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segunda-feira, novembro 17, 2025

NASCER É BÊNÇÃO, TER FILHOS É FESTA

Na aldeia de Kuteka, regedoria da Munenga, e cercanias havia uma canção de contentamento entoada pelas mães cujos filhos, caçadores ou viajantes, regressavam com ofertas: panos, sabão, carne de caça, peixe do Rio Longa, utensílios domésticos e outros bens. Em gesto de júbilo, cantavam:

_  Ukita kwawaba, yoso iza ngo!  

(É bom nascer, tudo vem de oferta!)


Essa expressão musical, carregada de afecto e reconhecimento, era reservada às mães agraciadas pela maternidade e pela generosidade dos filhos. Outras mulheres, não bafejadas pela maternidade ou cujos filhos ainda não haviam saído do "círculo da saia" maternal, não podiam evocar a mesma canção, embora se rejubilassem com a sorte das suas coetâneas e o sucesso dos seus descendentes.

Tenho estado a reflectir sobre a alegria profunda que sente uma mãe amada e amparada materialmente pelos filhos. É uma forma de gratidão que transcende o gesto e se inscreve na memória afectiva da família.

Tenho procurado fazer a minha parte, esperando que os meus descendentes — que têm acompanhado o meu esforço — façam, quando a vez chegar, a sua parte.


_Ukita kwawaba. Yoso iza ngo!

terça-feira, novembro 11, 2025

VIVENDO OS 50º DA INDEPENDENCIA

Há meio século, sob o troar de canhões a norte e sul de Luanda, o saudoso Dr. Agostinho Neto proclamava a Independência de Angola. Eu, então com apenas um ano de idade, começava a viver, em paralelo com a pátria, os primeiros passos de uma história comum, marcada por lutas, esperança e (re)construção.

Hoje, 11 de Novembro de 2025, celebro com júbilo os 50 anos de Angola independente, menos um do que a minha idade, mas igual em profundidade à minha memória afectiva. Recordo com emoção o desfile de há dez anos, quando, como figurante na Praça da República, vivi intensamente os 40 anos da nossa liberdade. Hoje, volto a estar presente como cidadão e testemunha viva da travessia nacional.
São cinco décadas de afirmação, de passos firmes entre pedras e flores, de vozes que se ergueram e de silêncios que também falaram. Angola cresceu e com ela cresci. A cada aniversário, renova-se o pacto entre o povo e a sua história, entre o sonho e a realidade que construímos juntos.

Neste dia maior, presto homenagem aos que tombaram, aos que resistiram, aos que governaram/governam e aos que, como eu, viveram Angola com o coração inteiro. Que os próximos cinquenta anos sejam de paz, justiça e prosperidade, com memória, com verdade e com a dignidade que nos foi legada.
Viva Angola!
Viva a Independência!
Viva o povo soberano!

sábado, novembro 08, 2025

THUNDA E WOMBE NA COSMOGONIA LUBOLENSE

Na infância, entre brincadeiras acompanhadas pelas mamãs e zeladoras — irmãs ou tias mais velhas — havia um momento especial que se repetia sempre que escavávamos a terra. De vez em quando, surgiam pequenos bichinhos esbranquiçados — cicada grub — que, ao serem tocados pela parte anterior, moviam a cabeça num vai-e-vem curioso. Era então que fazíamos a pergunta ritual: Kuthunda kubê, kuwombe kubê? — “Onde é Thunda e onde é Wombe?” Essa interrogação infantil, aparentemente lúdica, revela uma profunda cosmogonia enraizada na tradição Lubolense e Kisamense, marcada pela existência simbólica de dois polos: Thunda e Wombe.

Segundo Carlos Figueiredo, o termo Wombe remonta ao período da ocupação do território do actual Libolo pelos Kisamas, uma linhagem dos Mbundu que expulsou os povos San (Bosquímanos) e estabeleceu domínio sobre a região. Com o tempo, os próprios Quissamas foram desalojados por novos migrantes vindos de várias partes de Angola — Luanda, Malange, Kibala, Zâmbia, entre outras. Apesar das mudanças, o nome Wombe permaneceu como referência à terra ancestral, símbolo da fundação e da identidade cultural do povo libolense.


Na obra "Retratos do Libolo", Figueiredo descreve-o como um território marcado por forte resistência à colonização desde o século XVI, e por uma preservação notável de traços linguístico-culturais nativos, mesmo após a pacificação no século XX. Essa resistência prolongada permitiu que o território mantivesse uma estrutura social e simbólica própria, onde zonas como Wombe assumem papel central na memória e identidade local.

Embora o termo Thunda não apareça explicitamente na obra, a lógica histórica e cultural permite inferir a sua existência como zona complementar ou paralela a Wombe. Se Wombe representa o núcleo original, Thunda pode ser entendida como uma zona de expansão, uma linhagem paralela ou uma sub-região com identidade própria. Em narrativas orais e etnográficas, é comum que os territórios sejam divididos em zonas simbólicas — como “terra dos fundadores” versus “terra dos aliados ou descendentes” — e essa dualidade pode também estar associada a funções sociais distintas, como zonas de chefia, culto ou refúgio.

Para além da interpretação histórico-cultural que associa Wombe à terra ancestral e Thunda à zona de expansão, propõe-se aqui uma hipótese primária de natureza cosmogeográfica, baseada na orientação secular pelo sol — elemento fundamental na organização do tempo e do espaço pelas sociedades tradicionais.

Nesta leitura, Thunda corresponderia ao nascente (leste), ponto onde o sol emerge e inicia o ciclo diário da vida. É o lado da aurora, da origem, da fertilidade e da fundação. O termo Thunda, neste contexto, simboliza o princípio, o começo, o lugar onde tudo nasce — tanto no sentido físico quanto espiritual. É o lado da memória, da ancestralidade e da luz que revela.

Por oposição complementar, Wombe corresponderia ao poente (oeste), o lado onde o sol se recolhe e a sombra se alonga. Wombe seria o espaço da maturidade, da recolha, da sabedoria e do encerramento do ciclo. É o lado da introspecção, da chefia e da transcendência. Se Thunda é o ventre que gera, Wombe é o horizonte que acolhe e transforma.

Esta hipótese solar encontra respaldo nas práticas tradicionais de orientação, onde o nascer e o pôr do sol servem como referências primordiais para a localização, a marcação do tempo e a organização dos espaços rituais e sociais. A pergunta ritual “Kuthunda kubê, kuwombe kubê?” — feita diante dos bichinhos da terra — pode então ser vista como uma forma lúdica de introdução à cosmologia solar, ensinando às crianças a distinguir os polos do mundo e a situar-se nele.

Ademais, a Kisama, terra próxima e aparentada do Lubolu, tem o seu limite extremo o Oceano Atlântico que, no caso, é aonde o sol se põe. Os Kisamistas, assumindo-se como kamwombe, identificam-se com o polo do poente, o lado onde o dia se encerra e a luz se recolhe, reforçando a sua posição simbólica como guardiães da sabedoria, da chefia e da memória ancestral.

Assim, Thunda e Wombe não são apenas zonas geográficas ou linhagens históricas, mas também arquétipos solares, que estruturam a visão lubolense do mundo: o este como origem e o Oeste como destino, o claro e o escuro, o começo e o fim — numa dança eterna entre luz e sombra.

Carlos Figueiredo também destaca que o Libolo, por ter sido um dos principais pontos de resgate de escravos, contribuiu para a formação cultural e linguística do Brasil e da América Caraíba. Os traços do quimbundo falado como L1 em várias comunas do Libolo, e a forma como o português foi adquirido como L2, revelam uma cadeia de preservação cultural que atravessa o Atlântico.

A realização de estudos etnográficos locais e entrevistas com pessoas de terceira idade e autoridades tradicionais pode aprofundar esta relação simbólica e histórica, sendo que a memória oral, preservada nas brincadeiras, cantigas e provérbios, continua a ser uma fonte viva e legítima para compreender a cosmogonia Kisamense e Lubolense.

 


quarta-feira, novembro 05, 2025

MEMÓRIAS DE KUTEKA E PEDRA ESCRITA

A 25.01.25, cruzei, próximo da aldeia de Pedra Escrita, com uma parente que não conhecia. É neta ou bisneta do "Velo Xingwenda" [Velho Cinquenta], parente da minha mãe.

Quando me foi apresentada pelo mano Gonçalves Manuel Carlos, recorremos à árvore genealógica para nos situarmos e, mesmo nunca me ter visto antes, quando se apercebeu que eu era filho da "avó Maria Canhanga", começou a recitar uma música dos tempos de xilimina [folguedos] dos anos 90 do século 20 e que fazia alusão a mim.

"Kajila bera mwitutu twazeketu (3x)"[Passarinho diga, vamos pernoitar no ninho].

Em menos de 3 meses, na aldeia de Mbango yo'Teka, foquei imortalizado e recordado por pessoas que nasceram décadas depois de eu ter por lá passado, de Janeiro a Março de 1990, fugido da Unita que me correra de Kalulu e, semana depois, da aldeia de Pedra Escrita.

A jovem, parecendo minha mais velha (eu cinquentão e ela na casa de 30), lavava roupa, depois de ter preparado e posto a secar o bombó à beira da EN120. Eu, o mano Gonçalves, o Nelo e Páscoa fomos colher canas. A caminho da "kitaka" [horta] vi duas árvores que, na minha terra, atraem borboletas que nelas nidificam, surgindo, depois, os "mabuka" ou "katatu": uma é "munzaza" e outra, de folhas alargadas e em formato de coração dobrado em duas lâminas, é "ndolo".

Veio-me à mente outra canção do "xilimina" dos anos noventa:
"Moça mu kyaña ndolo, moça
mu kyaña ndolo, mu kyaña ndolo we sosó lyamutema bwengi"
[a moça, de tanto colher e usar lenha de ndolo, a fagulha atingiu-lhe a zona nevrálgica"].

Na verdade, a palavra, aqui convertida em "nevrálgica" é um impropério. Só os jovens embriagados de kapuka ou lyambados cantavam essa versão ao lado de adultos. O dislate era sempre substituído por um termo não agressivo.

Naquele tempo das rusgas e raptos [rusgas de jovens abrangidos ou não para o serviço militar obrigatório e raptos da unita], o que se cantava era a saudade dos que tinham partido e que deles não se tinha notícias e a reinvenção das vidas para enfrentar os dias duros de futuro imprevisível. E assim, enquanto se metaforizava nas canções como "sambwa li sambwa obuji yatena moye" [entre duas elevações/lados o obus atingiu uma palmeira], também se cantava a saudade dos que tinham sido levados pela sorte madrasta e dizia-se "Kisasa kumbi otoka, bukanga twazeketu" [Quando Kisasa regressar vamos pernoitar fora de casa, a conversar, cantar e contar coisas nossas].

As letras eram curtas e repetitivas, mas com sentido e alcance muito longos.
"Bwahila Toy inyungu ibiloka!" [Onde morreu o Toy os abutres estão às voltas para debicar os seus restos].
Debois de kitotas, a presença de abutres em algum lugar era indicadora da existência, por perto, de um cadáver (humano ou de outro animal qualquer).
Os inválidos, os envergonhados, os tímidos e toda a sociedade, individual ou colectivamente, também eram "personagens" das letras das canções que, muitas vezes, mudavam apenas a estória, mantendo a melodia e o tilintar do tambor e do bujão.

"Nange, nange, Xoxombo wombela, wombela, Xoxombo nange, nange katé okyo wombela" [De tanta solidão, causada pela timidez em desfiar o rosário a uma jovem, Xoxombo teve de recorrer ao estupro].
Assim era o cancioneiro popular com história e estórias fundadas no longo percurso da sociedade e nos anseios transformadores do amanhã.

sábado, novembro 01, 2025

"PIÔ-PIÔ” DE BONGA: ENTRELAÇAMENTO LINGUÍSTICO, NEOLOGISMOS E MEMÓRIA INFANTIL NA RNA

O programa “Piô-Piô”, da Rádio Nacional de Angola (RNA), foi um dos mais emblemáticos espaços dedicados à infância angolana nas décadas de 1970 e 1980. Com forte componente comunitária e educativa, era realizado em diferentes zonas do país, envolvendo os miúdos locais em concursos como dança das cadeiras, lançamento de bola ao cesto, música, anedotas e outras actividades lúdicas. Em cada edição, as crianças cantavam, brincavam e aprendiam, tornando o programa um verdadeiro palco de expressão cultural e formação cívica.

O indicativo oficial do programa — com a letra “Piô-Piô, da Rádio Nacional, é para aprender e para brincar. Ordem, educação, disciplina na nossa diversão...” — foi escrito por Rui de Carvalho, musicado por Henrique, professor de música, e interpretado por Dionísio Rocha. Esta composição tornou-se o hino da infância radiofónica angolana, ecoando nos lares e nas ruas com entusiasmo e afecto.

Mais tarde, Barcelô de Carvalho “Bonga” foi convidado pela RNA a compor uma música dedicada ao programa e às crianças de Angola. Surge então “Kyalumingu Kimenemene”, uma canção que celebra a infância, a oralidade e os afectos comunitários. Bonga lançou a música no Largo do Kinaxixi e voltou a cantá-la no show realizado na Mutamba, reforçando o vínculo entre arte, infância e memória colectiva.

ENTRE ONOMATOPEIA E IDEOLOGIA

O termo “Piô-Piô” carrega múltiplas camadas de significado:
- Por onomatopeia, representa o som dos pintainhos — uma imagem doce e infantil.
- Por referência histórica, “Piô” era também o diminutivo de “pioneiros”, nome dado às crianças no tempo de partido único em Angola, quando a educação e os meios de comunicação tinham forte orientação ideológica.

A escolha da música como indicativo reforça essa ligação entre infância, formação cívica e identidade nacional. Num tempo em que havia apenas uma rádio — a nacional — os programas etários eram seguidos com atenção quase religiosa pelos seus destinatários. Foi o caso de muitos, eu incluído.

ENTRELAÇAMENTO LINGUÍSTICO: PORTUGUÊS E KIMBUNDU

A letra da canção de Bonga é um exemplo vibrante de entrelaçamento entre o português e o Kimbundu, revelando uma Angola urbana, viva e multilingue. Bonga canta:

“Sukula depressa o kisuku / pregozinho no pescoço / matabicho não kanjonja / piô-piô stá te chamar.”  
“Kyalumingu kimenemene! Piô-piô. Dondim tem mabute / Mãe foi no Piô-piô...”

Esses versos misturam línguas e códigos culturais, criando uma linguagem híbrida que ressoa com o quotidiano dos ouvintes.

NEOLOGISMOS E GÍRIAS: ORALIDADE CRIATIVA

A canção é rica em termos que emergem da oralidade popular, revelando práticas e hábitos locais:

Palavra/Expressão| Significado em português                    

Kusukula | Lavar, arrumar    
Kisuku | Cozinha                      
Matabicho | Pequeno-almoço (neologismo: “matar o bicho”)
Kanjonjar | Comer aos bocados, lentamente                
Kifwa kya iba | Mau hábito    
Kyalumingu kimenemene | Aos domingos, de manhã ou manhã cedo               
Mabute | Ferida crónica
                                        
Essas expressões não apenas enriquecem o vocabulário, mas também funcionam como marcadores culturais e afectivos. São termos que circulam entre gerações, carregando significados que vão além da tradução literal.

MÚSICA COMO DOCUMENTO GERACIONAL

Para quem viveu a infância nos anos 1980, “Piô-Piô” não é apenas uma canção — é um documento sonoro da memória colectiva. A música, ao ser usada como indicativo pela RNA, tornou-se parte da rotina emocional de milhares de crianças, que se reconheciam na linguagem, no ritmo e na melodia.

Mais tarde, para alguns, essa escuta atenta evoluiu para uma relação profissional com a rádio, como foi o meu caso, tornando-me radialista na LAC. A música, portanto, não apenas marca uma época — ela forma e transforma.