O roteiro começou pela Estrada
Nacional nº 230, mais conhecida pelo seu prefixo EN-230 e como Estrada Luanda-Catete,
levando-nos ao Dondo e, depois, seguindo pela EN-120, a que nos leva ao Huambo.
Mas, dado que era noite, pernoitámos na Estalagem da Mukonga, conhecida ainda
até hoje como “Bar do Ngana Mbundu”, alemão de origem hebraica que ali fizera
sua vida, até ser raptado pela UNITA em 1984. No dia seguinte, 17 de Setembro,
manhã cedo, fomos visitar a administração comunal da Munenga e, acto contínuo,
a Cerâmica da Munenga.
Construída na década de sessenta do
século XX, morreu lentamente até que o ataque da Unita à Munenga, em Fevereiro
de 1984, serviu de machadada final. Dela restam poucos vestígios do que era a
máquina amassadora e argila, o tanque arrefecedor dos tijolos, o reservatório
de água e estacas rasas do que teria sido o armazém/estaleiro.
Se ela existisse até hoje, teria grande serventia à população,
operadores sociais e empreendedores que enfrentam enormes dificuldades em
adquirir blocos de cimento. Muito provavelmente a Munenga e arredores tivessem
menos construções precárias, feitas de adobes e pau-a-pique, o que diminuiria
consideravelmente a deslocalização permanente das aldeias.
Os amigos do dinheiro fácil estão a desmontar o que resta da
história para vender partes do pesado equipamento aos catadores de ferro.
Um dia alguém poderá acusar-nos de "inventores" de uma
cerâmica "que nunca existiu" por falta de provas físicas.
Na ausência de quem queira erguer uma nova cerâmica no local da
que foi destruída, será que a autoridade competente pode cercar o espaço e
preservar o que resta para contar a História?
Deixada a Munenga, comuna do Libolo, seguimos para a localidade de
Pedra Escrita. O nome da aldeia deve-se ao facto de o gigante rochoso ter
servido de suporte de publicidade de uma antiga estalagem que se achava no Lus(s)us(s)o,
12 quilómetros mais a sudeste. Vários povos, oriundos de Longolo, Kis(s)ala,
Tumba Grande, Kuteka, Kipela e antigos trabalhadores ovimbudu de fazendas
próximas conglomeraram-se e criaram a aldeia, a mando do Comandante António “Infeliz”
João. O autor desta crónica desenvolve um projecto social (biblioteca
comunitária) na aldeia, cujas obras foram visitadas [1] e
vistoriadas.
Lus(s)us(s)o e Kibala foram pontos seguintes, com paragem na sede
da que é chamada “capital espiritual do Kwanza-Sul”. O Didi, cujo pai é oriundo
da Kibala, conferiu, em conversa, os limites do município, cujo concelho foi
criado em 1944. O município tem 10 253 km² e limitada a norte pelo município de Libolo, a este pelo Mus(s)ende e Andulo, a sul pela
Cela e Hebo
(Ebo), e a oeste pelos municípios de Kilenda e Quis(s)ama
(terra de sua finada mãe).
Seguiu-se uma conversa sobre as pinturas rupestres de Ndalambiri, Hebo,
em que o Beto Spina, enquanto natural da região, comandou a tertúlia. Tal
levou-nos a parar na sede da comuna de Kondé (Hebo).
Quem circula pela EN240, Mussende-Kibala-Gabela-INP
(ligação com a EN 100), depara-se, ao chegar próximo de Kondé, sentido
Kibala-Hebo, com a deslumbrante imagem. Uma combinação paleolítica que os
kondeenses chamam de "mulher
gravida deitada".
Aos órgãos locais afins ao simplificado
Ministério da Cultura e Turismo pede-se pouco: um miradouro e espaço para
estacionamento seguro de veículos, para se puder fazer uma boa foto, ao sol
poente, e manjar o farnel. Latrinas e depósitos para lixo não devem faltar. Se
o local escolhido não tiver árvores frondosas, podem ser plantadas árvores que
cresçam rápido e proporcionem essa serventia. A recomendação é válida para os
locais em que se acham as pinturas rupestres de Ndalambiri ou mesmo junto ao
monumento que homenageia o lendário comandante cubano Arguelles Garcia (ambos a
caminho do Hebo). "Aqui" perto, na Namíbia, estão fabulosos exemplos
do que se escreve acima.
Do Kondé, a caminho da Gabela, há outros
motivos visuais de rara beleza, como a serra que acolhe a serpenteante rodovia.
São inúmeras as belezas, agradáveis ao olho curioso do viajante contemplador. Ao
amante do turismo rural e aos que procuram na natureza a inspiração para a arte
criativa, basta meterem-se à estrada. Todo o resto se arranja.
Do
entroncamento entre a EN 240 e a EN 108 (Conda-Uku), as 7Pontes obrigaram-nos a
mais uma paragem. O Keve[2],
algumas vezes grafado Kuvu[3],
é um rio angolano que nasce no planalto central e que se desfaz no Atlântico,
regando margens de extensas terras do Wambu e Kwanza-Sul.
Particularmente, conheço seis
pontes sobre o Keve, nomeadamente: na estrada Alto Hama-Mbalundu, na via Kas(s)onge-Mbalundu
(rota da missão do Njanju), na EN 120 (Waku-Kasonge), outra no troço
Amboim-Sumbe (junto às Cachoeiras da Binga), a ponte que se transpõe no
segmento Sumbe-Porto Amboim e, finalmente, o tabuleiro que se acha na ligação
Amboim-Konda (a antiga travessia eram sete secções, por isso conhecidas por
Sete Pontes).
Os sete tabuleiros em uma só
travessia, também conhecidos como sete pontes são uma raridade de arquitectura
sobre rio. Antes de chegar ao local da antiga travessia, o Keve junta-se,
depois de correr, via abaixo, dividido em dois canais. Mas é cem metros abaixo
que se desfaz em seis canais que serviram para instalar os sete tabuleiros.
Felizmente, apesar dos estragos que os "parte-pontes" de sempre
fizeram à estrutura, ela está hirta e a contar a história. O aumento de tráfego
e tonelagem levaram à construção de um novo tabuleiro mais largo e seguro (cem
metros acima das Sete Pontes de onde esteve a contemplar o sujeito narrador).
A beleza da Konda não se esgota
pelas sete ou oito pontes. O caminho todo encaixa-se em serras "sem
fim", a partir do território amboimense. São curvas e contracurvas de
elevada beleza, mas que demandam redobrada atenção do condutor.
- Olho na beleza e olho na vida!
- Disse Didi Domingos, chamado a registar a raridade visual que a região
oferece ao forasteiro.
Do Keve à Konda a geologia é
inconstante: subidas e descidas, curvas e contracurvas, algumas exageradas aos
olhos de Beto Martins que defendia, para a construção moderna, túneis e
tabuleiros para encurtar os riscos e a distância.
- Ó Beto, tu mazê tens ansiedade
em chegar. Isso é lindo, pá! - Atirou novamente o Didi Domingos, visivelmente
encantado.
- É como especialista de bombeiros
que falo. Que é lindo é, mas há curvas a mais! - Defendeu-se.
Ao cronista-condutor interessava
contemplar o que a natureza oferecia. Sem pressa. Olho no belo, pé revezando-se
entre o acelerador e o travão e olho, sempre, na rodovia. A Konda fica a apenas
24 Km do desvio da estrada Gabela-Sumbe e, dentre vários encantos, a Tokota
(quente na língua local e águas termais no código que usa o cronista) é local
incontornável ao descobridor de raridades. Mais à frente, 29 quilómetros depois,
fica Uku-Seles, outro encanto, com grutas e relevo inigualáveis.
Encravada em zona escarpada, a mais ou menos 75 quilómetros do Atlântico, olhando
para a antiga cidade de Novo Redondo, Uku é a capital do Seles, um dos 12
municípios do Kwanza-Sul.
Já
passavam alguns minutos da hora 17, quando chegámos ao Uku, procedentes de
Luanda, com passagem por territórios dos municípios Libolo, Kibala, Hebo,
Amboim e Konda. O espetacular sol poente encantava qualquer contemplador da
natureza. As trevas nocturnas e as neblinas permanentes não deixam de ser
encantos que se juntam ao silêncio, quando se poupa o gasóleo do gerador.
Quem
chega ao Uku pela primeira vez, como foi o nosso caso, pode ser enganado pelos
letreiros, pensando que a vila termina no monte onde se acha o grupo gerador
(desvio para Kas(s)onge).
- Aqui
onde é que vamos comer? Isso nem lugar para dormir tem. - Disse um dos meus
companheiros de viagem.
- É
melhor recuarmos para Konda (29 km) ou avançarmos para o Sumbe (a placa
apontava 75 Km). - Sugeriu o outro.
Teimoso,
como sempre, o condutor-cronista decidiu espreitar o que havia de incógnito
pela frente, até aparecer um jovem conduzindo um triciclo motorizado.
- Jovem,
sabe dizer onde se pode comer e ou dormir?
-
Cheguem só à cidade e perguntem. - Disse sorridente.
- E onde
fica a cidade? - Voltou a perguntar o condutor.
- É mais
à frente. Depois daquela montanha, onde estão os geradores, vai em direcção ao
Sumbe e pergunta. Assim fizemos.
- Essa
vila é maior do que a do Hebo. - Atirou o Didi, buscando a reacção do Beto que
é hebwense.
- Será?
Tens certeza? – Defendeu-se, mas sem argumentos.
Os dois
ficaram nas indagações enquanto o cronista levava os olhos a viajarem pelas
infraestruturas. Hotel Cota, um largo, administração municipal, uma antiga estalagem
sem letreiro, um "liceu" com janelas de chapas de zinco, entre outros
imóveis que no passado terão dado muita alegria e brilho aos ukwenses.
-
Jovens, boa noite! Onde se pode encontrar uma boa hospedaria para comer e
dormir?
- Essa
aqui (o jovem olhava para norte) é uma delas. Mas a melhor é a do kota Cláudio
que fica à saída para o Sumbe. Se os kotas forem até ao quiosque, vão receber
todos os azimutes. - Explicou.
O
relógio caminhava apressado e a escuridão vinha com ela. Não havia tempo a
perder, nem como identificar os interlocutores pelos nomes. Entre gastar tempo
em ir procurar o quiosque e confirmar se a hospedaria do Cláudio possuía
requisitos mínimos, decidimos avançar.
- Se é a
caminho do Sumbe, vamos avançar. Podemos voltar à cidade para comer, se se
julgar necessário. Porém, se não tiver camas e água fazemos o esforço de chegar
ao Sumbe. - Decidimos, desconhecendo ainda o que a estrada nos podia reservar
pela frente: curvas exageradas, como disse o Beto Martins à entrada do rio Keve
(7 pontes).
Pelo
caminho, dividimos os olhares: uns controlando à direita e outros à esquerda,
identificando instalações que pudessem ser albergues. Encontrámos, quase onde
findam as habitações, uma edificação com paredes decoradas em formato de seios.
Batemos a porta e, debalde! Fechadas.
- Nem
alma viva por cá? - Indagou o condutor, já a pensar nos 75 Km até à capital da
província.
Valeu a
insistência do Didi que espreitou por uma fresta, identificando o proprietário/gestor
que fora ocasionalmente deixar comida para os cães. A hospedaria tinha água
quente, camas limpas e energia térmica, mas era necessário recuar à vila para a
janta.
- Aqui,
a média de ocupação é de 1 quarto por noite. Não há clientes e como tem de se
ligar o gerador, os custos são avultados. Por isso é que a Hospedaria só abre
por marcação prévia. Vocês tiveram sorte em me encontrar. - Disse Cláudio,
levando-nos ao quiosque (vila) para o jantar que foi feito com a nossa ajuda.
Epá, já
viram? Tem mais ruas do que Kibala Kalulu e Hebo. Mesmo a Konda é pequena. -
Atirou novamente, desta vez provocante, o Didi, ao que lhe respondi.
- Tens
razão. Kalulu tem duas ruas e meia. Konda também. Kibala tem duas e Hebo uma e
meia. É pena que a vila tenha estagnado ou mesmo recuado. Se não fossem as
kavwanzas[4], ela teria tudo para ser
cidade. Não acham?
- É
verdade! - Responderam os companheiros de viagem e tertúlia.
- Mas,
por que é que não tem energia da rede? - Voltou a questionar o Didi, recebendo
do Beto um "come só e pergunta amanhã".
Antes da
janta, o cronista pretendia afugentar o mal-estar provocado pela viagem,
pedindo um simples de black label.
- Meu
doutor, tens de comprar a garrafa toda, que é 25 mil. Se a abrir para um
simples, ela pode ficar um ano sem que ninguém passe para pedir outro cálice.
Não há na juventude poder de compra nem gostos refinados. Preferem a cerveja a
outras bebidas que vendem nos bairros. - Advertiu Cláudio, deixando o cronista
entregue ao inclemente frio do Seles.
No dia
seguinte a surpresa viria logo no primeiro quilómetro de percurso. "Trave
com o motor e use a primeira marcha", ordenava-se numa placa a assinalar
descida e curvas perigosíssimas. Até perto do Sumbe foi mais pé no travão do
que no acelerador. Concluímos a razão daquele "não se vai ao Sumbe de
noite", saído da boca do Cláudio, o nosso anfitrião.
- Terá
sido o clima frio que atraiu os “portugas”, fundadores da vila de Uku, àquele
lugar ou o cultivo de café em encostas de montanhas cobertas permanentemente de
nevoeiro?
A vila de Uku (que caso crescesse tinha de tudo para ser cidade) e a
estática cidade de Sumbe estão separadas por duas horas.
Não é culpa de buracos que se contam pouquíssimos, nem do carro que se
diz alto, potente e novíssimo.
Entre um
hipotético desejo de se construir uma rodovia serpenteante e agradável, mas sem
o apelo à contemplação, e uma aparente apatia que levou a encaixar o alcatrão
no antigo trilho do cavalo, pode residir a culpa que ainda leva a percorrer 75
quilómetros em 120 minutos. Vamos aos factos.
Cayele
Bango é uma aldeia interior de Seles a desfazer-se da zona escarpada para a
planície atlântica, olhos mirados em Ngunza Kabolu ou Sumbe deste tempo. O que
me chamou à atenção é a acentuação da curva, nunca ângulo inferior a 60°. Já
vinha a "travar com o motor e primeira marcha", como recomendado na
sinalização vertical, mesmo sendo carro automático.
Túneis e
tabuleiros ajudariam a tornar o trânsito mais rápido, menos perigoso e mais
económico do que fazer aquele "vai e volta ao mesmo sítio". A rodovia
Seles-Sumbe tem outros detalhes que levam a pensar e que não se esgotam nesta
prosa. Vejamos:
A
desflorestação crescente, a eliminação dos sombreiros e dos cafezais, a
atracção da erosão para a beira da estrada são aspectos que nos devem preocupar.
É que
sem vegetação à beira da estrada, a terra fica exposta à erosão. Havendo erosão
que a afecte o transito fica liminarmente cortado.
Sabe-se
que o povo vive da agricultura, muitas vezes de subsistência, sendo obrigado a
desbravar a floresta que abrigava os cafezais para aproveitar o húmus que faz
crescer e produzir o milho e o feijão. Mas não nos faz falta a floresta?
Não nos
prejudicará a curto prazo a sua eliminação?
Estas e
outras perguntas perseguiram-me até cruzar a EN 100, levando-me ao segmento
mais problemático, na cidade, que agora recebeu uma plataforma em betão. Está
atractiva e aparenta durabilidade, mas o lodaçal, que as montanhas mandam anos
sim e anos sempre cidade abaixo, pode ocupar o espaço da água nas valetas e
fazê-las transbordar.
Sem boa
largura e bom declive, a argila torna-se pesada e estanque e o rio Kambongo,
embora se mostre de braços abertos para receber o que São Pedro larga e seus
acompanhantes, ainda fica longe. Tal como Luanda que nos chamava!
Foram
36 horas para percorrer territórios do Libolo, Kibala, Hebo, Amboim, Konda,
Seles, Sumbe e Porto Amboim. Até à próxima!