Toy inyungu ibiloka!" [Onde morreu o Toy os abutres estão às voltas para debicar os seus restos]. 

Depois de kitotas, a presença de abutres em algum lugar era indicadora da existência, por perto, de um cadáver (humano ou de outro animal qualquer).

Os inválidos, os envergonhados, os tímidos e toda a sociedade, individual ou colectivamente, também eram "personagens" das letras das canções que, muitas vezes, mudavam apenas a estória, mantendo a melodia e o tilintar do tambor e do bujão. "Nange, nange, Xoxombo wombela, wombela, Xoxombo nange, nange katé okyo wombela" [De tanta solidão, causada pela timidez em desfiar o rosário a uma jovem, Xoxombo teve de recorrer ao estupro].

Assim era o cancioneiro popular com história e estórias fundadas no longo percurso da sociedade e nos anseios transformadores do amanhã.

sábado, fevereiro 01, 2025

"QUE FALOU KIMBUNDU É ZINHA DOMINGO"

A escola era entre a aldeia de Mbango Yo'Teka e a aldeola de Kabombo. Um quarto, que restava da antiga residência do Senhor Marques, colono português que àquelas terras fora degredado para fazer agricultura, servia de sala de aulas. O professor era Faustino Kisanga Bocado. Como o ensino era e é ainda em língua portuguesa e os nativos de Kuteka mantinham o contacto com a anterior língua colonial apenas quando chegasse a idade escolar, o uso do Kimbundu (no recinto escolar e em casa) fora proibido para acelerar a língua veicular em Angola.

Assim, aqueles que fossem ouvidos a glosar o Kimbundu, fosse na lavra, durante as pescarias (rapazes) ou recolha de lenhas (meninas) eram denunciadas, se não houvesse um bom pacto entre eles.
Alguns pediam aos outros tréguas ao uso do português e todos, mas todos mesmos, se comunicavam na língua materna, inibindo qualquer traição ao professor Bocado. Sorte semelhante não teve a Zinha. Eram duas meninas homónimas na sala improvisada da pré-kabunga que recebia as lições debaixo da frondosa mulembeira.
- Camá, prossor, ontem Zinha falou Kimbundu. - Denunciou Kephele.
O professor olhava para a Zinha Miguel, a mais dada a violar a regra "Kimbundu zero", imposta a todos os alunos.
- É mentira, camá prossor, eu não fali kimbundu. Que falou Kimbundu é Zinha Domingos. Falou assim, "mbomba mu hondja Ùwabe"! [banana com bombó é saborosa!]

E assim ficou registado. Passam quase cinquenta anos. Sempre que se alude à proibição do uso do Kimbundu na escola ou ao mau português usado pelos meninos que frequentam a escola, surge essa cena contada de boca em boca e de geração em geração.
_ Mbomba mu hondja ùwabe!

quarta-feira, janeiro 29, 2025

É PRECISO DIRECCIONAR O ENSINO À AUTO-SUFICIÊNCIA

A escola da aldeia de Pedra Escrita, no novel município da Munenga (região do Lubolu), possui três salas de aulas atendidas pelo igual número de professores que ministram aulas da iniciação à sexta classe.


Embora desde o final dos anos 70 aquela área tivesse sempre professores como José Borracha, Jorge Manuel Carlos e Zeferino Bernardo (seguindo-se outros em período mais recente), o que é caricato é que a produção de professores tem sido zero, com excepção do autor desta prosa que abandonou a região em 1984, ministrando aulas em outras paragens de Angola.
Os três "mestres" alocados actualmente naquela circunscrição são oriundos do Sumbe e Waku Kungu onde possuem as suas bases familiares. A consequência tem sido trabalharem 3 dias por semana, visto que descontam a segunda e sexta-feira para as viagens, restando a terça, quarta e quinta-feira. Pior do que isso, a aldeia não possui casas para professores e enfermeiros, passando-se o mesmo em relação ao Posto Médico que não atende aos sábados e domingos.

_ Os enfermeiros são da vila [de Kalulu] e só vêm na segunda para regressar junto de suas madames na sexta-feira. Acontece que a doença não escolhe o dia. _ Atirou o vice-soba da aldeia, em alusão ao fechamento das portas da unidade sanitária.

Mas, voltemos à escola. A meu ver, dois caminhos se podem desenhar para que aldeias como a de Pedra Escrita tenham autonomia em termos de professores e enfermeiros:
1- Um projecto gizado pela administração e comunidade que leve à selecção de seis a dez alunos locais que devem ser acompanhados e potenciados (psicológica e financeiramente) para que estudem até concluírem a 12ª classe e serem recrutados, posteriormente, como professores e enfermeiros locais.
2- Construção de casas de função para professores e enfermeiros, como forma de propiciar a mobilidade e instalação na aldeia de familiares de profissionais não locais, evitando-se as longas viagens e o absentismo ao trabalho.

Construir, nem que fossem apenas, 5 quartos com respectivos lavabos não seria uma empreitada impossível se a administração e a população estiverem a comungar ideias que levem a auto-suficiência e firmadas no futuro. Deve ainda haver no país gente solidária e com dinheiro que só precisa de receber bons e exequíveis projectos.

O professor Mateus António, 41 anos, é natural do Sumbe e trabalha na aldeia de Pedra Escrita há mais de seis anos. Comunga da ideia de que se a aldeia tivesse casa para professores, as suas idas à capital da província teriam diminuído, teria menos custos e a família podia repartir o tempo entre o Sumbe e a Pedra Escrita, admitindo mesmo a mudança de base familiar.

Falei-lhe e mostrei-lhe onde era a lavra do professor, no início dos anos 80 do século XX. Expliquei a minha própria experiência em que as manhãs de todos os sábados eram para a campanha escolar, dividindo os alunos entre as classes que faziam a limpeza da escola e cercanias e aqueles que iam à lavra do professor, pois este leccionava de segunda à sexta-feira e de manhã ao final da tarde, não lhe restando tempo para a horta. E todos íamos alegres à campanha.


_ Numa situação destas, ter casa, mesmo que fosse só um quarto, e um terreno para fazer uma horta, teríamos uma vida melhor. _ Desabafou Mateus António, esperançoso de que as minhas ideias e experiências "encontem eco e que alguém as oiça e materialize".

A propósito, a escola beneficia de obras (lentas) de restauro e os alunos e as carteiras "estão distribuídos pelas capelas do bairro", constituindo-se a adjacência da escola, envolto ao capinzal, em um defecatório público, dada a ausência da cultura de construção de latrinas.

A piorar a situação, em tempo de chuva, os dejectos são arrastados para a zona baixa onde foi construído o poço de água que acabou inundado. Como consequência, aumentaram as enfermidades, "destacando-se as tifoides, diarreicas e outras patologias causadas por parasitas", segundo o coordenador da aldeia que reforça que "a água que as pessoas consomem não tem condições sequer para tomar banho, devido a porcaria arrastada pela chuva e que inundou o poço que sustenta a aldeia".

Uma canalização, que retirava a água de uma montanha que dista perto de 3 quilómetros, foi esquartejada pela grade do tractor de um fazendeiro que, passados mais de 5 anos, ainda não foi responsabilizado a repor o bem público danificado, expondo a população a enfrentar dificuldades na obtenção de água própria para o consumo humano.


=
Pedra Escrita, 25.01.25

quarta-feira, janeiro 22, 2025

A ETIM DE ONTEM E OS KALELUYA

Comparando com dados demográficos de hoje, em 1975 éramos poucos e no início e metade da década de oitenta parecíamos igualmente poucos, talvez uns 8 ou nove milhões. A fertilidade e a natalidade estavam em alta, mas as mortes pré-natais, neonatais e de homens adultos tombados na tropa não ficavam atrás, justificando um saldo populacional com pouco crescimento. 

Neste período, para as viagens e deslocações, os autocarros e os carros de instituições e privados também não eram tantos quanto são actualmente. Carreiras da EVA, ETP e ETIM e algumas rotas servidas com autocarros Keve e outras ainda com camiões e camionetas Bedford e Ifa, levavam-nos para todos os destinos do país, não nos importando tanto com a duração e comodidade das viagens. 

Hoje, cresceu o número de transportadoras, a capacidade e comodidade dos veículos. Os destinos continuam os mesmos (pois o país vai crescendo apenas em termos de novas circunscrições e população que aumenta em quantidade e esperança de vida). Todavia, as vias mais próximas das cidades parecem ainda padecer de carência de transportes públicos. 

O Kalumbu, por exemplo, pede de volta o seu comboio. A Funda e Kabiri também sentem saudades do seu comboio de então, movido a carvão, assim como o Kikolo se quer juntar ao Paraíso e Monte Belo, tal como a Samba quer ver pessoas a deixarem de ser levadas em triciclos motorizados e caixas de camionetas nos destinos para Morro dos Veados, Mundial, Aeródromo e Ramiros.

As pessoas são muitas, sim. As necessidades aumentaram, é verdade. Os desafios somam-se todos os dias. Precisamos, todos, é de multiplicar as soluções e cuidar do que já existe!

quarta-feira, janeiro 15, 2025

CARNE COM 14 GRAUS

Na tropa tuga que os acolheu pela primeira vez, Serpa Pinto era cidade demasiado pequena para que dois jovens educados em missões protestantes não se reconhecessem.

_ Nasci em Ekovongo e cresci em Kamundongo. _ Apresentou-se o cabo Sabino ao cabo Coimbra. Corria o ano 66 do séc. XX. Os Movimentos de Libertação Nacional surgiam como cogumelos influenciados pelo fim da IIGM e conferencia de Bandung, com os ex-militares a vomitarem novas ideias jikulamesistas nos países de origem.

_ Também sou protestante de Cisamba e tenho a vida académica feita no Ndondi (ex Bela Vista, hoje Kacyungu). _ O aperto que se seguiu à apresentação dos dois cabos bienos, dois anos de diferença, foi como a bala de G-3 alojada na caveira dum insurreto. Assim eram as orientações salazaristas e thomazistas naqueles tempos "para Angola e em força" a fim de manter "a joia da coroa lusitana em África" onde enfrentavam, a par da Guiné de Amílcar Cabral, umas das mais duras e desgastantes guerrilhas. "Alojar a bala na caveira dos patrícios e fazê-los temer a nossa autoridade e poder", ordenavam os furriéis à praça formada por nativos e lusitanos chegados em aviões e navios metropolitanos.

Coimbra e Sabino enfrentaram com valentia e sabedoria os dois anos de tropa tuga até chegar a dispensa para a vida civil, cumprindo ou esquivando ordens para que não fossem submetidos a castigos nem tidos como subversionistas. Por outro lado, evitando também o confronto directo com os seus irmãos que nas matas e nas chanas lutavam com kanyangulu e mwana-kaxitu para dar fim ao poder do fascista Salazar e seu presidente peão, Américo Thomaz, das terras de Ngola, Ya Ndemufayo, Wambu, Ndulu yo lo Sima, Cinyama, etc.

Transcorreram os 48 meses esquivando uns e outros, embora o coração fosse revoltoso. Terminada a missão militar, Coimbra acabaria por alistar-se num curso de enfermagem.

_ Único caminho que tenho p/ ajudar a revolução é curar os populares e os compatriotas deixados feridos pelo calor da refrega. _ Disse para si mesmo no dia da decisão. E fez o curso geral de enfermagem, ano e meio, em Nova Lisboa. Seguiu depois para Kamanonge, distrito de Moxico.

Sabino seguiu-lhe no sonho, embora nada houvesse de acerto entre ambos. 

_ Agora que já não estou a servir vou me enquadrar no Movimento.

Tentou fazer-se à estrada até atingir a vila Teixeira de Sousa. Espinhos eram muitos e poucos com histórico militar transpunham as barreiras. Já um ano tinha voado, depois da dispensa da vida militar. 

_ A revolução também se pode fazer na recta-guarda. _ Assim pensou e procedeu sem demora. Enquadrou-se no curso geral de enfermagem e o destino levou-o igualmente a  Kamanonge, onde viria a reencontrar o seu antigo colega e conselheiro Coimbra.

Quando se avistaram pela primeira vez, em Serpa Pinto (hoje Menongue), Coimbra já era pai de segunda caminhada. Sabino ainda sonhava com a noiva deixada intacta em casa do padreMaurício,irmão de Argentina. Mal tinham começado a garinar o jovem, segundo ano do liceu concluído, foi forçado a enquadrar-se na tropa de ocupaçao colonial.

No reencontro de Kamanonge, Coimbra ia em três rebentos, enquanto Sabino contava dois filhos: Sozinho Kanyimonjo e Wandalika Kolohali.

Estavam no berço da revolta contra o sistema colonial. A proximidade com a Rodésia independente e permissiva aconselhava o recrudescer dos combates e até facilitou o surgimento do kasule entre os Movimentos guerrilheiros anti-salazaristas em Angola.  Coimbra na chefia da delegacia da saúde de Kamanonge recebeu o neófito Sabino que se fazia acompanhar da prole e companheira. Surgiram outros anos de companheirismo e cumplicidades entre duas famílias. Durante o sol atendiam os colonos e aldeões da circunscrição e, às noites, os "irmãos kambutas"que abundavam nas chanas trafulhosas do Leste.

Chegou a Revolução dos Cravos. Salazar já pagava pelos pecados e Caetano, seu substituto na ditadura primo-ministerial, via o diabo a assar "joaquinzinhos" em lume brando. 

_ Independência chegou! _ Gritaram as colónias. Negociações à mesa, 14 anos depois do início das nvundas do tunda mindele. Coimbra volta a Silva Porto e Sabino enfrenta a traição rasteira de irmãos de sangue e sofrimentos perante o chicote colonial.

_ É ovimbundu, é colaborador. _ Sem mais nem menos acusaram-nos com sede de lhe tomar a cadeira na delegacia deixada por Coimbra transferido. Preço da revolução feita sem cérebros encanetados. Fugido das masmorras pidescas, à cadeia disesca foi entregue, acusado de traição.

_ Nunca estive com eles. Nunca me simpatizei com eles. _ Defendeu-se perante uma acusação que não permitia advogado. Sol aos quadrados viu. Até estrelas depois de competentemente sovado. Resistiu à tortura e morte. Viu companheiros de desgraça, acusados de colaboracionismo com o Terceiro Movimento, partirem para nunca mais se ouvir falar deles. Com o passar do tempo, recebeu outros parceiros de sofrimento, rusgados na refrega inglória do 27 de Maio de 1977. Muitos deles seguiram o rasto dos primeiros. Desapareceram de dia para noite sem deixar rasto. Quando o sino da liberdade tocou, voltou à urbe nativa, fundada por Silva, o do Porto, onde voltou a encontrar o seu amigo e companheiro de todas as caminhadas que fora transferido para o confiscado hospital missionário de Kamundongo.

Vivem hoje aposentados, cuidando de netos a quem contam a cada sol um episodio, fazendo-lhes companhia a "pomada", as cicatrizes e as memórias.

_ Então, compadre, o que será hoje o nosso almoço? _ Perguntou Sabino na pele de visitante, enquanto ajeitava a sacola em que acomodava o galo trazido da fazenda.

_ Catorze graus, com carne e pirão. É tempo de independência, compadre. _ Respondeu Coimbra.

Rodeados por filhos kasules, sobrinhos e netos comuns, Coimbra e Sabino abriram seus livros de memórias que os descendentes foram anotando e mentalizando com atenção.

_ Vovôs, vamos escrever um livro com vossas recordações. _ Verbalizou Any Bingo, uma neta comum.

A cabidela foi regada com vinho tinto de 14 graus enquanto os mais novos festejavam com kisângwa.

quarta-feira, janeiro 08, 2025

AFUGENTAR PÁSSAROS & FORMATAR A EQUIPA

Já alguma vez se questionou "o que vai mal para que seus filhos/liderados não façam o que você ensina todos os dias?"

Acontece que, às vezes, passamos a vida toda a ensinar a mesma coisa sem que a equipa atine.

Vezes há em que eu mesmo desabafei que "ensinar também cansa!". 

Porém, a sabedoria recomenda "que ninguém se canse de ensinar", pois, "se o lavrador não coloca espantalho todos os dias à volta e dentro da lavra, os pássaros tomam conta dela"!

Aprendi essa máxima com a D. Maria de Lourdes Maria De Lurdes Bartolomeu que a ouviu de sua progenitora. Refleti sobre o seu alcance e revigorou-me, trazendo-a aos meus leitores.

É preciso "colocar sempre espantalhos para afugentar os pássaros". É preciso ensinar sempre até que se atinja o bem-fazer/bem-ser.

MEMÓRIAS DE KUTEKA E PEDRA ESCRITA

A 25.01.25, cruzei, próximo da aldeia de Pedra Escrita, com uma parente que não conhecia. É neta ou bisneta do "Velo Xingwenda" [Velho Cinquenta], parente da minha mãe.

Quando me foi apresentada pelo mano Gonçalves Manuel Carlos, recorremos à árvore genealógica para nos situarmos e, mesmo nunca me ter visto antes, quando se apercebeu que eu era filho da "avó Maria Canhanga", começou a recitar uma música dos tempos de xilimina [folguedos] dos anos 90 do século 20 e que fazia alusão a mim.

"Kajila bera mwititu twazeketu (3x)"[Passarinho diga, vamos pernoitar no ninho].

Em menos de 3 meses, na aldeia de Mbango yo'Teka, foquei imortalizado e recordado por pessoas que nasceram décadas depois de eu ter por lá passado, de Janeiro a Março de 1990, fugido da Unita que me correra de Kalulu e, semana depois, da aldeia de Pedra Escrita.

A jovem, parecendo minha mais velha (eu cinquentão e ela na casa de 30), lavava roupa, depois de ter preparado e posto a secar o bombó à beira da EN120. Eu, o mano Gonçalves, o Nelo e Páscoa fomos colher canas. A caminho da "kitaka" [horta] vi duas árvores que, na minha terra, atraem borboletas que nelas nidificam, surgindo, depois, os "mabuka" ou "katatu": uma é "munzaza" e outra, de folhas alargadas e em formato de coração dobrado em duas lâminas, é "ndolo".

Veio-me à mente outra canção do "xilimina" dos anos noventa:
"Moça mu kyanña ndolo, moça mu kyaña ndolo, mu kyaña ndolo we sosó lyamutema bwengi" [a moça, de tanto colher e usar lenha de ndolo, a fagulha atingiu-lhe a zona nevrálgica"].
Na verdade, a palavra, aqui convertida em "nevrálgica" é um impropério. Só os jovens embriagados de kapuka ou lyambados cantavam essa versão ao lado de adultos. O dislate era sempre substituído por um termo não agressivo.

Naquele tempo das rusgas e raptos [rusgas de jovens abrangidos ou não para o serviço militar obrigatório e raptos da unita], o que se cantava era a saudade dos que tinham partido e que deles não se tinha notícias e a reinvenção das vidas para enfrentar os dias duros de futuro imprevisível. E assim, enquanto se metaforizava nas canções como "sambwa li sambwa obuji yatena moye" [entre duas elevações/lados o obus atingiu uma palmeira], também se cantava a saudade dos que tinham sido levados pela sorte madrasta e dizia-se "Kisasa kumbi otoka, bukanga twazeketu" [Quando Kisasa regressar vamos pernoitar fora de casa, a conversar, cantar e contar coisas nossas].

As letras eram curtas e repetitivas, mas com sentido e alcance muito longos.
"Bwahila Toy inyungu ibiloka!" [Onde morreu o Toy os abutres estão às voltas para debicar os seus restos].
Debois de kitotas, a presença de abutres em algum lugar era indicador da existência, por perto, de um cadáver (humano ou de outro animal qualquer).
Os inválidos, os envergonhados, os tímidos e toda a sociedade, individual ou colectivamente, também eram "personagens" das letras das canções que, muitas vezes, mudavam apenas a estória, mantendo a melodia e o tilintar do tambor e do bujão.

"Nange, nange, Xoxombo wombela, wombela, Xoxombo nange, nange katé okyo wombela" [De tanta solidão, causada pela timidez em desfiar o rosário a uma jovem, Xoxombo teve de recorrer ao estupro].
Assim era o cancioneiro popular com história e estórias fundadas no longo percurso da sociedade e nos anseios transformadores do amanhã.

quinta-feira, janeiro 02, 2025

ANANÁS E ABACAXI: PARENTES OU DISTANTES?

Oiço em muitas conversas, no campo, se ananás e abacaxi são uma mesma espécie de planta ou diferentes. No Brasil, por exemplo, ananás e “abacaxi” são usados de forma intercambiável, embora o termo “abacaxi” se refira, geralmente, a variedades específicas como o Pérola e o Havaí.

Tratando-se de variedades de uma mesma espécie, aqui vão algumas diferenças e semelhanças:

Espinhos: algumas variedades de ananás têm folhas com espinhos nas bordas, o que pode dificultar o manuseio. A variedade Pérola tem folhas com menos espinhos ou sem espinhos, tornando-a mais fácil de manusear. Algumas variedades de abacaxi, como o Pérola, são conhecidas por serem mais doces e menos ácidas do que outras variedades de ananás.

Quanto à aparência, o abacaxi Pérola, por exemplo, tem uma casca mais amarelada quando maduro, enquanto outras variedades de ananás podem ter uma casca mais verde. Ambos têm uma estrutura semelhante, com uma casca externa dura e uma polpa interna suculenta. A fruta é usada na culinária em sucos, sobremesas e pratos salgados.

Horta do Kanyanga
O ananás é rico em nutrientes. Contém vitaminas A, C, B, além de minerais como zinco, magnésio, fósforo e cálcio. A bromelina, uma enzima presente na fruta, ajuda na digestão de proteínas. Possui também uma acção anti-inflamatória, pois ajuda a reduzir inflamações e melhorar a circulação sanguínea. A vitamina C e outros antioxidantes presentes na fruta tropical proteger contra doenças cardiovasculares, promove a eliminação de líquidos, fortalece o sistema imunológico, ajuda na perda de peso e no combate às infecções.

A fruta prospera em climas quentes e húmidos, com temperaturas entre 22°C e 30°C, sendo Luanda, com o seu clima tropical, é adequada para o cultivo. A planta prefere solos arenosos ou semi-arenosos com boa drenagem e um pH ligeiramente ácido (entre 4,5 e 5,5)34. O solo semi-arenoso de Luanda é ideal para o cultivo do abacaxi/ananás.

Eis algumas das condições para uma boa produtividade

Deve ter boa drenagem para evitar problemas de podridão da planta; A precipitação ideal é a que varia entre 1.000 e 1.500 mm anuais, distribuídos de forma uniforme; a planta necessita de um equilíbrio adequado de nitrogênio, fósforo e potássio; quando possível, a irrigação por gotejamento é eficiente para manter a humidade sem encharcar o solo.

Seja ananás ou abacaxi (variedades de uma mesma espécie de planta), o importante é dar o 1° passo e fazer as coisas com carinho e dedicação. Cada fruta ou verduras colhidas são Kwanzas poupados no mercado.

terça-feira, dezembro 31, 2024

O NATAL HODIERNO E O DA MINHA MENINICE

Na década de 80, quando cheguei pela primeira vez a Luanda, e mesmo na década que se lhe seguiu, éramos pobres. Havia pobreza em todo o musseque. Contavam-se os que tinham carros pessoais ou motorizadas. Conhecíamos o roncar de cada motor. Eram raros os que podiam levar para casa uma caixa diferenciada de cabaz, distinta das compritas que todos os trabalhadores (operários, camponeses ou intelectuais) podiam fazer nas "lojas do povo". As excepções eram mesmo excepções. Uns porque tinham patrões cooperantes e outros porque eram kambalaxeiros ...

Poucos eram os que tinham cantinas, lojas do povo (os supermercados de então) ou outras actividades paralelas geradoras de rendimento, tirando as pequenas profissões como sapateiro, funileiro, alfaiate, pasteleira, kitandeira, etc. Havia carências de toda a ordem, mas vivia-se o Natal. Vibrava-se. Não era por causa os bolos, os presuntos, as gasosas, os vinhos, os doces, os perus ou outros bens. Era pelo simbolismo da data: festa da família. A família alargava-se, ou melhor, elasticizava-se pois todos eram nossos parentes com quem partilhávamos os bolos, as parcas gasosas, a kisângua e tudo quanto houvesse.
As faixadas eram colectivamente pintadas pela miudagem que, em adição, engalanava as ruas à medida, criatividade e possibilidades do seu agregado. Os jovens feitos, nossos mais velhos de então também faziam uso de bebidas alcoólicas, mas eram mais contidos. Talvez inibidos pela carência, mas bebiam mesmo pouco. Hoje o Natal é mais despesismo, individualismo, oportunismo e outros ismos que não me parecem unir famílias nem criar laços fortificantes para o início de um novo programa anual.
Que venha 2025 e reponha o Natal da minha meninice!

sábado, dezembro 28, 2024

PARTIU O "TONY D'AQUI"

[Com funeral em Portugal, ainda sem data, o corpo deve partir de Luanda na próxima semana e ser cremado à chegada]

Perdi, a 27.12.24, o meu amigo-como-irmão e produtor do meu livro "Kitotas: recuos e avanços". O Antonio Rosario Pinto produziu ainda "O relógio do Velho Trinta", "Canções ao Vento" e "Amor sem pudor". Tínhamos outros projectos literários em carteira e ele não era de negar os meus desafios aos quais se entregava de forma altruistica.

_ Muitos dos que me chamam de kota 'portuga' eram pirralhos ou não existiam quando cheguei pela primeira vez a Luanda, no início da década de 80". _ Costumava dizer, o produtor e prestador de serviços de comunicação institucional e imagem organizacional.

Profissionalmente, há muito vimos realizando procedimentos concursais para a contratação de serviços e produtos de comunicação institucional. Foi nessas circunstâncias que nos conhecemos. Chamei-o para a Lunda Sul, para apresentar e explicar a sua proposta. Deste encontro nasceu uma amizade irmanada que se estendeu aos meus liderados (na Lunda Sul e em Luanda) e às nossas famílias. 

Fruto de suas idas a Saurimo e da sua mundividência, o António Pinto passou, como eu, a amar a cultura cokwe. Fez palestras para os meus estudantes na Universidade Lueji A'nkonde e para os constituintes do Núcleo de Leitura e Literatura da Lunda Sul (LevArte Lunda Sul). Visitou a "Oficina de Jornalismo" que realizámos a convite da Diocese de Saurimo que começava a dar preparação básica aos seus "futuros" profissionais da Rádio Diocesana.

Nisso de ligação com a Lunda, em particular, o António foi mais longe. Fez várias tatuagens com dizeres e imagens daquela língua e cultura, que me comunicava e pedia para confirmar a tradução, antes da aplicação. Uma vez, no Luari, fomos comer "mulambandjangu com xima". O António pediu água e a garçonete trouxe-lhe uma bacia para lavar as mãos. Entendemos o sinal como um convite para que apreciássemos aquele manjar com as mãos. O António, não se fazendo rogado, foi o primeiro a atacar com as mãos. Era tão angolano que metia inveja a muitos angolanos sem angolanidade. E o espanto foi total. 

_ Um branco a comer com as mãos não se vê todos os meses!" _ Comentava-se, procurando saber de onde ele era. Realmente, não era de se ver todos os meses. Era raro e só aplicável ao nível de pessoas descomplexadas como ele.

Em Luanda, estava eu a ministrar aulas de Rádio em uma IES (instituição de ensino superior). Quando ele se apercebeu logo solicitou vozes que podiam estrear na publicidade e fazer outros trabalhos de comunicação. Indiquei a Ana, uma jovem que tinha muito talento, e que me disse ter sido bem acolhida e treinada. É hoje voz incontornável em uma rádio da capital angolana.

Este ano, estivemos no seu último aniversário (62°). Já padecia, mas sempre esboçando alegria e vontade de viver. Tinha acabado de sair do hospital, por isso, questionei-o por "que nos convidara se ele não parecia estar bem"?

_ O nosso repasto já estava marcado e pago. Não podíamos cancelá-lo. _ Disse-me, seguido de um abraço. 

Mesmo sem o vigor de sempre, quis estar com os seus amigos angolanos que muito prezava. Dividiu-se entre os seus convidados angolanos e portugueses com quem procurou conversar e entreter. Fálamos sobre o sabor da vida, da amizade, de negócios e sobre o futuro. Esse que não sabemos!

Quando procurou por uma segunda opinião médica, empenhamo-nos em indicar-lhe uma clínica e uma casa em Windhoek, aonde fora buscar saúde. Regressou dias antes do Natal. Trocámos mensagens há 4 dias (23.12). Não falámos sobre saúde. Evitei. Pretendia levar-lhe mensagems positivas, todavia, li nas palavras que me escreveu que não estava bem, mas tinha o desejo de viver.

"Nossas mulheres e filhos precisam muito de nós e temos de viver, nem que seja por eles", costumávamos dizer/escrever.

Perdi o amigo que me levou a conhecer Alenquer e outras façanhas da vida. Não o acomlanhei no tour a Maputo. Devo-lhe. Tínhamos combinado ir a Moçamedes, passando pela Lucira. Também não cumpri porque a estrada prometida ficou por ser concluída.

O António era um cidadão do mundo, opened mind, sonhador, ecológico e que não dava espaço a conflitos, quaisquer que fossem.

_ A vida terrena é demasiadamente curta para ser desperdiçada com baboseiras. _ Dizia.

Quando a Isabel Ferreira publicou o seu livro "Fernando Daqui", passei a chamar o António Pinto por "Tony D'aqui", uma homenagem "in vita" a um cidadão português que escolheu Angola como sua casa e os angolanos de todas as raças, credos e culturas, como seus irmãos. Ele aceitou o cognome.

Manuela Ramos Pinto (esposa), André e Catarina (filhos), estou convosco nesse momento triste. O António é daqui, de Angola, e não sairá nunca dos nossos corações!

Até já ARP!

quarta-feira, dezembro 25, 2024

UMA EXPERIÊNCIA QUE SUPEROU DIPLOMAS

Se o motivo fosse académico ou procura de emprego a mesa de Natal seria um desfiladeiro de diplomas académicos. Mestre havia. Pessoas com dupla licenciatura também. Com mono-licenciatura e uns terminando, havia vários e de distintas áreas de formação. A que menos frequentou a escola, mas com um básico feito no bom tempo e uma experiência de mais de setenta anos, era a matriarca.
Depois de mesa posta, faltando horas para a transição do dia 24 para o de Natal, as luzes da sala se apagaram. Não tinha sido ainda corte de energia, nem obra de um "malandreco" de casa. Foi redução da potência. Algumas lâmpadas "chinesas", colocadas nos corredores e nos candeeiros de banca estavam acesas.
Enquanto os adultos e jovens procuravam recordar as teorias aprendidas nas escolas para tentar encontrar uma solução, a idosa, caminhando lenta com o peso da sua idade apreciava os "doutores e engenheiros" que viajavam e recitavam autores clássicos do mundo vasto da física e da electricidade.
O mais incomodado com a escuridão já tinha mandado comprar velas incandescentes para substituir a luz dos telefones que ficavam sem carga. Só o rés-de-chão, em que imperavam as "lâmpadas tuguesas", no dizer do dono do imóvel, estava entregue à escuridão. Os pisos superiores tinham umas luzitas que permitiam caminhar sem tropeçar e enxergar com quem se cruzasse pelo corredor.
Passou quase uma hora, os debates estavam acalorados e a solução distante. Ao jovem (quase) engenheiro electromecânico, apesar da sua categoria de filho, se dirigiam as maiores perguntas em busca de uma aparente saída airosa.
_ Diz-me filho, tu que estudas essas coisas, o que devemos fazer para acender as lâmpadas cá de baixo? Pelo menos podermos nos ver olho no olho e o garfo não escapar do prato. _ Atirou um dos tios.
_ Bem, aqui é preciso redimensionar o consumo total da estrutura e subdividir em fases diferentes. É uma das soluções futuras. _ Respondeu, convicto de sua ciência um dos jovens que se formava em Electromecânica.
O relógio caminhava apressado e não tardaria, todos cantariam o Feliz Natal!
Foi naquele instante, vendo a nossa aflição, que a septuagenária decidiu apresentar o seu "Ás de trunfo".
_ Aqueles candeeiros de banca estão a acender e a casa tem vários. Vejam ainda se há bastantes tomadas aqui na sala e experimentem.
o é que a ideia da velha Argentina Ernesto funcionou?!
A experiência da idosa superou todos os diplomas e teorias da academia.

domingo, dezembro 22, 2024

IRLANDA E LEONILDE VOLTAM AO AL NUR

A primeira visita aconteceu a 9 de Novembro/24 e visou assinalar os 45 anos da Irlanda Salongue que contou com o apoio abnegado de sua prima Leonilde Lusitano.

Para a segunda visita, as primas benfeitoras, Irlanda Salongue Canhanga e Leo Lusitano Paulo, chegaram ao internato de rapazes "Al Nur" às 11horas, deste sábado, 21.12.24, para comemorar o Natal com os cerca de 60 rapazes, levando consigo almoço, lanche e mantimentos diversos.

Porém, depois do almoço que lhes foi oferecido e servido pelas beneficentes, os meninos e os seus tutores muçulmanos abandonaram os visitantes, recolhendo-se para fazer o Asr, a oração da tarde. 

Os "maometanos" oram cinco vezes ao dia, nomeadamente, ao amanhecer (Fajr), ao meio-dia (Dhuhr), à tarde (Asr), ao pôr do sol (Maghrib) e à noite (Isha).

Segundo os frequentadores desta religião monoteísta "cada uma dessas orações tem uma importância espiritual significativa e serve como um momento de conexão com Alah" e são feitas voltadas para Meca e incluem recitações do Alcorão.

Os muçulmanos que consideram "Jesus um profeta, mas não filho de Alah", não assinalam o Natal (data festiva dos cristãos), sendo o Ramadão a sua principal festa religiosa.

Em 2025, o Ramadão está previsto para começar ao entardecer de 28 de Fevereiro e terminar ao entardecer de 30 de Março.

Papá Ibrahim é o responsável do Lar Al Nur, em Viana, Rua da Sanzala, tutelado por uma organização pro-islamista.

Terminada a reza, reapareceram em peso para saborearem o bolo e os bolinhos e receberem, formalmente, a oferta que incluiu uma caixa de loiça de porcelana e talheres, dois balões de roupa de fardo, bolas de futebol, caixa de pasta dentífrica, arroz (75 kg), embalagens de guardanapos e papel higiénico, massa alimentar (4 cx), sabonete (cx) sabão em pó (300 pct), calçado, água, sumos, bolo de Natal, bolinhos, etc.

"Quem não agradece o pouco, não o faz em presença de muito", disse Ibrahim, o tutor dos meninos.

Se o trabalho altruísta e beneficente são de extrema valia, olho para a islamização silenciosa e galopante com alguma preocupação, pois um dia "poderemos acordar com o Islão" como religião predominante em Angola, tendo de arcar com todas as suas "(des)graças". No meu Lubolu dizia-se "quem avisa amigo é!"

quinta-feira, dezembro 19, 2024

NEM TUDO ANDA PERDIDO

Odiano Francisco vive no Zango IV, na via que nos leva à centralidade do Zango V (Ex- 8 mil), no chonhecido como Bairro da EPAL. 
Com experiência em oficina (reparação de molas de viaturas e motociclos) e outros serviços, Odiano leva a sua vida entre trabalho por conta de outrem e alguns "biscates", preferindo vender a sua força de trabalho a "mexer em coisa alheia". Mas, Odiano é também dotado de um grande sentimento e acção altruístas.

Cheguei a ele por via de um incidente de trânsito que um buraco "mortífero" e crescente me provocou (19.12.24) na via que liga a Estrada para o Kalumbu e o Zango V. Saindo da centralidade, quase a chegar à via Zango-Kalumbo, próximo do troço em que se juntam os dois sentidos (descendente e ascendente), há um buraco crescente, estreito, profundo (motivado pela chuva e descaso de quem devia cuidar dele) e com uns dois metros de cumprimento. A iluminação pública que enchia de gaudio os ocupantes das casas da Centralidade do Zango V e os moradores próximos deixou de existir. Ou fundiram as lâmpadas e não aparece ninguém para as repor ou, pior do que isso, ter-se-ão roubado os cabos que alimentam as luminárias. Só pode ser!

Tendo passado inadvertidamente pelo buraco, estoiraram, de uma só vez, dois pneumáticos da minha viatura, criando-me um grande embaraço, das 19 às 23h00. Tão logo o Odiano se apercebeu da ocorrência e da desgraça a que eu estava votado, encostou-se a mim, dando-me apoio e conforto. Aconteceu perto de sua casa e ele dirigia-se à busca da sua esposa que trabalha em uma pequena superfície próxima.

_ Kota, não te vou deixar aqui sozinho. A zona é escura e podem aparecer "garlas". _ Disse ele em forma introdutória, perante a minha incredulidade e desconfiança que foi dissipada pelo correr dos minutos, criando em mim confiança e segurança.

Contou um pouco se sua vida, suas lutas e pequenas conquistas. Limpou-me as lágrimas que me inundaram o coração e respondeu-me aos vários porquês que não exteriorizei.

_ Kota, uma vez, eu e o meu irmão saíamos da ilha e tivemos uma avaria. Era noite e não tínhamos meios para reparar a viatura. Recebemos apoio de pessoas que não conhecíamos. Eu penso que ajudar quem precisa é importante e pode criar fortes amizades. _ Explicou.

A chuva é "obra da natureza". A correcção dos estragos provocados pela acção da chuva sobre a obra humana e facilitadora da vida é tarefa de reservada a alguns.

_ Infelizmente, kota, aqui, esse não é primeiro carro que estoira pneus. São muitos e quase todos os dias. Sorte é que ainda ninguém despistou ou morreu. _ Disse Odiano, na tua jornada de consolo, terminada com um desafio:

_ O kota tem cara de possuir muitos conhecidos lá em cima. Pode só lhes mandar uma reclamação para ver se vêm tapar esses buracos da via da Centralidade? Assim se morrer pessoa vão vir lamentar?!

Mais não lhe disse. Ele falara por mim. Ajudei-o a lavar as mãos e a garganta que já ia ressequida de tanta fala e esforço em desmontar e montar 4 pneus, depois de aparecer o socorrista saído de Cacuaco com mais um pneumático suplente. Tivemos de combinar, dois a dois os pneus de uso permanente e os suplentes, o que nos levou igualmente a desmontar os dois sobrevivos.

Por tudo quanto disse e mostrou o Odiano, coadjuvado pelo esforçado e diligente Cardoso António, meu colaborador na Kam&mesa, tenho cada vez mais convicção de que as excepções existem e nem tudo (ainda) anda perdido!

domingo, dezembro 15, 2024

APROVEITANDO A CHUVA, PLANTANDO BATATA

As notícias desta semana, apontam algumas mortes feridos e desalojados como consequência da chuva em algumas cidades de Angola, sendo Luanda, Bengo e Benguela algumas reportadas pelos media. Pois é, enquanto a chuva é “amaldiçoada” por alguns citadinos, sobretudo em áreas com drenagem deficiente, ela é aplaudida pelos camponeses e agricultores que dela dependem para fazer os campos florescerem. Hoje, trago como anotações o plantio de batateira. A batateira quer produz batata-doce. Para início de conversa, importa anotar que há diferentes tipos de batata-doce, diferindo pela coloração, sabor, etc.

Em Angola, as regiões que mais produzem batata-doce incluem as províncias de Benguela, Uíge, Malanje, Cuanza-Sul, Moxico e Lunda Sul. Em Benguela, por exemplo, a produção de batata-doce tem aumentado significativamente nos últimos anos, especialmente na área de Dombe Grande. Todavia, é possível ter batata-doce em quase todo o país, incluindo Luanda, tendo em conta a fácil adaptabilidade da herbácea.

As espécies de batata-doce mais produzidas no nosso país são a Ipomoea batatas (batata-doce comum) e a Ipomoea batatas var. purpurea (batata-doce violeta), existindo outras.

A espécie Ipomoea batatas tem tubérculos de cor amarela ou laranja e é a mais comum. É conhecida por seu sabor doce e textura cremosa.  A Ipomoea batatas var. Purpurea tem tubérculos de cor violeta ou roxa e é menos comum. É conhecida por seu sabor mais intenso e alto teor de antocianina, um antioxidante.

A batata-doce é uma importante fonte de nutrientes e possui várias utilidades para o homem e animais domésticos:

Ela é rica em carboidratos, vitaminas (especialmente vitamina A e C) e minerais (como potássio e magnésio), sendo utilizada em uma variedade de pratos, desde sopas e saladas, purês, bolos, pães e sobremesas e ainda em panificação e confeitaria, especialmente em dietas sem glúten. Pode ser fermentada para produzir etanol, utilizado como biocombustível. Possui propriedades medicinais, como a redução da pressão arterial e a melhoria da digestão e contribui significativamente para a economia agrícola.

As folhas são comestíveis e podem ser cozidas como espinafre. São ricas em vitaminas A, C e K, além de minerais como ferro e cálcio. Servem ainda para forragem para Animais, sendo utilizadas como alimento nutritivo para gado bovino, cabras, porcos e outros animais. Possuem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias, ajudando na saúde em geral, podendo ainda ser usadas como cobertura vegetal para melhorar a qualidade do solo, aumentando a matéria orgânica e a retenção de humidade.

A batata-doce é também usada na indústria alimentícia como espessante e em outros produtos como adesivos e cosméticos.

Quanto ao melhor método de plantar batateira, aqui estão algumas dicas essenciais:

A batata-doce prefere solos arenosos e bem drenados. Evite solos pesados e argilosos; Antes de plantar, prepare o solo arando e remova as ervas daninhas. Adicione matéria orgânica para melhorar a fertilidade; plante as mudas de batata-doce em sulcos ou montes, com espaçamento de cerca de 30 cm entre plantas e 1 metro entre linhas; mantenha o solo húmido, especialmente durante o período de crescimento inicial. Todavia, evite o encharcamento.

Controlar as pragas e doenças é crucial. Geralmente, a batata-doce geralmente está pronta para a colheita entre 4 a 6 meses após o plantio, dependendo da variedade.

Em terrenos declivados, que deixam escorrer a água da chuva, esse é bom período para o plantio. Em terrenos alagados ou baixos, o melhor é esperar que a chuva diminua ou cesse.

domingo, dezembro 08, 2024

LAMENTOS TRAZIDOS PELA CHUVA

Em 1996, em Luanda, choveu aos cântaros. As ruas do Rangel e de outros bairros estavam literalmente inundadas e encharcadas, não havendo porções de terra firme e seca para se pôr os pés calçados em sapatos ou ténis. 

Como era "proibido faltar às aulas da Professora Gabriela Antunes (ALA, Inglês e Português), um jovem (de primeira caminhada) que estudava no IMEL e vivia no Rangel, Comite Njinga, decidiu calçar botas de chuva e fazer-se à escola. Para o seu espanto, em vez de os colegas se jogarem contra a administração que não cuidava do saneamento, atiraram-se, em estigas, contra o colega. Um fraco teria desistido de frequentar as aulas, mas ele, focado, seguiu o seu rumo.

"Chover é obra da natureza" e chove em todo o lado. Em outras paragens, a administração, através de trabalhos de engenharia hídrica, cuida de encaminhar as águas pluviais a córregos naturais e valas artificiais que as conduzem ao mar ou outros canais de recepção. Não acontecia no Rangel.

Em vez de se atacar o culpado pela situação de intransitabilidade nas ruas do Rangel e em outros bairros de então, atacou-se a vítima. E parece que procissão continua.

O jovem estigmatizado é hoje o Soberano Kanyanga

domingo, dezembro 01, 2024

HOJE VAI A ENTERRAR UM GÉNIO

(Rangel em Luto)

Os génios são raros e aparecem na vida das pessoas e das sociedades de forma esparsa. Cada génio o é no seu mundo (que pode ser grande ou circunscrito). O inventor da lâmpada foi um génio. Mozart também foi (ninguém tocava como ele no seu tempo cronológico e histórico), assim como quem (nascido no meio da pobreza) retira a família da indigência, dá dignidade e, acima de tudo, um nome reconhecido e respeitado pela sociedade. 

Nelson Ferreira Cabanga  enquadra-se nessa última descrição de génio. Todavia, a sua genialidade não se ficava por aí. Nos seus últimos anos, tinha se tornado em um exímio tocador de reco-reco, amante da música nacional de qualidade e vida intemporal (sempre acompanhada à dança), promotor de literatura no bar da sua Capirica (Pousada) e de convívios inter-amigos do e no Rangel, Sumbe e outras paradas. O Ngulu do Capirica era uma de suas marcas, para além da "Brand" NEFECA que era abreviatura de seus três nomes.

Ainda pequeno, no areal defronte ao antigo Supermercado Kiluanje (onde se acha hoje a Escola Ekwikwi II), Nelson destacou-se no trato com a bola, o que lhe fez ganhar a alcunha de Ndunguidi, por sinal, nome de um craque do futebol angolano de então e de todos os tempos. 

Pandy Santana, contemporâneo de Nelson Cabanga, recua ao "Ano da Formação de Quadros", 1979, e decreve o amigo de infância com quem conviveu mais de 45 anos:

"Um amigo do futebol com bolas de meias e sacos, das brincadeiras nocturnas à luz da Lua no nosso musseque Rangel. Já adolescente, Nelson deixou Luanda rumo a Ngunza Kabolo, Sumbe, onde ingressou no Instituto de Petróleo, formou-se engenheiro e construiu uma carreira exemplar, sempre pautada pelo brio e pela dedicação.

Mais que um profissional de sucesso, Nelson era um visionário, um empreendedor. No bairro, onde guardamos com alguma vaidade as nossas memórias da infância, criou o Capirica, um espaço que se tornou um marco no Rangel, ponto de encontro de gerações, amigos e de outras pessoas de pontos próximos da banda. Com este projecto, ele uniu pessoas e fomentou a cultura, o desporto e algumas iniciativas de solidariedade, marcando positivamente a vida de muitos.

Homem de família, Nelson edificou não apenas um legado profissional, mas também uma bela família, que agora carregará a sua memória como inspiração".

Quanto a mim, o primo Nelson, ultimamente "kota Cabanga", era o primo inspirador. Conheci-o apenas em 1989. Eu saído de férias do Lubolu e ele do Sumbe onde estudava no INP.

Ele era amigo de seus amigos e eu construindo ainda os meus poucos (da minha faixa) em Luanda. Havia, contudo, algo comum que era/é a escola. Quando, em 1992, ele terminou o ensino médio e começou a trabalhar em uma petrolífera francesa, perguntei-lhe que curso tinha feito e, em 1993, escolhi igualmente o de Geologia e Minas, no mesmo instituto que, entretanto, não cheguei a fazer. 

Lembro-me como hoje o dia em que fomos ao Kikolo (entre o Cemitério e a igreja católica) comprar os primeiros blocos com que construiu a casa para a família. Foi ele quem retirou os pais da casa de renda.

O tempo correu. Ele crescendo na indústria petrolífera e eu no jornalismo, fomos aprofundando a comunicação e os laços de parentesco. O nosso último plano era desenhar a árvore genealógica, aproveitando os poucos idosos que ainda nos restam. A empreitada fica pela metade. Algumas coisas estão anotadas e publicadas, mas falta o detalhe trazido por uma amena discussão. Quando me apresentou a Capirica, de novo o imitei e projectei a Kam&mesa.

_ Ó Nelson, tens de deixar que os parentes usem as instalações da Capirica sem pagar no mínimo metade dos custos. Tens salários e manutenção no fim de cada mês. _ Alertei ao me aperceber que cedera quartos para parentes que se deslocam ao Rangel.

_ Tens razão, primo, mas eles são nossos parentes e têm mais dificuldades do que nós. _ Respondeu-me. Corria o mês de Setembro e estávamos engajados em solucionar o funeral e pós-funeral de um nosso cunhado.

Chegou Outubro e a saúde do Nelson fraquejou.

_ Primo, estou avariado no cubico. A velha Maria está a cuidar de mim. _ Disse-me em mensagem no dia da independência.

_ O Nelson doente em casa e a tia Maria a cuidar dele só pode ser coisa leve. _ Pensei enganado.

Dias depois, mandou-me descrever fotos de nossos parentes já finados.

_ Primo reconheces?

_ Tio Ferreira (teu chará), tio Ernesto e avó Hebo. _ Anotei.

_ E o último? _ Indagou o Nelson Cabanga.

_ Este é o Moisés. Não precisei de descrever porque é de mais fresca memória. _ Expliquei, ao que ele concluiu:

_ Afinal és mesmo kota!

Conhecedor do seu mundo, vivendo e respirando o seu Rangel, Nelson foi autor de várias crónicas publicadas no seu mural de Facebook e algumas no Jornal Cultura, descrendo vivências no Rangel e Sumbe, sempre apimentadas com aspectos históricos e culturais.

Retomo o Pandy Santana para dizer que nenhum discurso nos ameniza a dor da perda do "kota Cabanga" que é grande. Todavia, "as suas conquistas e o seu exemplo permanecerão como testemunho de uma vida vivida com propósito e generosidade".

Os que ainda têm voz choram. 

Os que têm lágrimas lacrimejam. Os que têm força procuram levar o Nelson à sua última morada.

O Nelson era um homem de paz e com um coração que bombeou o altruísmo até ao último toque. Que o seu exemplo nos inspire, alivie o fardo da pobreza intelectual e material e amenize os nossos egos!

Até já, kota Cabanga!

Soberano Kanyanga, 01.12.24.