Nunca é demais explicar que o meu engodo pela descrição de factos vividos e presenciados no Lubolo e Kibala resultam da minha descendência Lubolista/Kibalista.
Nestas linhas tentarei trazer à memória episódios distanciados há mais de vinte e cinco anos, mas que se mantêm intactos.
Embora sedentários, a caça entre os povos que habitam o Lubolo (Libolo) e a Kibala é uma actividade de importância transcendental, na medida em que permite o enriquecimento da dieta alimentar. Serve igualmente de exercício para aptidões mentais e físicas. Pois só homens dotados de inteligência e robustez são capazes de conseguir presas e desfazer-se de iminentes predadores.
Tal como em toda Angola, o ano é composto de duas estações: a estação chuvosa (nvula) que é mais longa (9 meses) e a estação seca, também conhecida como (kixibo) cacimbo. É nessa última que mais se pratica a caça por meio de queimadas (ùximika muízo)1.
As grandes extensões de terras comunitárias, incluindo as de caça, são, na teoria, "pertença" do soba/rei. O direito consuetudinário impõe limites geográficos não muito tangíveis, mas invioláveis. Ninguém, sem autorização do soba/rei, deve atear fogo ao capim para a caça.
É o soba ou os mais velhos da comunidade que planeiam o programa de caças durante os três meses de tempo seco.
Antes da caçada são preparados minuciosamente os instrumentos de caça: la honji l'isongo (arcos e flechas), l'ombua (cães), salamba (cesto de junco para transporte de animais de pequeno porte), tubia/tibia (lume), lambala,(archotes), lungua (cone feito de malha metálica), mbuety/ñondo (cacetes), etc., bem como o roteiro. As instruções são passadas ao pormenor e o seu cumprimento é seguido à risca. Qualquer desvio pode, não só, perigar a vida dos caçadores, mas também fracassar a caçada.
Para a operação, grandes espaços de capim seco são cercados e é ateado o fogo. A operação é feita de tal forma que os animais que se encontrem no espaço tenham apenas uma escapatória. Geralmente áreas já queimadas, pequenas florestas, encostas de rios com pouca vegetação, etc. Terminada a queima do capim e com a ajuda de cães, arcos e flechas, e outras armadilhas passa-se à procura dos animais que tenham escapado ao cerco.
Enquanto os mais velhos da comunidade se responsabilizam por apanhar os animais, os mais novos têm por missão carregá-los até ao local combinado para a despelagem e divisão. Por cada animal carregado, qualquer que seja o seu porte, um pedaço de carne era/é destinado ao transportador. Uma parte (metade do animal) é/era para o caçador e outra para os integrantes da caçada que a repartem em pedaços mais ou menos iguais. Ù-tona é o termo que se aplica ao acto de repartir os proventos da caça entre os caçadores.
Ao (muen'axi) dono da terra (rei/soba) ficam igualmente salvaguardados os seus direitos. Importantes pedaços de carne vão ao "palácio real" (zemba) para o seu consumo e dos visitantes da aldeia, pois é para lá que se dirigem aqueles que estejam de passagem e que não tenham família na aldeia.
Existe entre os Lubolo e Kibala outras formas de caçar: No período chuvoso ou impróprio para queimadas usam-se armadilhas (óbolo, indamba, ótuela, nzomba) e também armas de caça. Aqui, sendo actos individuais, o produtos da caça isenta-se de obrigações sociais, salvo para com o muen'axi e familiares directos.
As armadilhas são normalmente colocadas nos atalhos, por onde passam frequentemente os animais para os locais de alimentação e ou abebeiramento, ao passo que com as armas procuram-se igualmente por locais onde se possam encontrar animais que procuram por relva fresca ou água.
Lebres, pacas, seixas, veados, corças, nunces, palancas (castanhas), pacaças, raposas, cabras de leque, javalis, porcos-espinhos, canta-pedras e outras espécies são abundantes, e por isso, os mais caçados. Predadores como hienas, leões, leopardos e onças também habitam a região.
As carnes de moma (jobóia) e de nguvo (hipopótamo) são igualmente apreciadas pelos ambundu do Kuanza-Sul. A onça (ongo), enquanto animal "sagrado", deve ser presente ao rei/soba da aldeia e com ele fica a pele, símbolo de poder.
1- muizo= coutada, extensão de terra cujo capim é queimado para a caça.Luciano Canhanga