Em Calulo, na escola número três, ao Kassequel, Gonçalves da Silva era professor da primeira classe. Os alunos eram maioritariamente filhos de recuados (deslocados) da comuna de Kissongo e das redondezas, com domínio precário da língua que une o país, o português.
Gonçalves ensinava as ciências e a Língua da Nação. Estávamos no ano de 1988. A guerra apertava dia após dia. Os bens de consumo escasseavam e o lanche para os meninos, dias havia, semanas não, exceptuando-se aos filhos dos camaradas comissários e delegados municipais.
João Kaúia, de seu nome, aparentava oito anos e estava na primeira classe. Tinha um desafio duplo: aprender a língua que não sabia e enquadrar-se no seio dos demais colegas que o desdenhavam devido ao seu cantarolar que se parecia ao chilrear dos passarinhos. Parecia mesmo que imitava os pica-flores e os rabos-de-junco que cercavam a escola, naqueles tempos de voos fracassados do salalé. Porém, Kaúia era mais do que isso. Tinha saudades do amanhecer, das visitas às armadilhas e ratoeiras deixadas nas bermas das lavras e das pescas aos sábados e domingos, dias em que "não havia escola".
Na escola, enquanto se ensaiava nos primeiros termos da língua lusa, passava os recreios a solo ou em companhia de conterrâneos que com ele "kimbundavam" ao intervalo. Recordavam os idos tempos no Kissongo, ainda sem guerra, nem recuas, com fartura de mandioca, carne de caça e peixe no rio Kixikumuna. Kaúia e amigos viajavam, no intervalo, para a era dos bons tempos, do café madrugador da avó Kixibo, do milho assado da tia Kifunde e das brigas de afirmação que deixava os rapazes com a pele enrijecida e cheia de pequenas cicatrizes. Cada sinal no corpo tinha uma história. Eram essas histórias que cobriam o tempo de recreio.
Um dia, daqueles dias de muita ocupação do professor Goncha, em que era preciso passar a "pente fino" os cadernos, Kaúia adiantou-se na apresentação dos deveres ao professor. Era a forma de ganhar tempo para a repetição dos exercícios errados. Os primeiros a entregar os cadernos eram sempre os primeiros a recebê-los. Era já hora de recreio. Ao regressar à carteira, Kaúia enfia a mão debaixo da mesa e, debalde, nota que o seu farnel, um pedaço de bombó com ginguba, já lá não estavam. Os colegas tinham todos abandonado a sala e alguém se tinha aboletado do seu farnel.
Kaúia, banhado em lágrimas, queria explicar, mas palavras não tinha. O seu raciocínio era em Kimbundu que traduzia para o "pretuguês" em que engatinhava. Pensou explanar na língua que dominava, mas era proibida naquele recinto oficial. A língua da sua gente era apenas para o intervalo com os amigos da buala e na informalidade da aldeia da Banza de Calulo. Aflito, quase a fazer-se em pedaços, Kaúia encostou a metros da secretária do professor que, de óculos inclinados para os cadernos, simplesmente não ligava ao que se passava ao seu redor.
_ Camá pressor! chamava Kaúia.
_ Diga! Respondia o mestre.
_ Camá pressor,
_ Diga!
_ Camá pressor,
_ Diga!
À medida que o tempo passava, Kaúia mais se chateava da desatenção que lhe era brindada pelo mestre. O professor, por sua vez, julgando serem daquelas queixas miúdas, próprias dos alunos primários em tempo de intervalo, redobrava a atenção à correcção dos exercícios, até que o aluno reclamou:
- Oh! io uamba hanji digó-digó, mbomba iama anhana!*
* o mesmo que: oh! estás aí a dizer, diga, diga, o meu bombó foi roubado!
Na escola, enquanto se ensaiava nos primeiros termos da língua lusa, passava os recreios a solo ou em companhia de conterrâneos que com ele "kimbundavam" ao intervalo. Recordavam os idos tempos no Kissongo, ainda sem guerra, nem recuas, com fartura de mandioca, carne de caça e peixe no rio Kixikumuna. Kaúia e amigos viajavam, no intervalo, para a era dos bons tempos, do café madrugador da avó Kixibo, do milho assado da tia Kifunde e das brigas de afirmação que deixava os rapazes com a pele enrijecida e cheia de pequenas cicatrizes. Cada sinal no corpo tinha uma história. Eram essas histórias que cobriam o tempo de recreio.
Um dia, daqueles dias de muita ocupação do professor Goncha, em que era preciso passar a "pente fino" os cadernos, Kaúia adiantou-se na apresentação dos deveres ao professor. Era a forma de ganhar tempo para a repetição dos exercícios errados. Os primeiros a entregar os cadernos eram sempre os primeiros a recebê-los. Era já hora de recreio. Ao regressar à carteira, Kaúia enfia a mão debaixo da mesa e, debalde, nota que o seu farnel, um pedaço de bombó com ginguba, já lá não estavam. Os colegas tinham todos abandonado a sala e alguém se tinha aboletado do seu farnel.
Kaúia, banhado em lágrimas, queria explicar, mas palavras não tinha. O seu raciocínio era em Kimbundu que traduzia para o "pretuguês" em que engatinhava. Pensou explanar na língua que dominava, mas era proibida naquele recinto oficial. A língua da sua gente era apenas para o intervalo com os amigos da buala e na informalidade da aldeia da Banza de Calulo. Aflito, quase a fazer-se em pedaços, Kaúia encostou a metros da secretária do professor que, de óculos inclinados para os cadernos, simplesmente não ligava ao que se passava ao seu redor.
_ Camá pressor! chamava Kaúia.
_ Diga! Respondia o mestre.
_ Camá pressor,
_ Diga!
_ Camá pressor,
_ Diga!
À medida que o tempo passava, Kaúia mais se chateava da desatenção que lhe era brindada pelo mestre. O professor, por sua vez, julgando serem daquelas queixas miúdas, próprias dos alunos primários em tempo de intervalo, redobrava a atenção à correcção dos exercícios, até que o aluno reclamou:
- Oh! io uamba hanji digó-digó, mbomba iama anhana!*
* o mesmo que: oh! estás aí a dizer, diga, diga, o meu bombó foi roubado!
Luciano Canhanga
1 comentário:
Oi, Luciano.
O aprendizado nem sempre é algo prazeroso e tranquilo.
Fiquei imaginando essa criança tentando aprender algo necessário, mas ao mesmo tempo distante de sua realidade.
Gostei muito da forma como você narra o acontecido.
Gostei da iniciativa da criança.
Adoro ler contos c/ "sotaque" angolano. :)
Abraços.
Enviar um comentário