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sexta-feira, setembro 22, 2017

O CERTIFICADO DE HULE

À boca pequena tudo se fala. Relatam-se cenas sobre eventuais pessoas que se doam, que se alugam e outras que matam sonhos geratrizes. Poucos porém, desabotoam a camisa para baterem ao peito e soltam a voz do que a sociedade "fala" em surdina. É viajando na imaginação, por terras distantes, que encontramos Hule, filha querida de seus pais, soberanos no seu território gentílico. A estória é comum, se calhar, apenas o final pode ser distinto.

Fazia meses que Nampula registava calor. Pior, quando El Nino se aproxima, cumprida a sua sazonalidade. Estava um calor de assar sardinhas para um prenúncio de noite. Já se alinhavam estrelas num céu cinzento recortado por nuvens turvas. Ao mesmo tempo que Hule procurava acertar a cor do céu afivelava ideias sobre a janta do dia seguinte e o leite do Diploma que brilhava nas costas. 

Hule fora enviada a Maputo ainda na puberdade aonde o pai pretendia que sua filha do meio se formasse em medicina ou outra ciência afim. Mas cedo conheceu angolanos e outros diplomatas oeste-africanos que exploravam petrodólares. Meticais para que te quero?! Instituto para que me serves?! Hule encontrou vida fácil. Dançarina de primeira hora, conhecedora de noites luxuosas, dama de companhia para eventos se fez. Não escolhia cor da epiderme. Não! Nem idade lhe interessava. Diferenças etárias eram apenas números. Somente uma cor, a do dinheiro americano lhe interessava. O certificado de habilitações literárias que lhe proporcionaria emprego numa instituição do Estado, sonho amputado do pai,  foi substituído pela cria. Foi assim que os mais inconformados com aquela opção da jovem passaram a tratar a filha de Hule por "Certificado".

No dia em que a cena aconteceu, Hule estava à porta da sua mandjungu ou choupana que herdara da avó materna de quem a filha se tornou xará. Abriu a porta, entre duas colunas que se prolongam e se revezam no andar. Deixou entrar um pouco de ar para arrefecer o forno que se achava envolto a kapulanas, como são tratados os tecidos em Moçambique.  O forno, fundo, húmido e já com pouca elasticidade, ante ao uso revezeiro, é a sua indústria, seu banco. Ajeitou os maboques, um par no peito, que se prestavam a fugir do soutien. Jactou o decote. Mamas já flácidas jazem quase quase num amontoado de esponjas suportadas por arcos metálicos. Aos lábios, levou um batom pobre e encarnado. É sangue procurando suor e sangue. À filha, chorona e resmungona, espectou um sambapito na boca. 

- Cala. A mamã vai ganhar pão pra amanhã!

Hule fez-se a caminho da baixa de Nampula, entre Faina e Mutotope, seu emprego prazeroso. Foi lá que o Manuel, polícia de profissão, já quase noivo, a encontrou em flagrante delícia.

Ali mesmo, no Largo Machel, depois de adentrar o jeep grande de vidros translúcidos, não precisou de vistoriar à volta. 

- São cooperantes, nada os detém! - Pensou.

Imitou o canídeo. Lambeu a sua cria,  afugentando-lhe as maleitas. O bicho respirou fundo e esticou-se ao comprido. Hule, feita canídea de Rafa, simulou caminhada, de quatro, do kambwá como dizem os angolanos na margem atlântica do continente. Sem se aperceberem, a polícia que procurava por marginais foragidos fez-lhes uma surpreendente visita. Manuel estava na patrulha.

- Estão presos, malandros!

Texto publicado pelo Jornal de Angola, edição de 24 de Setembro/2017

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