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sábado, outubro 29, 2022

PERCORRENDO O KWANZA-SUL EM DIA E MEIO

No seio do meu selecto grupo de amigos a discussão tem girado à volta do conhecimento da nossa realidade histórica, cultural e contemplantação dos inúmeros recantos e encantos, entre recortes paisagísticos naturais, hidrográficos, marcas deixadas pelos homens ao longo do tempo, arquitectura, entre outros. Depois das eleições deste ano, 2022, aproveitando saudar o Dia de Neto, o pai da nossa angolanidade (17 de Setembro), Beto Spina (João Martins de graça oficial), Didi Domingos e o autor desta prosa decidiram meter-se à estrada e rever alguns locais do Kwanza-Sul, não distantes do asfalto, para registar e partilhar alguns momentos, percorrendo 8 dos 12 municípios do Kwanza-sul em 36 horas.

O roteiro começou pela Estrada Nacional nº 230, mais conhecida pelo seu prefixo EN-230 e como Estrada Luanda-Catete, levando-nos ao Dondo e, depois, seguindo pela EN-120, a que nos leva ao Huambo. Mas, dado que era noite, pernoitámos na Estalagem da Mukonga, conhecida ainda até hoje como “Bar do Ngana Mbundu”, alemão de origem hebraica que ali fizera sua vida, até ser raptado pela UNITA em 1984. No dia seguinte, 17 de Setembro, manhã cedo, fomos visitar a administração comunal da Munenga e, acto contínuo, a Cerâmica da Munenga.

Construída na década de sessenta do século XX, morreu lentamente até que o ataque da Unita à Munenga, em Fevereiro de 1984, serviu de machadada final. Dela restam poucos vestígios do que era a máquina amassadora e argila, o tanque arrefecedor dos tijolos, o reservatório de água e estacas rasas do que teria sido o armazém/estaleiro.

Se ela existisse até hoje, teria grande serventia à população, operadores sociais e empreendedores que enfrentam enormes dificuldades em adquirir blocos de cimento. Muito provavelmente a Munenga e arredores tivessem menos construções precárias, feitas de adobes e pau-a-pique, o que diminuiria consideravelmente a deslocalização permanente das aldeias.

Os amigos do dinheiro fácil estão a desmontar o que resta da história para vender partes do pesado equipamento aos catadores de ferro.

Um dia alguém poderá acusar-nos de "inventores" de uma cerâmica "que nunca existiu" por falta de provas físicas.

Na ausência de quem queira erguer uma nova cerâmica no local da que foi destruída, será que a autoridade competente pode cercar o espaço e preservar o que resta para contar a História?

Deixada a Munenga, comuna do Libolo, seguimos para a localidade de Pedra Escrita. O nome da aldeia deve-se ao facto de o gigante rochoso ter servido de suporte de publicidade de uma antiga estalagem que se achava no Lus(s)us(s)o, 12 quilómetros mais a sudeste. Vários povos, oriundos de Longolo, Kis(s)ala, Tumba Grande, Kuteka, Kipela e antigos trabalhadores ovimbudu de fazendas próximas conglomeraram-se e criaram a aldeia, a mando do Comandante António “Infeliz” João. O autor desta crónica desenvolve um projecto social (biblioteca comunitária) na aldeia, cujas obras foram visitadas [1] e vistoriadas.

Lus(s)us(s)o e Kibala foram pontos seguintes, com paragem na sede da que é chamada “capital espiritual do Kwanza-Sul”. O Didi, cujo pai é oriundo da Kibala, conferiu, em conversa, os limites do município, cujo concelho foi criado em 1944. O município tem 10 253 km² e  limitada a norte pelo município de Libolo, a este pelo Mus(s)ende e Andulo, a sul pela Cela e Hebo (Ebo), e a oeste pelos municípios de Kilenda e Quis(s)ama (terra de sua finada mãe).

Seguiu-se uma conversa sobre as pinturas rupestres de Ndalambiri, Hebo, em que o Beto Spina, enquanto natural da região, comandou a tertúlia. Tal levou-nos a parar na sede da comuna de Kondé (Hebo).

Quem circula pela EN240, Mussende-Kibala-Gabela-INP (ligação com a EN 100), depara-se, ao chegar próximo de Kondé, sentido Kibala-Hebo, com a deslumbrante imagem. Uma combinação paleolítica que os kondeenses chamam de "mulher gravida deitada".

 

Aos órgãos locais afins ao simplificado Ministério da Cultura e Turismo pede-se pouco: um miradouro e espaço para estacionamento seguro de veículos, para se puder fazer uma boa foto, ao sol poente, e manjar o farnel. Latrinas e depósitos para lixo não devem faltar. Se o local escolhido não tiver árvores frondosas, podem ser plantadas árvores que cresçam rápido e proporcionem essa serventia. A recomendação é válida para os locais em que se acham as pinturas rupestres de Ndalambiri ou mesmo junto ao monumento que homenageia o lendário comandante cubano Arguelles Garcia (ambos a caminho do Hebo). "Aqui" perto, na Namíbia, estão fabulosos exemplos do que se escreve acima.

 

Do Kondé, a caminho da Gabela, há outros motivos visuais de rara beleza, como a serra que acolhe a serpenteante rodovia. São inúmeras as belezas, agradáveis ao olho curioso do viajante contemplador. Ao amante do turismo rural e aos que procuram na natureza a inspiração para a arte criativa, basta meterem-se à estrada. Todo o resto se arranja.

 

Do entroncamento entre a EN 240 e a EN 108 (Conda-Uku), as 7Pontes obrigaram-nos a mais uma paragem. O Keve[2], algumas vezes grafado Kuvu[3], é um rio angolano que nasce no planalto central e que se desfaz no Atlântico, regando margens de extensas terras do Wambu e Kwanza-Sul.

Particularmente, conheço seis pontes sobre o Keve, nomeadamente: na estrada Alto Hama-Mbalundu, na via Kas(s)onge-Mbalundu (rota da missão do Njanju), na EN 120 (Waku-Kasonge), outra no troço Amboim-Sumbe (junto às Cachoeiras da Binga), a ponte que se transpõe no segmento Sumbe-Porto Amboim e, finalmente, o tabuleiro que se acha na ligação Amboim-Konda (a antiga travessia eram sete secções, por isso conhecidas por Sete Pontes).

Os sete tabuleiros em uma só travessia, também conhecidos como sete pontes são uma raridade de arquitectura sobre rio. Antes de chegar ao local da antiga travessia, o Keve junta-se, depois de correr, via abaixo, dividido em dois canais. Mas é cem metros abaixo que se desfaz em seis canais que serviram para instalar os sete tabuleiros. Felizmente, apesar dos estragos que os "parte-pontes" de sempre fizeram à estrutura, ela está hirta e a contar a história. O aumento de tráfego e tonelagem levaram à construção de um novo tabuleiro mais largo e seguro (cem metros acima das Sete Pontes de onde esteve a contemplar o sujeito narrador).

A beleza da Konda não se esgota pelas sete ou oito pontes. O caminho todo encaixa-se em serras "sem fim", a partir do território amboimense. São curvas e contracurvas de elevada beleza, mas que demandam redobrada atenção do condutor.

- Olho na beleza e olho na vida! - Disse Didi Domingos, chamado a registar a raridade visual que a região oferece ao forasteiro.

Do Keve à Konda a geologia é inconstante: subidas e descidas, curvas e contracurvas, algumas exageradas aos olhos de Beto Martins que defendia, para a construção moderna, túneis e tabuleiros para encurtar os riscos e a distância.

- Ó Beto, tu mazê tens ansiedade em chegar. Isso é lindo, pá! - Atirou novamente o Didi Domingos, visivelmente encantado.

- É como especialista de bombeiros que falo. Que é lindo é, mas há curvas a mais! - Defendeu-se.

Ao cronista-condutor interessava contemplar o que a natureza oferecia. Sem pressa. Olho no belo, pé revezando-se entre o acelerador e o travão e olho, sempre, na rodovia. A Konda fica a apenas 24 Km do desvio da estrada Gabela-Sumbe e, dentre vários encantos, a Tokota (quente na língua local e águas termais no código que usa o cronista) é local incontornável ao descobridor de raridades. Mais à frente, 29 quilómetros depois, fica Uku-Seles, outro encanto, com grutas e relevo inigualáveis.

Encravada em zona escarpada, a mais ou menos 75 quilómetros do Atlântico, olhando para a antiga cidade de Novo Redondo, Uku é a capital do Seles, um dos 12 municípios do Kwanza-Sul.

Já passavam alguns minutos da hora 17, quando chegámos ao Uku, procedentes de Luanda, com passagem por territórios dos municípios Libolo, Kibala, Hebo, Amboim e Konda. O espetacular sol poente encantava qualquer contemplador da natureza. As trevas nocturnas e as neblinas permanentes não deixam de ser encantos que se juntam ao silêncio, quando se poupa o gasóleo do gerador.

Quem chega ao Uku pela primeira vez, como foi o nosso caso, pode ser enganado pelos letreiros, pensando que a vila termina no monte onde se acha o grupo gerador (desvio para Kas(s)onge).

- Aqui onde é que vamos comer? Isso nem lugar para dormir tem. - Disse um dos meus companheiros de viagem.

- É melhor recuarmos para Konda (29 km) ou avançarmos para o Sumbe (a placa apontava 75 Km). - Sugeriu o outro.

Teimoso, como sempre, o condutor-cronista decidiu espreitar o que havia de incógnito pela frente, até aparecer um jovem conduzindo um triciclo motorizado.

- Jovem, sabe dizer onde se pode comer e ou dormir?

- Cheguem só à cidade e perguntem. - Disse sorridente.

- E onde fica a cidade? - Voltou a perguntar o condutor.

- É mais à frente. Depois daquela montanha, onde estão os geradores, vai em direcção ao Sumbe e pergunta. Assim fizemos.

- Essa vila é maior do que a do Hebo. - Atirou o Didi, buscando a reacção do Beto que é hebwense.

- Será? Tens certeza? – Defendeu-se, mas sem argumentos.

Os dois ficaram nas indagações enquanto o cronista levava os olhos a viajarem pelas infraestruturas. Hotel Cota, um largo, administração municipal, uma antiga estalagem sem letreiro, um "liceu" com janelas de chapas de zinco, entre outros imóveis que no passado terão dado muita alegria e brilho aos ukwenses.

- Jovens, boa noite! Onde se pode encontrar uma boa hospedaria para comer e dormir?

- Essa aqui (o jovem olhava para norte) é uma delas. Mas a melhor é a do kota Cláudio que fica à saída para o Sumbe. Se os kotas forem até ao quiosque, vão receber todos os azimutes. - Explicou.

O relógio caminhava apressado e a escuridão vinha com ela. Não havia tempo a perder, nem como identificar os interlocutores pelos nomes. Entre gastar tempo em ir procurar o quiosque e confirmar se a hospedaria do Cláudio possuía requisitos mínimos, decidimos avançar.

- Se é a caminho do Sumbe, vamos avançar. Podemos voltar à cidade para comer, se se julgar necessário. Porém, se não tiver camas e água fazemos o esforço de chegar ao Sumbe. - Decidimos, desconhecendo ainda o que a estrada nos podia reservar pela frente: curvas exageradas, como disse o Beto Martins à entrada do rio Keve (7 pontes).

Pelo caminho, dividimos os olhares: uns controlando à direita e outros à esquerda, identificando instalações que pudessem ser albergues. Encontrámos, quase onde findam as habitações, uma edificação com paredes decoradas em formato de seios. Batemos a porta e, debalde! Fechadas.

- Nem alma viva por cá? - Indagou o condutor, já a pensar nos 75 Km até à capital da província.

Valeu a insistência do Didi que espreitou por uma fresta, identificando o proprietário/gestor que fora ocasionalmente deixar comida para os cães. A hospedaria tinha água quente, camas limpas e energia térmica, mas era necessário recuar à vila para a janta.

- Aqui, a média de ocupação é de 1 quarto por noite. Não há clientes e como tem de se ligar o gerador, os custos são avultados. Por isso é que a Hospedaria só abre por marcação prévia. Vocês tiveram sorte em me encontrar. - Disse Cláudio, levando-nos ao quiosque (vila) para o jantar que foi feito com a nossa ajuda.

Epá, já viram? Tem mais ruas do que Kibala Kalulu e Hebo. Mesmo a Konda é pequena. - Atirou novamente, desta vez provocante, o Didi, ao que lhe respondi.

- Tens razão. Kalulu tem duas ruas e meia. Konda também. Kibala tem duas e Hebo uma e meia. É pena que a vila tenha estagnado ou mesmo recuado. Se não fossem as kavwanzas[4], ela teria tudo para ser cidade. Não acham?

- É verdade! - Responderam os companheiros de viagem e tertúlia.

- Mas, por que é que não tem energia da rede? - Voltou a questionar o Didi, recebendo do Beto um "come só e pergunta amanhã".

Antes da janta, o cronista pretendia afugentar o mal-estar provocado pela viagem, pedindo um simples de black label.

- Meu doutor, tens de comprar a garrafa toda, que é 25 mil. Se a abrir para um simples, ela pode ficar um ano sem que ninguém passe para pedir outro cálice. Não há na juventude poder de compra nem gostos refinados. Preferem a cerveja a outras bebidas que vendem nos bairros. - Advertiu Cláudio, deixando o cronista entregue ao inclemente frio do Seles.

No dia seguinte a surpresa viria logo no primeiro quilómetro de percurso. "Trave com o motor e use a primeira marcha", ordenava-se numa placa a assinalar descida e curvas perigosíssimas. Até perto do Sumbe foi mais pé no travão do que no acelerador. Concluímos a razão daquele "não se vai ao Sumbe de noite", saído da boca do Cláudio, o nosso anfitrião.

- Terá sido o clima frio que atraiu os “portugas”, fundadores da vila de Uku, àquele lugar ou o cultivo de café em encostas de montanhas cobertas permanentemente de nevoeiro?

 

A vila de Uku (que caso crescesse tinha de tudo para ser cidade) e a estática cidade de Sumbe estão separadas por duas horas.

Não é culpa de buracos que se contam pouquíssimos, nem do carro que se diz alto, potente e novíssimo.

Entre um hipotético desejo de se construir uma rodovia serpenteante e agradável, mas sem o apelo à contemplação, e uma aparente apatia que levou a encaixar o alcatrão no antigo trilho do cavalo, pode residir a culpa que ainda leva a percorrer 75 quilómetros em 120 minutos. Vamos aos factos.

Cayele Bango é uma aldeia interior de Seles a desfazer-se da zona escarpada para a planície atlântica, olhos mirados em Ngunza Kabolu ou Sumbe deste tempo. O que me chamou à atenção é a acentuação da curva, nunca ângulo inferior a 60°. Já vinha a "travar com o motor e primeira marcha", como recomendado na sinalização vertical, mesmo sendo carro automático.

Túneis e tabuleiros ajudariam a tornar o trânsito mais rápido, menos perigoso e mais económico do que fazer aquele "vai e volta ao mesmo sítio". A rodovia Seles-Sumbe tem outros detalhes que levam a pensar e que não se esgotam nesta prosa. Vejamos:

A desflorestação crescente, a eliminação dos sombreiros e dos cafezais, a atracção da erosão para a beira da estrada são aspectos que nos devem preocupar.

É que sem vegetação à beira da estrada, a terra fica exposta à erosão. Havendo erosão que a afecte o transito fica liminarmente cortado.

Sabe-se que o povo vive da agricultura, muitas vezes de subsistência, sendo obrigado a desbravar a floresta que abrigava os cafezais para aproveitar o húmus que faz crescer e produzir o milho e o feijão. Mas não nos faz falta a floresta?

Não nos prejudicará a curto prazo a sua eliminação?

Estas e outras perguntas perseguiram-me até cruzar a EN 100, levando-me ao segmento mais problemático, na cidade, que agora recebeu uma plataforma em betão. Está atractiva e aparenta durabilidade, mas o lodaçal, que as montanhas mandam anos sim e anos sempre cidade abaixo, pode ocupar o espaço da água nas valetas e fazê-las transbordar.

Sem boa largura e bom declive, a argila torna-se pesada e estanque e o rio Kambongo, embora se mostre de braços abertos para receber o que São Pedro larga e seus acompanhantes, ainda fica longe. Tal como Luanda que nos chamava!

Foram 36 horas para percorrer territórios do Libolo, Kibala, Hebo, Amboim, Konda, Seles, Sumbe e Porto Amboim. Até à próxima!

 

Texto publicado no Jornal de Angola de 06.11.22 

[1] Todos os apoios necessários para a cobertura, pintura, portas e janelas serão bem-vindos.

[2] Do Umbundo (para a) areia.

[3] Do Kimbundu (para a) areia.

[4] Confusões, guerras.

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