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segunda-feira, novembro 02, 2009

O INTERVALO DO PROFESSOR GONCHA

Em Calulo, na escola número três, ao Kassequel, Gonçalves da Silva era professor da primeira classe. Os alunos eram maioritariamente filhos de recuados (deslocados) da comuna de Kissongo e das redondezas, com domínio precário da língua que une o país, o português.

Gonçalves ensinava as ciências e a Língua da Nação. Estávamos no ano de 1988. A guerra apertava dia após dia. Os bens de consumo escasseavam e o lanche para os meninos, dias havia, semanas não, exceptuando-se aos filhos dos camaradas comissários e delegados municipais.

João Kaúia, de seu nome, aparentava oito anos e estava na primeira classe. Tinha um desafio duplo: aprender a língua que não sabia e enquadrar-se no seio dos demais colegas que o desdenhavam devido ao seu cantarolar que se parecia ao chilrear dos passarinhos. Parecia mesmo que imitava os pica-flores e os rabos-de-junco que cercavam a escola, naqueles tempos de voos fracassados do salalé. Porém, Kaúia era mais do que isso. Tinha saudades do amanhecer, das visitas às armadilhas e ratoeiras deixadas nas bermas das lavras e das pescas aos sábados e domingos, dias em que "não havia escola".

Na escola, enquanto se ensaiava nos primeiros termos da língua lusa, passava os recreios a solo ou em companhia de conterrâneos que com ele "kimbundavam" ao intervalo. Recordavam os idos tempos no Kissongo, ainda sem guerra, nem recuas, com fartura de mandioca, carne de caça e peixe no rio Kixikumuna. Kaúia e amigos viajavam, no intervalo, para a era dos bons tempos, do café madrugador da avó Kixibo, do milho assado da tia Kifunde e das brigas de afirmação que deixava os rapazes com a pele enrijecida e cheia de pequenas cicatrizes. Cada sinal no corpo tinha uma história. Eram essas histórias que cobriam o tempo de recreio.

Um dia, daqueles dias de muita ocupação do professor Goncha, em que era preciso passar a "pente fino" os cadernos, Kaúia adiantou-se na apresentação dos deveres ao professor. Era a forma de ganhar tempo para a repetição dos exercícios errados. Os primeiros a entregar os cadernos eram sempre os primeiros a recebê-los. Era já hora de recreio. Ao regressar à carteira, Kaúia enfia a mão debaixo da mesa e, debalde, nota que o seu farnel, um pedaço de bombó com ginguba, já lá não estavam. Os colegas tinham todos abandonado a sala e alguém se tinha aboletado do seu farnel.

Kaúia, banhado em lágrimas, queria explicar, mas palavras não tinha. O seu raciocínio era em Kimbundu que  traduzia para o "pretuguês" em que engatinhava. Pensou explanar na língua que dominava, mas era proibida naquele recinto oficial. A língua da sua gente era apenas para o intervalo com os amigos da buala e na informalidade da aldeia da Banza de Calulo. Aflito, quase a fazer-se em pedaços, Kaúia encostou a metros da secretária do professor que, de óculos inclinados para os cadernos, simplesmente não ligava ao que se passava ao seu redor.
_ Camá pressor! chamava Kaúia.
_ Diga! Respondia o mestre.
_ Camá pressor,
_  Diga!
_ Camá pressor,
_ Diga!

À medida que o tempo passava, Kaúia mais se chateava da desatenção que lhe era brindada pelo mestre. O professor, por sua vez, julgando serem daquelas queixas miúdas, próprias dos alunos primários em tempo de intervalo, redobrava a atenção à correcção dos exercícios, até que o aluno reclamou:

- Oh! io uamba hanji digó-digó, mbomba iama anhana!*
* o mesmo que: oh! estás aí a dizer, diga, diga, o meu bombó foi roubado!


Luciano Canhanga

1 comentário:

Val Du disse...

Oi, Luciano.

O aprendizado nem sempre é algo prazeroso e tranquilo.

Fiquei imaginando essa criança tentando aprender algo necessário, mas ao mesmo tempo distante de sua realidade.

Gostei muito da forma como você narra o acontecido.

Gostei da iniciativa da criança.

Adoro ler contos c/ "sotaque" angolano. :)

Abraços.