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sexta-feira, novembro 28, 2025

DE QUEM E PARA QUE SERVE O DINHEIRO DA IGREJA?

Numa busca básica ao "mundo cibernético" informei-me que "as catedrais e sedes paroquiais da Igreja Católica em Angola (ICA), entre o século XIX e século XX, foram construídas com uma combinação de materiais locais e importados. A arquitectura religiosa refletia tanto influências europeias quanto adaptações às condições locais, sendo os principais recursos utilizados: (i) Pedra e tijolo: nas cidades, utilizava-se pedra esculpida e tijolos cozidos, muitas vezes importados de Portugal ou produzidos localmente; (ii) Madeira: era um material essencial, especialmente para estruturas internas, telhados e portas. Muitas igrejas utilizavam madeira de árvores nativas, como o pau-ferro e o mogno; (iii) Argamassa e cal: cal era um elemento fundamental na construção, usada para unir tijolos e pedras. Muitas vezes, era produzida a partir de calcário local; (iv) Telhas cerâmicas: algumas igrejas tinham telhados cobertos com telhas de barro cozido, que eram importadas ou fabricadas em Angola; (v) Materiais decorativos: vitrais, altares esculpidos e imagens sacras eram frequentemente importados da Europa, especialmente de Portugal e Itália.

A construção era frequentemente financiada por missões religiosas, autoridades coloniais e doações da comunidade".
A Igreja Católica em Angola possui um patrimônio significativo, que inclui igrejas históricas, escolas, universidade, hospitais e centros comunitários. Segundo o wikipedia e o site jornaldoimobiliário, os bens da ICA incluem: (i) Imóveis e propriedades cuja titularidade a favor da Igreja Católica foi reconhecida oficialmente pelo governo angolano, incluindo escolas e centros de saúde que haviam sido confiscados durante a guerra, entre outros; (ii) Patrimônio cultural: Algumas missões católicas e monumentos, como o Cristo Rei na Huíla, foram classificados como património cultural de Angola; (iii) A Igreja Católica tem liberdade para evangelizar e administrar meios de comunicação, como rádios e publicações.
Além disso, há projectos de construção de novos templos, como a Basílica de Nossa Senhora da Muxima cuja empreitada, segundo o site da Diocese de Viana, será suportada pelo Governo angolano.
A minha relação com a ICA vem desde 1989/90, quando estive no internato de Kalulu (instalações dos salesianos de Don Bosco, confiscadas à data pelo Governo (devolvidas anos depois). Embora membro da Igreja Metodista Unida, desde 1984, recebi os sacramentos de baptismo e casamento em 2002 na ICA que foi prontamente reconhecido na IMUA.

Ora, convivi, na manhã de 20.04.25, com a Comunidade de São Miguel, pertencente à Paróquia de São Mateus, em Luanda, onde a minha homónima Luciana Martins foi baptizada. Chamou-me a atenção os níveis de pobreza material da comunidade, começando pelo espaço em construção suportada pela comunidade das cercanias da Vala "Katinton". Quando vi os crentes a fazerem oferendas em bens alimentares e "bebícios" ao padre que foi celebrar a missa e baptizar os petizes, fiquei a pensar seriamente em "a quem pertencem os bens da Católica e por que aquela comunidade não tem o suporte da estrutura central (rica) para erguer naquele espaço, frequentado por gente fervorosa, um edifício digno da sumptuosidade que é marca da ICA [basta ver os edifícios coloniais e alguns do pós-independência]. Fiquei também a pensar "por que razão, algumas paróquias ou edifícios como o Sé de Ondjiva foram suportados por dinheiro público"?

Há, a meu ver leigo, uma riqueza material e vida clerical que deve estar a contrastar com a vida arrojada de muitos que depositam suas parcas moedas em nome da "salvação".
Entre espantos, outro factor que despertou a minha atenção foi a quantidade de acólitos que acompanham a regência da missa, assim como a distribuição de tarefas que executam no tempo certo. É um bom exemplo de treinamento contínuo, coordenação e execução ordeira.

sábado, novembro 22, 2025

INOVAÇÃO POPULAR NO COMÉRCIO AMBULANTE

 Por: Luciano Canhanga*


Em Luanda, capital da República de Angola, as zungueiras — termo da língua ambundu que designa vendedeiras ambulantes — têm revelado engenho e capacidade de adaptação ao mercado, mesmo sem formação académica especializada.
Tradicionalmente, estas senhoras percorriam as ruas em grupo, em silêncio ou com pregões ocasionais, repartindo os clientes em vez de os disputar com arte e astúcia. Tal prática, embora solidária, mostrava-se pouco eficaz em termos de venda.
Reconhecendo a necessidade de mudança, algumas zungueiras decidiram gravar mensagens promocionais que são difundidas por meio de megafones. Esta solução evita o cansaço da voz e permite maior alcance auditivo. Em acto contínuo, passaram a caminhar sozinhas ou acompanhadas de colegas que vendem produtos distintos, evitando concorrência directa e promovendo complementaridade comercial.
Trata-se de uma verdadeira inovação marketista fora dos muros da academia, nascida da observação empírica e da inteligência prática. O fenómeno pode ser compreendido à luz do pensamento de Philip Kotler, que defende que o marketing não se limita à publicidade, mas envolve a criação de valor e adaptação ao consumidor. Também Seth Godin, ao abordar o marketing de permissão e a autenticidade, valoriza práticas que emergem da realidade concreta e da escuta activa do público.
Eis o pregão da mamã zungueira que vende gelado, refrescando os petizes em dias solarengos de Luanda, enquanto percorre as ruas, de aduela em aduela e de esquina em esquina:
_ O gelado kuya;
De laranja kuya:
De banana kuya;
De morango kuya.
Papá me mima só, gelado está a passar;
Mamã me mima só, gelado está a passar; Avó me mima só, gelado está a passar!
Este exemplo revela que a ausência de escolaridade formal não equivale à ausência de inteligência ou de capacidade inventiva. As zungueiras, com criatividade e sentido prático, reinventam o comércio popular urbano e contribuem para a economia local com soluções originais e eficazes.
Autores como Guy Kawasaki, ao falar sobre o espírito empreendedor, e Alvin Toffler, que em A Terceira Onda valoriza o saber prático como motor de transformação social, ajudam a compreender que a inovação não é monopólio das instituições formais. Também Carolina Schmitt Nunes e Gertrudes Dandolini, ao estudarem práticas de marketing em contextos não convencionais, reforçam a legitimidade destas estratégias emergentes.
As zungueiras de Luanda, com megafone em punho e criatividade em marcha, são exemplo vivo de como o pensamento estratégico pode florescer nas margens da academia, com impacto directo na vida urbana e no consumo quotidiano.
=
*Graduado em Comunicação Social e MSc em Ciências Empresariais

segunda-feira, novembro 17, 2025

NASCER É BÊNÇÃO, TER FILHOS É FESTA

Na aldeia de Kuteka, regedoria da Munenga, e cercanias havia uma canção de contentamento entoada pelas mães cujos filhos, caçadores ou viajantes, regressavam com ofertas: panos, sabão, carne de caça, peixe do Rio Longa, utensílios domésticos e outros bens. Em gesto de júbilo, cantavam:

_  Ukita kwawaba, yoso iza ngo!  

(É bom nascer, tudo vem de oferta!)


Essa expressão musical, carregada de afecto e reconhecimento, era reservada às mães agraciadas pela maternidade e pela generosidade dos filhos. Outras mulheres, não bafejadas pela maternidade ou cujos filhos ainda não haviam saído do "círculo da saia" maternal, não podiam evocar a mesma canção, embora se rejubilassem com a sorte das suas coetâneas e o sucesso dos seus descendentes.

Tenho estado a reflectir sobre a alegria profunda que sente uma mãe amada e amparada materialmente pelos filhos. É uma forma de gratidão que transcende o gesto e se inscreve na memória afectiva da família.

Tenho procurado fazer a minha parte, esperando que os meus descendentes — que têm acompanhado o meu esforço — façam, quando a vez chegar, a sua parte.


_Ukita kwawaba. Yoso iza ngo!

terça-feira, novembro 11, 2025

VIVENDO OS 50º DA INDEPENDENCIA

Há meio século, sob o troar de canhões a norte e sul de Luanda, o saudoso Dr. Agostinho Neto proclamava a Independência de Angola. Eu, então com apenas um ano de idade, começava a viver, em paralelo com a pátria, os primeiros passos de uma história comum, marcada por lutas, esperança e (re)construção.

Hoje, 11 de Novembro de 2025, celebro com júbilo os 50 anos de Angola independente, menos um do que a minha idade, mas igual em profundidade à minha memória afectiva. Recordo com emoção o desfile de há dez anos, quando, como figurante na Praça da República, vivi intensamente os 40 anos da nossa liberdade. Hoje, volto a estar presente como cidadão e testemunha viva da travessia nacional.
São cinco décadas de afirmação, de passos firmes entre pedras e flores, de vozes que se ergueram e de silêncios que também falaram. Angola cresceu e com ela cresci. A cada aniversário, renova-se o pacto entre o povo e a sua história, entre o sonho e a realidade que construímos juntos.

Neste dia maior, presto homenagem aos que tombaram, aos que resistiram, aos que governaram/governam e aos que, como eu, viveram Angola com o coração inteiro. Que os próximos cinquenta anos sejam de paz, justiça e prosperidade, com memória, com verdade e com a dignidade que nos foi legada.
Viva Angola!
Viva a Independência!
Viva o povo soberano!

sábado, novembro 08, 2025

THUNDA E WOMBE NA COSMOGONIA LUBOLENSE

Na infância, entre brincadeiras acompanhadas pelas mamãs e zeladoras — irmãs ou tias mais velhas — havia um momento especial que se repetia sempre que escavávamos a terra. De vez em quando, surgiam pequenos bichinhos esbranquiçados — cicada grub — que, ao serem tocados pela parte anterior, moviam a cabeça num vai-e-vem curioso. Era então que fazíamos a pergunta ritual: Kuthunda kubê, kuwombe kubê? — “Onde é Thunda e onde é Wombe?” Essa interrogação infantil, aparentemente lúdica, revela uma profunda cosmogonia enraizada na tradição Lubolense e Kisamense, marcada pela existência simbólica de dois polos: Thunda e Wombe.

Segundo Carlos Figueiredo, o termo Wombe remonta ao período da ocupação do território do actual Libolo pelos Kisamas, uma linhagem dos Mbundu que expulsou os povos San (Bosquímanos) e estabeleceu domínio sobre a região. Com o tempo, os próprios Quissamas foram desalojados por novos migrantes vindos de várias partes de Angola — Luanda, Malange, Kibala, Zâmbia, entre outras. Apesar das mudanças, o nome Wombe permaneceu como referência à terra ancestral, símbolo da fundação e da identidade cultural do povo libolense.


Na obra "Retratos do Libolo", Figueiredo descreve-o como um território marcado por forte resistência à colonização desde o século XVI, e por uma preservação notável de traços linguístico-culturais nativos, mesmo após a pacificação no século XX. Essa resistência prolongada permitiu que o território mantivesse uma estrutura social e simbólica própria, onde zonas como Wombe assumem papel central na memória e identidade local.

Embora o termo Thunda não apareça explicitamente na obra, a lógica histórica e cultural permite inferir a sua existência como zona complementar ou paralela a Wombe. Se Wombe representa o núcleo original, Thunda pode ser entendida como uma zona de expansão, uma linhagem paralela ou uma sub-região com identidade própria. Em narrativas orais e etnográficas, é comum que os territórios sejam divididos em zonas simbólicas — como “terra dos fundadores” versus “terra dos aliados ou descendentes” — e essa dualidade pode também estar associada a funções sociais distintas, como zonas de chefia, culto ou refúgio.

Para além da interpretação histórico-cultural que associa Wombe à terra ancestral e Thunda à zona de expansão, propõe-se aqui uma hipótese primária de natureza cosmogeográfica, baseada na orientação secular pelo sol — elemento fundamental na organização do tempo e do espaço pelas sociedades tradicionais.

Nesta leitura, Thunda corresponderia ao nascente (leste), ponto onde o sol emerge e inicia o ciclo diário da vida. É o lado da aurora, da origem, da fertilidade e da fundação. O termo Thunda, neste contexto, simboliza o princípio, o começo, o lugar onde tudo nasce — tanto no sentido físico quanto espiritual. É o lado da memória, da ancestralidade e da luz que revela.

Por oposição complementar, Wombe corresponderia ao poente (oeste), o lado onde o sol se recolhe e a sombra se alonga. Wombe seria o espaço da maturidade, da recolha, da sabedoria e do encerramento do ciclo. É o lado da introspecção, da chefia e da transcendência. Se Thunda é o ventre que gera, Wombe é o horizonte que acolhe e transforma.

Esta hipótese solar encontra respaldo nas práticas tradicionais de orientação, onde o nascer e o pôr do sol servem como referências primordiais para a localização, a marcação do tempo e a organização dos espaços rituais e sociais. A pergunta ritual “Kuthunda kubê, kuwombe kubê?” — feita diante dos bichinhos da terra — pode então ser vista como uma forma lúdica de introdução à cosmologia solar, ensinando às crianças a distinguir os polos do mundo e a situar-se nele.

Ademais, a Kisama, terra próxima e aparentada do Lubolu, tem o seu limite extremo o Oceano Atlântico que, no caso, é aonde o sol se põe. Os Kisamistas, assumindo-se como kamwombe, identificam-se com o polo do poente, o lado onde o dia se encerra e a luz se recolhe, reforçando a sua posição simbólica como guardiães da sabedoria, da chefia e da memória ancestral.

Assim, Thunda e Wombe não são apenas zonas geográficas ou linhagens históricas, mas também arquétipos solares, que estruturam a visão lubolense do mundo: o este como origem e o Oeste como destino, o claro e o escuro, o começo e o fim — numa dança eterna entre luz e sombra.

Carlos Figueiredo também destaca que o Libolo, por ter sido um dos principais pontos de resgate de escravos, contribuiu para a formação cultural e linguística do Brasil e da América Caraíba. Os traços do quimbundo falado como L1 em várias comunas do Libolo, e a forma como o português foi adquirido como L2, revelam uma cadeia de preservação cultural que atravessa o Atlântico.

A realização de estudos etnográficos locais e entrevistas com pessoas de terceira idade e autoridades tradicionais pode aprofundar esta relação simbólica e histórica, sendo que a memória oral, preservada nas brincadeiras, cantigas e provérbios, continua a ser uma fonte viva e legítima para compreender a cosmogonia Kisamense e Lubolense.

 


quarta-feira, novembro 05, 2025

MEMÓRIAS DE KUTEKA E PEDRA ESCRITA

A 25.01.25, cruzei, próximo da aldeia de Pedra Escrita, com uma parente que não conhecia. É neta ou bisneta do "Velo Xingwenda" [Velho Cinquenta], parente da minha mãe.

Quando me foi apresentada pelo mano Gonçalves Manuel Carlos, recorremos à árvore genealógica para nos situarmos e, mesmo nunca me ter visto antes, quando se apercebeu que eu era filho da "avó Maria Canhanga", começou a recitar uma música dos tempos de xilimina [folguedos] dos anos 90 do século 20 e que fazia alusão a mim.

"Kajila bera mwitutu twazeketu (3x)"[Passarinho diga, vamos pernoitar no ninho].

Em menos de 3 meses, na aldeia de Mbango yo'Teka, foquei imortalizado e recordado por pessoas que nasceram décadas depois de eu ter por lá passado, de Janeiro a Março de 1990, fugido da Unita que me correra de Kalulu e, semana depois, da aldeia de Pedra Escrita.

A jovem, parecendo minha mais velha (eu cinquentão e ela na casa de 30), lavava roupa, depois de ter preparado e posto a secar o bombó à beira da EN120. Eu, o mano Gonçalves, o Nelo e Páscoa fomos colher canas. A caminho da "kitaka" [horta] vi duas árvores que, na minha terra, atraem borboletas que nelas nidificam, surgindo, depois, os "mabuka" ou "katatu": uma é "munzaza" e outra, de folhas alargadas e em formato de coração dobrado em duas lâminas, é "ndolo".

Veio-me à mente outra canção do "xilimina" dos anos noventa:
"Moça mu kyaña ndolo, moça
mu kyaña ndolo, mu kyaña ndolo we sosó lyamutema bwengi"
[a moça, de tanto colher e usar lenha de ndolo, a fagulha atingiu-lhe a zona nevrálgica"].

Na verdade, a palavra, aqui convertida em "nevrálgica" é um impropério. Só os jovens embriagados de kapuka ou lyambados cantavam essa versão ao lado de adultos. O dislate era sempre substituído por um termo não agressivo.

Naquele tempo das rusgas e raptos [rusgas de jovens abrangidos ou não para o serviço militar obrigatório e raptos da unita], o que se cantava era a saudade dos que tinham partido e que deles não se tinha notícias e a reinvenção das vidas para enfrentar os dias duros de futuro imprevisível. E assim, enquanto se metaforizava nas canções como "sambwa li sambwa obuji yatena moye" [entre duas elevações/lados o obus atingiu uma palmeira], também se cantava a saudade dos que tinham sido levados pela sorte madrasta e dizia-se "Kisasa kumbi otoka, bukanga twazeketu" [Quando Kisasa regressar vamos pernoitar fora de casa, a conversar, cantar e contar coisas nossas].

As letras eram curtas e repetitivas, mas com sentido e alcance muito longos.
"Bwahila Toy inyungu ibiloka!" [Onde morreu o Toy os abutres estão às voltas para debicar os seus restos].
Debois de kitotas, a presença de abutres em algum lugar era indicadora da existência, por perto, de um cadáver (humano ou de outro animal qualquer).
Os inválidos, os envergonhados, os tímidos e toda a sociedade, individual ou colectivamente, também eram "personagens" das letras das canções que, muitas vezes, mudavam apenas a estória, mantendo a melodia e o tilintar do tambor e do bujão.

"Nange, nange, Xoxombo wombela, wombela, Xoxombo nange, nange katé okyo wombela" [De tanta solidão, causada pela timidez em desfiar o rosário a uma jovem, Xoxombo teve de recorrer ao estupro].
Assim era o cancioneiro popular com história e estórias fundadas no longo percurso da sociedade e nos anseios transformadores do amanhã.

sábado, novembro 01, 2025

"PIÔ-PIÔ” DE BONGA: ENTRELAÇAMENTO LINGUÍSTICO, NEOLOGISMOS E MEMÓRIA INFANTIL NA RNA

O programa “Piô-Piô”, da Rádio Nacional de Angola (RNA), foi um dos mais emblemáticos espaços dedicados à infância angolana nas décadas de 1970 e 1980. Com forte componente comunitária e educativa, era realizado em diferentes zonas do país, envolvendo os miúdos locais em concursos como dança das cadeiras, lançamento de bola ao cesto, música, anedotas e outras actividades lúdicas. Em cada edição, as crianças cantavam, brincavam e aprendiam, tornando o programa um verdadeiro palco de expressão cultural e formação cívica.

O indicativo oficial do programa — com a letra “Piô-Piô, da Rádio Nacional, é para aprender e para brincar. Ordem, educação, disciplina na nossa diversão...” — foi escrito por Rui de Carvalho, musicado por Henrique, professor de música, e interpretado por Dionísio Rocha. Esta composição tornou-se o hino da infância radiofónica angolana, ecoando nos lares e nas ruas com entusiasmo e afecto.

Mais tarde, Barcelô de Carvalho “Bonga” foi convidado pela RNA a compor uma música dedicada ao programa e às crianças de Angola. Surge então “Kyalumingu Kimenemene”, uma canção que celebra a infância, a oralidade e os afectos comunitários. Bonga lançou a música no Largo do Kinaxixi e voltou a cantá-la no show realizado na Mutamba, reforçando o vínculo entre arte, infância e memória colectiva.

ENTRE ONOMATOPEIA E IDEOLOGIA

O termo “Piô-Piô” carrega múltiplas camadas de significado:
- Por onomatopeia, representa o som dos pintainhos — uma imagem doce e infantil.
- Por referência histórica, “Piô” era também o diminutivo de “pioneiros”, nome dado às crianças no tempo de partido único em Angola, quando a educação e os meios de comunicação tinham forte orientação ideológica.

A escolha da música como indicativo reforça essa ligação entre infância, formação cívica e identidade nacional. Num tempo em que havia apenas uma rádio — a nacional — os programas etários eram seguidos com atenção quase religiosa pelos seus destinatários. Foi o caso de muitos, eu incluído.

ENTRELAÇAMENTO LINGUÍSTICO: PORTUGUÊS E KIMBUNDU

A letra da canção de Bonga é um exemplo vibrante de entrelaçamento entre o português e o Kimbundu, revelando uma Angola urbana, viva e multilingue. Bonga canta:

“Sukula depressa o kisuku / pregozinho no pescoço / matabicho não kanjonja / piô-piô stá te chamar.”  
“Kyalumingu kimenemene! Piô-piô. Dondim tem mabute / Mãe foi no Piô-piô...”

Esses versos misturam línguas e códigos culturais, criando uma linguagem híbrida que ressoa com o quotidiano dos ouvintes.

NEOLOGISMOS E GÍRIAS: ORALIDADE CRIATIVA

A canção é rica em termos que emergem da oralidade popular, revelando práticas e hábitos locais:

Palavra/Expressão| Significado em português                    

Kusukula | Lavar, arrumar    
Kisuku | Cozinha                      
Matabicho | Pequeno-almoço (neologismo: “matar o bicho”)
Kanjonjar | Comer aos bocados, lentamente                
Kifwa kya iba | Mau hábito    
Kyalumingu kimenemene | Aos domingos, de manhã ou manhã cedo               
Mabute | Ferida crónica
                                        
Essas expressões não apenas enriquecem o vocabulário, mas também funcionam como marcadores culturais e afectivos. São termos que circulam entre gerações, carregando significados que vão além da tradução literal.

MÚSICA COMO DOCUMENTO GERACIONAL

Para quem viveu a infância nos anos 1980, “Piô-Piô” não é apenas uma canção — é um documento sonoro da memória colectiva. A música, ao ser usada como indicativo pela RNA, tornou-se parte da rotina emocional de milhares de crianças, que se reconheciam na linguagem, no ritmo e na melodia.

Mais tarde, para alguns, essa escuta atenta evoluiu para uma relação profissional com a rádio, como foi o meu caso, tornando-me radialista na LAC. A música, portanto, não apenas marca uma época — ela forma e transforma.