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sexta-feira, agosto 29, 2025

BRUNEIROS: MITOS E MEMÓRIAS

[Um conto de feitiçaria e lembranças]

Na vila de Kalulu, onde o capim seco dançava ao sabor do vento e os tambores ecoavam nas noites de lua cheia, havia um nome que se murmurava com respeito e temor em todo o Lubolu: Kakwete. Os mais velhos falavam dele em voz baixa, como quem teme acordar forças poderosas e adormecidas. Os mais novos, curiosos e atrevidos, tentavam espreitar-lhe a casa de pau-a-pique e coberta de capim e segredos.

Kakwete não era apenas um homem. Era o temido e respeitado bruneiro. O feiticeiro de todos os tempos e com quem não se "torrava farinha". Não havia ninguém de sua igualha. Era o mestre das artes ocultas. Diziam que quem quisesse subir na vida, fosse por trabalho e mérito ou por sorte, acabava por bater à sua porta. E quem não o fizesse, ficava para trás, como folha seca levada pelo tempo.

Os jovens tímidos, incapazes de conquistar uma donzela, recorriam ao "migosta", uma mistura de ervas e encantamentos que prometia abrir corações e fechar resistências. Só Kakwete sabia preparar tal feitiço com eficácia. Era como se o amor, a fortuna e o destino estivessem guardados nas suas mãos rugosas e nos seus olhos que pareciam ver além da carne.

Mas o nome de Kakwete não se quedava pelas fronteiras do Lubolu. Muito além, em terras que na minha meninice pareciam tão distantes quanto os contos de avós, havia outro nome que se erguia como sombra sobre todas as outras: Ciwiyawiya, o velho de Ndombe Inene.

Em Ndombe Grande — ou Ndombe Inene, como os mais velhos ovimbundu e os conservadores preferem — vivia o mais velho Ciwiyawiya. Diziam que ele não era apenas um bruneiro, mas o bruneiro dos bruneiros. O maioral. O mestre dos mestres. E os seus feitos, soprados pelos ventos da memória, ainda hoje se escutam nas fogueiras e folguedos das noites longas.

Durante as décadas de 70, 80 e 90, quando as rusgas militares varriam as aldeias em busca de jovens para o serviço obrigatório, Ciwiyawiya fazia o impossível: transformava rapazes na flor da idade em velhos alquebrados, cabelos algodoados, costas curvadas e passos lentos. Os soldados passavam, olhavam, e seguiam adiante. Só levavam os que não haviam sido tocados pelo velho.

O director municipal da cultura de Dombe Grande, homem de saber e memória, não hesita:

“Muitos jovens daquela época, hoje já idosos, juram que é verdade. Quando os militares vinham, só escapava quem fora tratado pelo mais velho.”

Era como se Ciwiyawiya tivesse um pacto com o tempo. Como se pudesse dobrá-lo, moldá-lo, e usá-lo como escudo contra a guerra. E assim, muitos escaparam, não pela força, mas pela astúcia de um homem que dominava os mistérios do invisível.

E surge, então, como em todo bom conto, a pergunta que atravessa gerações: terá existido alguém capaz de “torrar farinha” com Ciwiyawiya? Em Benguela, pelo menos, dizem que não. O velho era imbatível. Um nome envolto em lenda, mas também em testemunhos vivos — daqueles que juram ter visto, sentido ou vivido os efeitos da sua bruxaria.

Entre o real e o imaginário, entre o medo e o fascínio, os bruneiros como Kakwete e Ciwiyawiya continuam a habitar o imaginário colectivo. São sombras que caminham ao lado dos vivos, moldando histórias, crenças e destinos. E enquanto houver quem conte, haverá quem creia. Menos eu!

sexta-feira, agosto 22, 2025

A INTERPRETABILIDADE DO KIMBUNDU E O EXEMPLO DE "THUMBA NYI SAMBA"

O Kimbundu, uma das principais línguas bantu faladas em Angola, pode ser considerado uma língua interpretável por excelência, devido à sua riqueza simbólica, estrutura morfológica e forte ligação com a oralidade. Dentre outros elementos, ela possui:

Simbologia e metáfora: muitas palavras e expressões em Kimbundu carregam significados múltiplos, que vão além da tradução literal. Um nome pode conter uma história, uma bênção ou uma advertência ancestral.

Estrutura aglutinante: o Kimbundu forma palavras complexas a partir de raízes e afixos, o que permite decompor e interpretar significados com profundidade.

Tradição oral: a língua é um veículo de transmissão de sabedoria ancestral, mitos, provérbios e ensinamentos espirituais. Isso exige uma escuta atenta e uma interpretação contextualizada.


Um exemplo notável da profundidade interpretativa do Kimbundu é a expressão “Thumba nyi Samba”. As palavras thumba nyi samba, no contexto da expressão, remetem a apoios laterais, como se alguém estivesse à procura de suporte à direita e à esquerda.

A frase “ngene’ami thumba, ngene’ami samba”, frequentemente musicalizada, traduz-se como “não tenho onde me apoiar”, evocando a imagem de um órfão, um desamparado, alguém sem suporte familiar ou social o mesmo que "sem beira nem eira".

Essa expressão aparece em canções, provérbios e lamentos, reforçando o seu uso como uma forma de lamento existencial ou social, muitas vezes ligada à perda, abandono ou solidão.

Por isso, “Thumba nyi Samba” pode ser classificada como:

• Expressão idiomática: o seu significado não é literal; thumba e samba não se referem apenas a lados ou pessoas físicas, mas a apoios simbólicos.

• Adágio ou provérbio: carrega uma lição moral, frequentemente usada para reflectir sobre a importância da solidariedade, da família e da comunidade.

• Aforismo: é uma frase curta e memorável que expressa uma verdade ou princípio, usada em contextos filosóficos ou reflexivos.

• Ditado popular: é de uso comum entre falantes do Kimbundu e transmitida oralmente de geração em geração.

Em suma, “Thumba nyi Samba” ganha força e múltiplos significados em função do contexto e do seu uso. 

Preservar e valorizar expressões como esta é também um acto de resistência cultural e de afirmação identitária, um espelho da alma de um povo, cuja força reside justamente naquilo que desafia a tradução, sendo um exemplo claro de como o Kimbundu é uma língua que exige mais do que tradução — exige interpretação cultural e sensibilidade.


Texto publicado pelo Jornal Cultura a 11. Set. 2025

sexta-feira, agosto 15, 2025

OS GÊMEOS NA COSMOGONIA ANGOLANA: O CASO DE KAKULU NYI KABASA (LUBOLU)

Cosmogonia é o conjunto de narrativas, mitos ou crenças que explicam a origem do universo, da vida e das forças naturais. Nas tradições africanas bantu, especialmente em Angola, a cosmogonia está profundamente ligada à ancestralidade, à natureza e à espiritualidade, revelando-se em símbolos como os gêmeos, os montes, os rios e os nomes sagrados.

Mtes Kakulu nyi Kabasa: Gentileza Projeto Libolo

Na cosmogonia bantu, os gêmeos ocupam um lugar especial, sendo vistos como manifestações de equilíbrio, dualidade e força espiritual. Essa simbologia aparece em diversas línguas e culturas do território angolano.

Kimbundu: Kakulu nyi Kabasa

Umbundu: Njamba e Ngeve

Kikongo: Nsimba e Nzuzi

Cokwe: Lweji nyi Cinguli ("Kinguli")

A título de analogia com outros territórios e cosmogonia africanas, na África Oriental, os gêmeos são chamados por Apiyo e Adongo, sendo Apiyo a primeira nascida de gêmeos e Adongo a segunda.

No território ancestral do Lubolu — hoje dividido em três circunscrições municipais — junto ao majestoso rio Kwanza, erguem-se dois montes imponentes: Kalulu nyi Kabasa, que personificam gêmeos na tradição local. A ancestralidade Ngola (Ambundu) passou a nomear os gêmeos como Kakulu e Kabasa.

Nem sempre os gêmeos nascem de sexos diferentes. Quando são do mesmo sexo, ainda assim recebem os nomes tradicionais: Kakulu e Kabasa. O filho que nasce logo após os gêmeos é chamado de: Kaxinda ou Fuxi (Kimbundu), Kasinda (Umbundu) e Landu (Kikongo).

Na visão ambundu, Kakulu é considerado o primeiro a ver o sol, sendo o mais velho no imaginário tradicional — embora, segundo a ciência, seja o mais novo por nascer depois.

Essas designações revelam como os nomes africanos carregam significados profundos, conectando o indivíduo à sua linhagem, à natureza e ao mundo espiritual. Os gêmeos, em especial, são vistos como mensageiros, guardiões ou manifestações de forças cósmicas, e os filhos que os seguem também ocupam papéis simbólicos importantes.

sábado, agosto 09, 2025

O BONÉ E O CRACHÁ

A quentura do sol preguiçoso cedera lugar ao clima frio do cacimbo benguelense. Os raios mais atrevidos _ poucos_  penetravam pelas frestas entre as chapas de zinco do Pavilhão, tingindo de cobre os rostos apressados que cruzavam o recinto. Era fim de tarde, e o murmúrio da cidade e dos feirantes misturava-se ao ranger dos contentores, ao silvo distante do comboio, ao cheiro de peixe fresco e terra poeirenta e reclamar por rega. Ia eu a sair, quando os olhos me levaram a uma cena que parecia suspensa no tempo.

Ali estava ele — o soba — parado como quem procura um caminho entre mundos. Ao seu lado, uma senhora de olhar inquieto apertava a carteira contra o peito, e um jovem, que parecia filho ou seu sobrinho, observava tudo com espanto: as bancadas improvisadas, os tanques de criação, os apriscos, os estábulos, as lavras, as lojas. Era como se o mundo lhe tivesse sido revelado de súbito, sem aviso.

Desci os três ou quatro degraus com cuidado, como quem se aproxima de um altar. Antes de chegar até ele, retirei o boné — gesto simples, mas carregado de reverência.

— Boa tarde, papá. Posso ajudar em alguma coisa?

O soba ergueu o crachá com dignidade, como quem exibe um estandarte.

— Sim, filho. Sou soba daqui. Tive um julgamento e cheguei tarde. Estou com a minha ndona. A mim e a ela disseram que podemos entrar, mas o problema é o meu cunhado. O filho pode ajudar?

— Papá, dá-me um minuto e meio. Vou tentar conseguir um convite.

Ele assentiu com um sorriso cansado.

— Filho, a comichão é minha. Você "endende", nê? Então pode fazer dez minutos. Nós vamos te esperar aqui mesmo.

Entrei apressado, como quem carrega uma missão. Pedi dois convites emprestados e regressei com o mesmo passo urgente, situando o tempo não muito distante do prometido minuto e meio.

— Papá, o seu cunhado já pode entrar. Trouxe dois convites. Se complicarem a mamã, também pode apresentar este aqui. Se não precisar de usar, amanhã ainda poderá usar. Valem até segunda-feira.

O soba olhou-me com surpresa e gratidão.

— Ó filho, muito obrigado! Me fala ainda: você, com esse respeito todo, é daonde? Até te vi que só tiraste o chapéu para vir me cumprimentar.

— Sou do Kwanza-Sul. O meu avô era regedor, portanto seu colega. Via os mais velhos como lhe reverenciavam, e aprendi também na vida a valorizar os nossos papás.

Ele pousou a mão sobre o meu ombro com firmeza.

— Deus te acompanhe sempre, ó filho, e passe essa sua educação aos outros. Se ainda precisar de qualquer coisa, enquanto estiver aqui, é só dar a volta ao campo e perguntar pela casa do soba.

— Muito obrigado, papá.

Mostrei-lhe o caminho para o Stand de Benguela. O soba seguiu com passos lentos, acenando em gesto de gratidão. A esposa vinha atrás, e o cunhado atrás dela, como numa pequena procissão que expunha tambémo modus  vivendi e as relações hierárquicas nas comunidades .

Naquele instante, compreendi que há gestos que não se ensinam — apenas se transmitem. E que, às vezes, basta tirar o boné para abrir portas que não se vêem.


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Nb: Foto feita mediante pedido expresso e autorização.

Publicado pelo Jornal de Angola a 17.08.2025

sexta-feira, agosto 01, 2025

KAMACINQUENTA E KAQUINHENTU: O VALOR DAS OFERTAS E DA TRANSFORMAÇÃO

Lembrei-me de uma canção do rico folclore da Região Lunda, em Angola, que diz:

"Ana mapwo, mweko ko Ndundu kexi kumona bosse mapalika: bosse ngwehe kamacinquenta / mujimba walyeca ngwe longa lya huma!"

Tradução: As moças do Dundu, sempre que vêem o “boss” — alguém afortunado — solicitam: “Boss, dê-me um kamacinquenta (um valor), amolecendo o corpo como se fossem um “prato de barro” (longa lya huma).

Essa música evoca o termo kamacinquenta que, embora remeta ao número cinquenta, carrega um significado muito mais profundo. No universo cokwe, kamacinquenta é uma oferta simbólica — um gesto de reconhecimento, gratidão ou desejo — feito àqueles que ocupam um lugar de destaque ou que, de alguma forma, marcaram a nossa trajectória. Pode ser também um acto de beneficência.

A imagem do corpo que se amolece como longa lya huma — o prato de barro moldado pelo oleiro — é poderosa. Ela representa a vulnerabilidade e a maleabilidade do desejo, mas também a capacidade de transformação. O barro, inicialmente mole, é moldado com cuidado e intenção, e depois endurece, tornando-se útil e durável. Assim também são os vínculos humanos: frágeis no início, mas capazes de se tornar sólidos quando nutridos com respeito e reciprocidade.

Esse gesto de pedir e oferecer algo significativo encontra eco em outras culturas angolanas.

O termo kaquinhentu, cantado por Robertinho no universo ambundu, carrega o mesmo espírito. Embora os números sejam diferentes — cinquenta e quinhentos — o valor simbólico é o mesmo: dar algo que importa, seja material ou afectivo, como forma de reconhecimento.

A canção “Kaquinhentu” reforça esse valor com uma estrofe comovente:

"Se wala nyi kaquinhentu / bana tata, bana tata nyi mama / ene akuvalele/  

Kuxinge mamênu, kubete tatênu / ene akuvalelê, ene akusaselê ..."

Tradução:  Se tiveres um kaquinhentu (algo de valor), dá-o a teu pai e tua mãe (progenitores).  

Não ofendas a mãe nem batas no pai. Foram eles que te geraram e te cuidaram.


Ambos os termos revelam como diferentes etnias expressam, por meio da linguagem e da música, valores comuns de solidariedade, gratidão, desejo e transformação. O kamacinquenta e o kaquinhentu não são apenas números. São gestos que moldam relações, como o oleiro molda o barro!


Texto publicado pelo Jornal de Angola a 03 de Agosto de 2025