Sempre foi a menina dos olhos do pai,
desde pequena. Nasceu linda e meiga, tal como Manuel pretendia. Deu-lhe, por
isso, o nome de Mela, uma espécie de sua homónima. Para a esposa, dona Bela das
Pernas Grossas, rapaz é que atenderia o seu ego. Mela também era benquista da
mãe que se gabava de vizinha em vizinha por ter a menina mas trochudinha da Rua
do Lodo, no bairro Karyangu, embora por atrás daquela alegria algo pedia o
companheiro para a menina. Diante do marido, Bela reclamava do excesso de
bonecas sem carros de brinquedo no quintal. E aconteceu três anos mais tarde,
depois de uma interrupção oculta pelo meio, dado o facto de o segundo
"conseguimento" ter surgido seis meses depois de Mela.
Do outro lado, Manuel sonhava com a
filha doutora de qualquer coisa, moça prendada, alembada e casada no tempo
certo que nem ele sabia, se aos dezoito, vinte e oito ou já no extra time para
um produto a prazo quando se pretenda cliente embolsado e descomprometido.
Manuel andava de sorriso em sorriso e às
contas. Mela era a sua alegria e o cavalo dianteiro para Bela das Pernas
Grossas, quando o assunto fosse visitar a algibeira do marido. A formosura e a
voz delicada da menina impedia o papy, como era carinhosamente tratado pela
filha, exibir um NÃO aos seus desejos, muitas vezes projectados e inflacionados
pela mãe. Assim foi desde que Mela entrou para a creche até que, já com duas
luzinhas no peito a indicar o caminho para a mocidade, Manuel descobriu um
teste médico com o nome completo da filha e uma observação do ginecólogo que
apontava POSITIVO.
- Porra! Teste de gravi quê?! Quer dizer
que essa vadia já quê e eu aqui nas cegas, não é? Para chegar até esse ponto a
Bela sabe. Sim, sabe. Tem de saber alguma coisa. Sempre desconfiei as
“conversas de mulheres”, afinal era pra essa merda? – Vociferou o homem
possuído de ira. A voz que, quase sufocada, se fez morrer no quarto, não deixou
de se fazer ecoar na rua traseira e não escapou aos ouvidos vasculhadores das
vizinhas "caça-fofoca" que de imediato esticaram a conversa como
elástico, com detalhes apimentados com suas férteis imaginações.
- A filha da Pernuda, então, já não tem
a coisa no coiso. - Fofocavam as senhoras, de beco em beco, como se as suas
princesas há muito assucatadas estivessem no castelo.
No intervalo da escola, onde a notícia a
encontrou pela bisbilhotice de uma vizinha, amiga da mãe, Mela desfilava. O dia
era seu. Apertada num vestido de boneca, mostrava a geografia de suas picadas,
do alto da montanha à foz dos desejos, a todos quantos faziam do seu corpo uma
Tundavala de encantos.
Estava preparada para e esperava pelo Mister
J, um ardina que se fazia passar por filhinho de papá, com quem sairia para a
discoteca Ouro Negro. Nascido no seio de uma família com pequenas posses
herdadas do colono cafeicultor de quem o pai fora capataz, Mister J ou
Januário, para os amigos de Nambwangongu, aportara na grande cidade empurrado
pela busca do que nunca deixara perder ou guardara. Embalado pelas estórias de
pessoas que do nada se tornaram gente de fundos e montes, Januário meteu-se num
machimbombo, apenas com a roupa do corpo e uma carta do primo Nzuzi que dizia:
“Primo estou na capital. Aqui a vida é diferente. Tua roupa, teus carros você
consegue sem muito esforço. Basta chegar na praça do quilómetro trinta e
procurar por Nzuzi. Todas a gente me conhece. Basta me achares o que é meu
também é teu”.
Nzuzi era raboteiro (estivador de
mercado) do quilómetro trinta, ao Ramiro e lá vivia numa casota de chapas de
zinco, erguida por um pequeno lactifundiário, à beira-mar.
Jacinto desavisado e sem mais detalhes
sobre a vida do primo, desfez-se do machimbombo que o trouxera de Nambwangongu
ao atingir o mercado homónimo de Viana. Percorreu as bancadas uma a uma,
perguntando pelo que se dizia “famigerado” Nzuzi Makyadi, debalde. Foi levado à polícia, aos
bombeiros, à rádio e nada. A sua foto, talvez porque desfigurada pelo sofrimento
que enfrentou nos primeiros sete dias de Luanda, foi exibida na televisão e
colada às paredes do mercado do Trinta, mas debalde. Nem Nzuzi, nem alma
qualquer que se prestasse recebê-lo. Teve de empregar-se na venda de jornais, na
vila de Viana, dormitando debaixo da ponte amarela, tão logo as vendedeiras lhe
cedessem o lugar.
Com o passar dos dias e dos meses,
conheceu Ecs Pi. Xavito Pinheiro no bilhete dele, um rapaz de Kalomboloka,
filho de um deputado, dezassete anos ainda por completar, que se anglofonou.
Ecs Pi gostava de roubar o carro do pai para ir às garotas, mesmo não estando
habilitado. Como Mister J tinha carta de condução, fizeram-se comparsas
temporários. Durante o dia cada um deles tinha a sua vida. Januário ardinava e
Xavito kabulava no colégio em que fingia estudar.
Às noites, hora de lavar o carro,
Januário abeirava-se da casa de Ecs Pi que extraia os documentos e algumas
folhas da carteira do progenitor e faziam-se à ngwenda. Januário servia de
motorista de Xavito, o Ecs Pi, e este servia de pagador das conta do amigo. Era
também Ecs Pi quem emprestava as roupas de marca actualizada com que Januário
desfilava perante Mela e outras raparigas da Escola Grande. Para aquelas
meninas, Mister J era um autêntico magnata. Oferecer recargas de telefone para
ele não era problema, muito menos pagar cachorros quentes, hambúrgueres e
caipirinhas para as mocitas já experimentadas na interpretação errônea de I
Tim. 5:23 (Não bebas mais água só, mas usa de um pouco de vinho por causa das
tuas frequentes enfermidades).
Foi nessas andanças que Mela engravidou
de Mister J, com a cobertura de Bela das Pernas Grossas, sua mãe, quando contava apenas
treze anos.
Desgostoso, Manuel cortou a mesada à
filha e a matriculou na escola pública. Acto contínuo, retirou o pagamento do
transporte para a escola e mandou-a a uma barbearia cortar o cabelo à moda Manu
Dibangu (lâmina Zero). Não tendo morto o amor que nutria pela filha, apesar da
desfeita, Manuel esperava, com a ajuda da mulher, que a filha se corrigisse.
Que as conversas de mulheres não fossem para o extorquir e mandar a filha em
libertinagem mas para que das privações que lhe impusera resultasse a correcção
a tempo de realizar o seu sonho de sempre: uma filha doutora de qualquer coisa,
prendada, respeitada, alembada e que dê frutos dignos de orgulho.
Longe de aliar-se às medidas impostas
por Manuel, Bela das Pernas Grossas, também ela trambiqueira em tempos que
já lá se foram, merecendo estrofe numa canção carnavalesca de então, colocou-se
contra o marido, insinuando que “a filha
estava diante de um pai diabólico”.
- Se teu pai não te “quero”, vamos lhe
sengar juntos. – Agitava Bela.
Para evitar que a dibala da filha
brilhasse ao sol de Abril e as amigas se apercebessem da punição paternal, cedo
Bela se prestou em acudir com as suas perucas, dividindo o orçamento mensal de
casa com as extravagâncias da infante.
Tão logo o couro cabeludo ganhou cor, as
perucas da mamã foram substituídas por um afro looking que estava em voga.
Com os dilates de Mela em aumento e
sempre acobertados pela mulher, Manuel começou a direccionar toda a sua atenção
ao filho varão, Nelito de Castro, que na escola progredia e já ultrapassara a
mana mais velha, embora houvesse uma diferença de três anos entre os dois.
Nelito recebia ao dobro: a mesada, as viagens pelo interior com o pai, e a qualidade do
colégio em que estava inscrito.
A faca que lhe trespassara o coração tinha
refreado os seus elogios à rapariga perante os amigos. Já se tinha exposto em
demasia e o tiro saira-lhe pela culatra. Apreciava o filho e dava-lhe todo o
apoio moral e financeiro para se tornar num grande homem à sua dimensão e à
dimensão dos seus sonhos, mas guardara, para depois de passar a fase pubertária,
os elogios que decidira encofrar.
Nelito era um rapaz feliz, distinto entre os
amigos e os primos. Era o explicador e solucionador das dúvidas matemáticas e bio-química dos primos. Mela, que se destacara na família até à sétima classe,
por conta própria decidira passar-se ao vale dos ignorados.
Adepto convicto da psicologia
behaviorista, Manuel dizia, vezes sem conta, que, para ele, a cada estímulo havia sempre uma resposta que se
traduziria em recompensa para os benfeitores e castigo para os mal-feitores.
Eu, o narrador, também conservo réstias de dúvidas quanto ao que ele referia
como mal-feitores. Se eram a mulher e a filha ou se pretendia atribuir-lhes
outros epítetos menos mais urbanos e campestres. Mas eram as palavras de Castro Manuel que, desiludido
com a filha, redobrara a atenção à mãe, já velhinha, que vivia os seus últimos
dias em Vav`Ayela, na Nganda.
...|||...
- António, o marron, é veloz, automático,
não muito dado a murmúrios. É pragmático, sem retórica, muito menos a conversas
para encurtar caminhos. Para ele é o passo corrido que encurta a distância e
não a conversa fiada do motor que ressona e geme, o engate, ou xaxatanso das
intimidades.
O Tony difere-se muito da Maria que me canta
e conta ao ouvido, e bem baixinho, todos os seus segredos e anseios. A Maria
cochicha, sussura, geme de prazer... O António não. Ele alivia-se, despacha-se,
enche a barriga e não degusta, nem mastiga. Não deixa ver, não deixa apreciar
as conversas fora do seu mundo. Desfaz-se do verde dos campos. Deixa tudo para
trás numa fracção de segundos. Gosto do
António mas é a Maria que me leva ao cosmos! – Monologou Manuel chegado da viagem, acomodado na sua SUV
automática.
...|||...
Era dia de anos de Mela, o décimo quarto
aniversário. Embora desatento ao calendário natalício da família, Manuel fez
questão de precaver-se, perguntando ao Nelo, com semana de antecipação, tão
logo chegou de uma incursão pelo interior do país aonde fora visitar a sua
progenitora.
-
Quando é o aniversário da tua irmãs?
- Vinte e dois de Novembro, papá. –
Respondeu o infante.
Marcou na agenda telefónica que lhe servia de alerta. No dia certo, comprou um livro
sobre Reorientação de adolescentes em conflito socio-familiar e,
aproveitando-se da saída da filha e da mulher, adentrou o quarto de Mela para
colocar o livro em local visível, seguido de uma declaração em em que se dizia “estar preocupado com o rumo que ela tinha
dado à sua vida, muito à esquerda do que ele, seu pai, preconisara para uma filha
primogênita e muito amad”. Na missiva, Manuel comprometia-se também em “desagravar progressivamente os castigos
(de que não se arrependia por tê-los imposto), à medida que fosse sentindo evolução na atitude comportamenta da
filhal, agora que tinha conseguido e lido, ele também, o livro que a oferecia”.
Saída às pressas, Mela deixara a gaveta
da banca entreaberta. Uma ponta de papel, com o símbolo médico, letras em
alfabeto mandarim e data recente, prenunciava uma curiosidade. O coraçao de
Manuel quase pulou da caixa. Teve de tomar um relaxante antes de voltar ao
quarto da filha para matar a curiosidade que encerrava aquele documento.
Nem tempo teve para pensar e desconfiar
ou, ao menos, puxar coragem para encarar de peito uma possível notícia
desagradável. Era um termo de responsabilidade exigido
pelo médico ginecologista Xen Gun Dan, assinado por Bela das Pernas Grossas, a
sua esposa, que acusava responsabilizar-se
por possíveis consequências imprevistas da coretagem a que a filha fora
submetida.
Da gravitreze de Jacinto à gravitorze de
Loló foi meio caminho. Mister J que já frequentava, à socapa, a casa de Mela
sempre que o pai se fizesse ausente, custeava o taxi da moça e mantinha encontros amorosos com ela. Para o pagamento dos lanches
e salões de estética, surgiu Loló, jovem pedreiro, dedicado no ofício de reparar fossas desabadas e
remendos em casas inundadas, mas sem instrução nem direcçao. Era um simples
biscateiro catingoso que fez desabar a fraca muralha de Mela. Na primeira
cantada de Loló, Mela cedeu toda a guarda ao ponto de passar a cuspir nos
quinze que se seguiram ao acto, desafiando as patas que no aviário da Quinta
Avenida chocavam aos ovos. Era a segunda vez, desta feita mais grave do que aos
treze...
...|||...
Como acha que deve terminar essa cena?
- O pai, ao se aperceber da segunda
gravidez, interna a filha num convento?
- Casa-a com o pedreiro catingoso?
- Corre a filha de casa?
- Corre a filha juntamente com a mãe?
Em um ou dois parágrafos, dê uma pista.