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sábado, novembro 08, 2025

THUNDA E WOMBE NA COSMOGONIA LUBOLENSE

Na infância, entre brincadeiras acompanhadas pelas mamãs e zeladoras — irmãs ou tias mais velhas — havia um momento especial que se repetia sempre que escavávamos a terra. De vez em quando, surgiam pequenos bichinhos esbranquiçados — cicada grub — que, ao serem tocados pela parte anterior, moviam a cabeça num vai-e-vem curioso. Era então que fazíamos a pergunta ritual: Kuthunda kubê, kuwombe kubê? — “Onde é Thunda e onde é Wombe?” Essa interrogação infantil, aparentemente lúdica, revela uma profunda cosmogonia enraizada na tradição Lubolense e Kisamense, marcada pela existência simbólica de dois polos: Thunda e Wombe.

Segundo Carlos Figueiredo, o termo Wombe remonta ao período da ocupação do território do actual Libolo pelos Kisamas, uma linhagem dos Mbundu que expulsou os povos San (Bosquímanos) e estabeleceu domínio sobre a região. Com o tempo, os próprios Quissamas foram desalojados por novos migrantes vindos de várias partes de Angola — Luanda, Malange, Kibala, Zâmbia, entre outras. Apesar das mudanças, o nome Wombe permaneceu como referência à terra ancestral, símbolo da fundação e da identidade cultural do povo libolense.


Na obra "Retratos do Libolo", Figueiredo descreve-o como um território marcado por forte resistência à colonização desde o século XVI, e por uma preservação notável de traços linguístico-culturais nativos, mesmo após a pacificação no século XX. Essa resistência prolongada permitiu que o território mantivesse uma estrutura social e simbólica própria, onde zonas como Wombe assumem papel central na memória e identidade local.

Embora o termo Thunda não apareça explicitamente na obra, a lógica histórica e cultural permite inferir a sua existência como zona complementar ou paralela a Wombe. Se Wombe representa o núcleo original, Thunda pode ser entendida como uma zona de expansão, uma linhagem paralela ou uma sub-região com identidade própria. Em narrativas orais e etnográficas, é comum que os territórios sejam divididos em zonas simbólicas — como “terra dos fundadores” versus “terra dos aliados ou descendentes” — e essa dualidade pode também estar associada a funções sociais distintas, como zonas de chefia, culto ou refúgio.

Para além da interpretação histórico-cultural que associa Wombe à terra ancestral e Thunda à zona de expansão, propõe-se aqui uma hipótese primária de natureza cosmogeográfica, baseada na orientação secular pelo sol — elemento fundamental na organização do tempo e do espaço pelas sociedades tradicionais.

Nesta leitura, Thunda corresponderia ao nascente (leste), ponto onde o sol emerge e inicia o ciclo diário da vida. É o lado da aurora, da origem, da fertilidade e da fundação. O termo Thunda, neste contexto, simboliza o princípio, o começo, o lugar onde tudo nasce — tanto no sentido físico quanto espiritual. É o lado da memória, da ancestralidade e da luz que revela.

Por oposição complementar, Wombe corresponderia ao poente (oeste), o lado onde o sol se recolhe e a sombra se alonga. Wombe seria o espaço da maturidade, da recolha, da sabedoria e do encerramento do ciclo. É o lado da introspecção, da chefia e da transcendência. Se Thunda é o ventre que gera, Wombe é o horizonte que acolhe e transforma.

Esta hipótese solar encontra respaldo nas práticas tradicionais de orientação, onde o nascer e o pôr do sol servem como referências primordiais para a localização, a marcação do tempo e a organização dos espaços rituais e sociais. A pergunta ritual “Kuthunda kubê, kuwombe kubê?” — feita diante dos bichinhos da terra — pode então ser vista como uma forma lúdica de introdução à cosmologia solar, ensinando às crianças a distinguir os polos do mundo e a situar-se nele.

Ademais, a Kisama, terra próxima e aparentada do Lubolu, tem o seu limite extremo o Oceano Atlântico que, no caso, é aonde o sol se põe. Os Kisamistas, assumindo-se como kamwombe, identificam-se com o polo do poente, o lado onde o dia se encerra e a luz se recolhe, reforçando a sua posição simbólica como guardiães da sabedoria, da chefia e da memória ancestral.

Assim, Thunda e Wombe não são apenas zonas geográficas ou linhagens históricas, mas também arquétipos solares, que estruturam a visão lubolense do mundo: o este como origem e o Oeste como destino, o claro e o escuro, o começo e o fim — numa dança eterna entre luz e sombra.

Carlos Figueiredo também destaca que o Libolo, por ter sido um dos principais pontos de resgate de escravos, contribuiu para a formação cultural e linguística do Brasil e da América Caraíba. Os traços do quimbundo falado como L1 em várias comunas do Libolo, e a forma como o português foi adquirido como L2, revelam uma cadeia de preservação cultural que atravessa o Atlântico.

A realização de estudos etnográficos locais e entrevistas com pessoas de terceira idade e autoridades tradicionais pode aprofundar esta relação simbólica e histórica, sendo que a memória oral, preservada nas brincadeiras, cantigas e provérbios, continua a ser uma fonte viva e legítima para compreender a cosmogonia Kisamense e Lubolense.

 


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