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sexta-feira, agosto 22, 2025

A INTERPRETABILIDADE DO KIMBUNDU E O EXEMPLO DE "THUMBA NYI SAMBA"

O Kimbundu, uma das principais línguas bantu faladas em Angola, pode ser considerado uma língua interpretável por excelência, devido à sua riqueza simbólica, estrutura morfológica e forte ligação com a oralidade. Dentre outros elementos, ela possui:

Simbologia e metáfora: muitas palavras e expressões em Kimbundu carregam significados múltiplos, que vão além da tradução literal. Um nome pode conter uma história, uma bênção ou uma advertência ancestral.

Estrutura aglutinante: o Kimbundu forma palavras complexas a partir de raízes e afixos, o que permite decompor e interpretar significados com profundidade.

Tradição oral: a língua é um veículo de transmissão de sabedoria ancestral, mitos, provérbios e ensinamentos espirituais. Isso exige uma escuta atenta e uma interpretação contextualizada.


Um exemplo notável da profundidade interpretativa do Kimbundu é a expressão “Thumba nyi Samba”. As palavras thumba nyi samba, no contexto da expressão, remetem a apoios laterais, como se alguém estivesse à procura de suporte à direita e à esquerda.

A frase “ngene’ami thumba, ngene’ami samba”, frequentemente musicalizada, traduz-se como “não tenho onde me apoiar”, evocando a imagem de um órfão, um desamparado, alguém sem suporte familiar ou social o mesmo que "sem beira nem eira".

Essa expressão aparece em canções, provérbios e lamentos, reforçando o seu uso como uma forma de lamento existencial ou social, muitas vezes ligada à perda, abandono ou solidão.

Por isso, “Thumba nyi Samba” pode ser classificada como:

• Expressão idiomática: o seu significado não é literal; thumba e samba não se referem apenas a lados ou pessoas físicas, mas a apoios simbólicos.

• Adágio ou provérbio: carrega uma lição moral, frequentemente usada para reflectir sobre a importância da solidariedade, da família e da comunidade.

• Aforismo: é uma frase curta e memorável que expressa uma verdade ou princípio, usada em contextos filosóficos ou reflexivos.

• Ditado popular: é de uso comum entre falantes do Kimbundu e transmitida oralmente de geração em geração.

Em suma, “Thumba nyi Samba” ganha força e múltiplos significados em função do contexto e do seu uso. 

Preservar e valorizar expressões como esta é também um acto de resistência cultural e de afirmação identitária, um espelho da alma de um povo, cuja força reside justamente naquilo que desafia a tradução, sendo um exemplo claro de como o Kimbundu é uma língua que exige mais do que tradução — exige interpretação cultural e sensibilidade.

sexta-feira, agosto 15, 2025

OS GÊMEOS NA COSMOGONIA ANGOLANA: O CASO DE KAKULU NYI KABASA (LUBOLU)

Cosmogonia é o conjunto de narrativas, mitos ou crenças que explicam a origem do universo, da vida e das forças naturais. Nas tradições africanas bantu, especialmente em Angola, a cosmogonia está profundamente ligada à ancestralidade, à natureza e à espiritualidade, revelando-se em símbolos como os gêmeos, os montes, os rios e os nomes sagrados.

Mtes Kakulu nyi Kabasa: Gentileza Projeto Libolo

Na cosmogonia bantu, os gêmeos ocupam um lugar especial, sendo vistos como manifestações de equilíbrio, dualidade e força espiritual. Essa simbologia aparece em diversas línguas e culturas do território angolano.

Kimbundu: Kakulu nyi Kabasa

Umbundu: Njamba e Ngeve

Kikongo: Nsimba e Nzuzi

Cokwe: Lweji nyi Cinguli ("Kinguli")

A título de analogia com outros territórios e cosmogonia africanas, na África Oriental, os gêmeos são chamados por Apiyo e Adongo, sendo Apiyo a primeira nascida de gêmeos e Adongo a segunda.

No território ancestral do Lubolu — hoje dividido em três circunscrições municipais — junto ao majestoso rio Kwanza, erguem-se dois montes imponentes: Kalulu nyi Kabasa, que personificam gêmeos na tradição local. A ancestralidade Ngola (Ambundu) passou a nomear os gêmeos como Kakulu e Kabasa.

Nem sempre os gêmeos nascem de sexos diferentes. Quando são do mesmo sexo, ainda assim recebem os nomes tradicionais: Kakulu e Kabasa. O filho que nasce logo após os gêmeos é chamado de: Kaxinda ou Fuxi (Kimbundu), Kasinda (Umbundu) e Landu (Kikongo).

Na visão ambundu, Kakulu é considerado o primeiro a ver o sol, sendo o mais velho no imaginário tradicional — embora, segundo a ciência, seja o mais novo por nascer depois.

Essas designações revelam como os nomes africanos carregam significados profundos, conectando o indivíduo à sua linhagem, à natureza e ao mundo espiritual. Os gêmeos, em especial, são vistos como mensageiros, guardiões ou manifestações de forças cósmicas, e os filhos que os seguem também ocupam papéis simbólicos importantes.

sábado, agosto 09, 2025

O BONÉ E O CRACHÁ

A quentura do sol preguiçoso cedera lugar ao clima frio do cacimbo benguelense. Os raios mais atrevidos _ poucos_  penetravam pelas frestas entre as chapas de zinco do Pavilhão, tingindo de cobre os rostos apressados que cruzavam o recinto. Era fim de tarde, e o murmúrio da cidade e dos feirantes misturava-se ao ranger dos contentores, ao silvo distante do comboio, ao cheiro de peixe fresco e terra poeirenta e reclamar por rega. Ia eu a sair, quando os olhos me levaram a uma cena que parecia suspensa no tempo.

Ali estava ele — o soba — parado como quem procura um caminho entre mundos. Ao seu lado, uma senhora de olhar inquieto apertava a carteira contra o peito, e um jovem, que parecia filho ou seu sobrinho, observava tudo com espanto: as bancadas improvisadas, os tanques de criação, os apriscos, os estábulos, as lavras, as lojas. Era como se o mundo lhe tivesse sido revelado de súbito, sem aviso.

Desci os três ou quatro degraus com cuidado, como quem se aproxima de um altar. Antes de chegar até ele, retirei o boné — gesto simples, mas carregado de reverência.

— Boa tarde, papá. Posso ajudar em alguma coisa?

O soba ergueu o crachá com dignidade, como quem exibe um estandarte.

— Sim, filho. Sou soba daqui. Tive um julgamento e cheguei tarde. Estou com a minha ndona. A mim e a ela disseram que podemos entrar, mas o problema é o meu cunhado. O filho pode ajudar?

— Papá, dá-me um minuto e meio. Vou tentar conseguir um convite.

Ele assentiu com um sorriso cansado.

— Filho, a comichão é minha. Você "endende", nê? Então pode fazer dez minutos. Nós vamos te esperar aqui mesmo.

Entrei apressado, como quem carrega uma missão. Pedi dois convites emprestados e regressei com o mesmo passo urgente, situando o tempo não muito distante do prometido minuto e meio.

— Papá, o seu cunhado já pode entrar. Trouxe dois convites. Se complicarem a mamã, também pode apresentar este aqui. Se não precisar de usar, amanhã ainda poderá usar. Valem até segunda-feira.

O soba olhou-me com surpresa e gratidão.

— Ó filho, muito obrigado! Me fala ainda: você, com esse respeito todo, é daonde? Até te vi que só tiraste o chapéu para vir me cumprimentar.

— Sou do Kwanza-Sul. O meu avô era regedor, portanto seu colega. Via os mais velhos como lhe reverenciavam, e aprendi também na vida a valorizar os nossos papás.

Ele pousou a mão sobre o meu ombro com firmeza.

— Deus te acompanhe sempre, ó filho, e passe essa sua educação aos outros. Se ainda precisar de qualquer coisa, enquanto estiver aqui, é só dar a volta ao campo e perguntar pela casa do soba.

— Muito obrigado, papá.

Mostrei-lhe o caminho para o Stand de Benguela. O soba seguiu com passos lentos, acenando em gesto de gratidão. A esposa vinha atrás, e o cunhado atrás dela, como numa pequena procissão que expunha tambémo modus  vivendi e as relações hierárquicas nas comunidades .

Naquele instante, compreendi que há gestos que não se ensinam — apenas se transmitem. E que, às vezes, basta tirar o boné para abrir portas que não se vêem.


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Nb: Foto feita mediante pedido expresso e autorização.

Publicado pelo Jornal de Angola a 17.08.2025

sexta-feira, agosto 01, 2025

KAMACINQUENTA E KAQUINHENTU: O VALOR DAS OFERTAS E DA TRANSFORMAÇÃO

Lembrei-me de uma canção do rico folclore da Região Lunda, em Angola, que diz:

"Ana mapwo, mweko ko Ndundu kexi kumona bosse mapalika: bosse ngwehe kamacinquenta / mujimba walyeca ngwe longa lya huma!"

Tradução: As moças do Dundu, sempre que vêem o “boss” — alguém afortunado — solicitam: “Boss, dê-me um kamacinquenta (um valor), amolecendo o corpo como se fossem um “prato de barro” (longa lya huma).

Essa música evoca o termo kamacinquenta que, embora remeta ao número cinquenta, carrega um significado muito mais profundo. No universo cokwe, kamacinquenta é uma oferta simbólica — um gesto de reconhecimento, gratidão ou desejo — feito àqueles que ocupam um lugar de destaque ou que, de alguma forma, marcaram a nossa trajectória. Pode ser também um acto de beneficência.

A imagem do corpo que se amolece como longa lya huma — o prato de barro moldado pelo oleiro — é poderosa. Ela representa a vulnerabilidade e a maleabilidade do desejo, mas também a capacidade de transformação. O barro, inicialmente mole, é moldado com cuidado e intenção, e depois endurece, tornando-se útil e durável. Assim também são os vínculos humanos: frágeis no início, mas capazes de se tornar sólidos quando nutridos com respeito e reciprocidade.

Esse gesto de pedir e oferecer algo significativo encontra eco em outras culturas angolanas.

O termo kaquinhentu, cantado por Robertinho no universo ambundu, carrega o mesmo espírito. Embora os números sejam diferentes — cinquenta e quinhentos — o valor simbólico é o mesmo: dar algo que importa, seja material ou afectivo, como forma de reconhecimento.

A canção “Kaquinhentu” reforça esse valor com uma estrofe comovente:

"Se wala nyi kaquinhentu / bana tata, bana tata nyi mama / ene akuvalele/  

Kuxinge mamênu, kubete tatênu / ene akuvalelê, ene akusaselê ..."

Tradução:  Se tiveres um kaquinhentu (algo de valor), dá-o a teu pai e tua mãe (progenitores).  

Não ofendas a mãe nem batas no pai. Foram eles que te geraram e te cuidaram.


Ambos os termos revelam como diferentes etnias expressam, por meio da linguagem e da música, valores comuns de solidariedade, gratidão, desejo e transformação. O kamacinquenta e o kaquinhentu não são apenas números. São gestos que moldam relações, como o oleiro molda o barro!


Texto publicado pelo Jornal de Angola a 03 de Agosto de 2025