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terça-feira, janeiro 20, 2015

O FEIJÃO "ENXOTA CLIENTE"

Nos meus tempos de criança já tinha ouvido falar e visto o “peixe catana” ou “cikolamwenho”. Tão duro, tão duro que precisava de uma afiadíssima catana ou machado para o desfazer em bocados nem sempre ao gosto do retalhista/cozinheiro. Era o peixe que, em Kalulu, nos anos oitenta do século XX era vendido nas empresas cafeícolas Libolo I, Libolo II e Libolo III.
Tempos depois, com a fome que se seguiu aos dias das refregas pós-eleitorais de 1992, surgiram dois tipos de feijão. Um era o “espera cunhado” e outro o ”afugenta sogra”. O primeiro era de fácil cozedura, não demorando mais do que quarenta e cinco minutos. O segundo era de uma dureza nunca vista e que naqueles tempos de fome e penúria muito servia a algumas noras mal-educadas para afugentar as sogras.
- Mamã almoço hoje é feijão. Só que está já há duas horas e meia e não está a cozer. O gás, essa é segunda botija, e nada! - Diziam.
Quando pensava ter já ouvido e assistido a muita coisa, hoje fui surpreendido com o feijão “afugenta cliente”. Isso mesmo, “Afugenta cliente”. Não é bluff.
Fiz, com antecipação de 24 horas e reconfirmação de 4 horas antes o pretendido almoço, um pedido para pitéu em instância turística para o “magnata”, a digníssima e dois herdeiros do “trono sobático”. Gentil, como sempre, a gestora, parecia encaminhar o assunto em boa praia. Trocamos mensagens com as devidas cordialidades e formalidades. Um título e um agradecimento desse lado, outro título e agradecimento da praxe do outro lado.
- Papá, o almoço hoje é onde?- Perguntou Renato já acossado pela fome, ainda no meio do culto Metodista.

- Filho, ainda é cedo. Respondi-lhe com um vinco no rosto, dada a sua forma desconcertada de estar perante um local de adoração.
-Mamã, papá não está a falar onde vamos comer:- Resmungou, em busca de auxílio.
- Eu já disse que vamos almoçar num lugar turístico. Por agora devem prestar atenção ao culto e depois partimos para o almoço.
- Papá, vamos comer “papuço”? - Voltou a questionar, já mais alegre pela resposta.
- Sim. Vamos comer kakusu, se te portares bem.
O sol corria para o meio centro. As chapas que cobriam o local de cultos pareciam gritar. Estavam sendo esticadas pela temperatura que atingia o seu ponto mais alto. No estômago, as lombrigas brigavam descontentes e tudo fazia adivinhar outras perguntas sobre o local e hora do almoço.
- Mor, já confirmaste o almoço? - Desta vez foi a digníssima, talvez preocupada com a fome dos filhos (as mulheres têm essa “mania” de pressentir a fome dos filhos) ou mesmo reclamando o seu quinhão.
- Sim, já enviei mensagem a confirmar nossa ida ao local e obtive resposta garantindo que tudo estaria a ser preparado e pronto ao meio dia e trinta minutos.
“Teu culto finda aqui. Despede-nos Senhor. Dirija-nos até ao fim. Por teu excelso amor”! – O coro central entoou o seu último hino, o da despedida dominical.
Fez-se fila para saudar o pastor, o liturgista e os coristas perfilados à saída do templo físico. Renato corria de lado a outro. Se tinha apossado da igreja depois de duas horas e meia de “prisão” no seu imaginário traquina. Os apressados dirigiram-se aos veículos e motociclos e foram “rezar noutras freguesias”. Seguimos-lhe exemplo e procuramos por um ATM que encontramos sem muita demora. Fizemo-nos a caminho do Centro turístico que distava cerca de treze quilómetros.
- Papá olha praia! – Gritaram as crianças. A menina aproveitou lembrar-se que não tinha facto de banho.
- Não é praia, filhos. É lagoa natural. Aí não se nada. É perigoso.
- E só vamos comer mais nada?- Insistiu a menina.
- Sim, Mara, vamos comer e ir descansar em casa. Amanhã é dia de trabalho.
Estacionada a viatura, passamos pela cozinha que estava às moscas. Nem uma brasa acesa. Comecei a temer desconfiar das palavras amorosas da gestora que me garantira, de pés quase juntos, “encontrarás tudo pronto”.
-Será que já está mesmo pronto e só a espera que chegássemos?- Indaguei aos meus botões, sempre seguido pela digníssima e pelos putos que, por instantes, se tinham distraído com a exuberância da lagoa e deixado de perguntar sobre a comida.
- Boa tarde, jovens, podem mostrar-me o “gerente”?- Indaguei.
- Os três moços que jogavam à dama, entreolharam-se e apontaram-me o caminho da sala onde estaria o responsável.
- Boa tarde, jovem. É o gerente?
- Sim. Sou eu mesmo.
- A Drª fulana falou-lhe de quatro pessoas que viriam cá almoçar? O prato é kakusu…
- Sim, boa tarde, mano. Ela falou. Podem dirigir-se á mesa. Querem ficar na sala ou junto à lagoa? Também há sombra e cadeiras.- Aconselhou.
Escolhemos o espaço aberto, com uma visão mais ampla sobre a nascente natural barrada pela acção humana, resultando numa majestosa lagoa com margem betonada num dos lados. Os putos andavam de um lado ao outro como felino que demarca o seu espaço vital.
- Papá, quero andar de canoa.
- Papá, quero nadar nessa piscina bem grande.
- Papá, quero isso… - Renato e Mara não se cansavam de pedir o usufruto daquelas águas, entretanto barradas a nado.
E não tardou a explicação de Mara, que já sabia ler, ao irmão que via no papá um empecilho à sua vontade de mergulho.
- Mano, o papá tem razão. Aí está escrito “proibido tomar banho nesta lagoa”. É por isso que o papá não nos quer deixar tomar banho nessa lagoa.
Sem nado, as atenções voltaram à comida que demorava. A mulher, já impaciente, estava de pé, pronta a ir tirar esclarecimentos, quando o “gerente” se apresentou para o que chamou de uma pequena desculpa.
- Já está tudo pronto. Só falta o feijão!
- Só falta o feijão? Preferia que faltasse o kakusu que pode ser pescado por mim do que o feijão. Queres que aguarde aqui três horas a espera do feijão? – Questionei-o já com um vinco visível no rosto.
- Não chefe. Já está a ferver mas vai levar ainda algum tempo. É só mesmo o feijão que está a faltar.- Justificou-se, esfarrapado, o rapaz.

- Traz já o que tens e o feijão vem mais tarde. - Ordenou minha senhora algo aborrecida. Quatro peixes enxutos, bocadinho de mandioca e batata-doce, um molheco de tomate e cebola e nada mais. Os peixes tinham sido congelados, depois de grelhados, e aquecidos, estando secos e sem temperatura interior. O resto foram só reclamações e o feijão, ainda fervente, serviu mesmo o seu papel de afugentar os clientes que reclamavam de mesa em mesa.
Nota: Texto reeditado e publicado pelo Semanário Angolense, edição de 17.01.2015


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