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quinta-feira, março 01, 2018

CONTRATOS RENDEIROS NA VOZ DE KILOMBO KITINU*

A abolição internacional da escravatura aconteceu no sec. XIX (1883), mas a sua materialização efectiva levou décadas, para não dizer século. Porém, os detentores de escravos e aqueles que faziam da captura/compra, utilização doméstica e venda de "peças humanas" o seu negócio, procuraram diversas artimanhas para fazer dos homens nessa condição meros objectos. Ou se mudavam as rotas do Atlântico para o Indico ou se praticava a escravatura (depois com outras faces) no território nativo.

Kilombo Kitinu, filha de regedor e neta de ex-proprietários de "mabika" (escravos), aos setenta anos, conta: 
_ Meus avô e bisavôs Mungongo e Kaphote Kasenda, todos da região de Kindongo/Kisama, eram detentores de mabika que depois de alforriados, 'quando chegou a ordem', tornaram-se parentes". Quando comecei a trabalhar na "renda" ainda adolescente, às vezes não percebia o tratamento que me era dado, explica. 

Acrescentando que "recebiam-me como rainha (embora o fosse) e estendiam panos onde me sentava. Só mais tarde me fui apercebendo que era a forma grata como os ex-mabika tratavam os antigos proprietários ou seus descendentes directos conhecidos que os haviam tratado com dignidade".

Mas apesar de descendente de "esclavagistas", Kilombo Kitinu também experimentaria o fel da escravidão camuflada em pseudo-contratos rendeiros, onde crianças e adolescentes não eram poupadas na abertura de vias rodoviárias, colheita de café, processamento de tabaco, limpeza de capoeiras, entre outros trabalhos.

Como a máquina funcionava?

Os colonos recém-chegados, fossem portugueses ou alemães, iam ao posto administrativo requisitar "pretos para trabalhar", não se olhando para a idade. O posto administrativo obrigava o soba a mandar ao "contrato" os seus aldeões e, nessa difícil tarefa, não podia excluir os seus filhos e sobrinhos. Foi assim que ela, filha de regedor do Kuteka, também frequentou as fazendas do Prata, Kabumbulu, Ngana Mbundu, Senhora Kasenda, Conde, entre outras, como "trabalhadora rendeira".

_ Terminado o período de um ou mais meses, outros eram "recrutados" para render os outros. _Explicou.

A oralidade conserva o termo "renda" para designar esse tipo de trabalho semi-escravo que se desenvolveu até à segunda metade do Sec. XX, antes da independência em Angola (1975).

Kilombo Kitinu recua no tempo e estabelece um marco:
_ Nasci quando se abriu manualmente a picada de Kawayawasa, para o alemão Ngana Mbundu (Walter Kruk). Foi o que os meus pais me explicaram. Aí chegou a ordem para o fim da escravatura. As pessoas que trabalhavam na abertura manual da picada tinham as mãos rebentadas (calejadas e feridas). Entrou depois a renda. As nossas chinelas eram de pele de cabra (alparcatas). A todas as pessoas, os brancos chamavam apenas por ó preto! E os negros respondiam patrão! Nesses trabalhos, as meninas ficavam, às vezes, duas semanas que eram remuneradas com pouco dinheiro. Só chegava para comprar um par de brincos ou missangas para a mãe, um pano e uma barra de sabão para a trabalhadora.

Narrou ainda que entre os seus parentes directos, duas pessoas se destacaram na fazenda da alemã conhecida por Senhora Kasenda (os nativos atribuíam outros nomes mais familiares aos europeus). Eram o mano Doce (cozinheiro) e o papá Kabota (capataz). Esses viviam lá no acampamento com as suas famílias e só iam à aldeia de Mbangu yo'Teka visitar os parentes. Aprenderam a falar a língua dos alemães e as suas mulheres e filhos vestiam-se bem. 

Do outro lado do rio Longa, território de Ndal'Axipo (Dala Kaxibo), também havia alemães. Kilombo Kitinu citou Kabumbulu e Kilenge (nomes atribuídos pelos nativos). 

De recordação em recordação, "viajou" por Kixinje, território da Kisama, onde, ainda garota, trabalhou na abertura da picada que termina em Kandanji (margem do rio Kwanza, junto ao Dondo). 

_ A escravatura e a renda não poupavam ninguém. As mulheres também abriam as picadas com as enxadas...

*Maria Canhanga

Texto publicado no Jornal Cultura, Janeiro 2018


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