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segunda-feira, março 29, 2021

IMBWA YAKAMBE NGANA* |1|

A veterinária brasileira Renata Saccaro (2011) diz que para os cães, o proprietário é um ser superior, a quem obedecem e são fiéis. Segundo a autora, "estudos revelaram que o cachorro é o animal que melhor entende o homem". 

Infelizmente, em Luanda, e aludindo àquilo que me tem sido dado a ver, algumas pessoas desfizeram a amizade com os cães de quem um dia "foram amigos e se serviram da sua guarda e ou companhia.
Pessoalmente, já fiz óbito e enterro digno de um cão. Eu era criança ainda no final dos anos setenta do século passado.
Estávamos ainda em Kitumbulu, fazenda do meu avô paterno.
Atenção era um pastor alemão, exímio caçador. Um alemão agropecuário na região, entre os potentados de Kuteka e Thumba, ofertara o canídeo ao meu progenitor.
Atenção ia sozinho à caça e arrastava o animal até à casa. Quando não pudesse fazê-lo, parava e ladrava até que o meu pai fosse ajudá-lo.
Certo dia, Atenção foi à caça e cruzou com uma onça. Atenção lutou valentemente. Chegou maltratado e dos ferimentos não resistiu. Fizemos-lhe um óbito "De pessoa". Foi minha primeira experiência.
Depois o Sô António, meu pai, comprou o Tigre. Era preto, pelos lisos. Chamávamos-lhe "cão mulato". Também caçava quando integrando a caravana humana. Não era caçador independente como o Atenção mas era melhor do que outros da aldeia. Já vivíamos no Rimbe, aldeia antecessora e que ficava há dois milímetros da actual Pedra Escrita (Munenga, Libolo).
Quando o Tigre morreu, de velhice ou doença, eu contava uns seis anos e já participei mais activamente no seu enterro. Sem urna mas envolto em cobertor e lançado em uma cova com um metro de profundidade e deixando-me numa grande comoção.
Essas estórias reais servem de antecâmara para repudiar o tratamento indigno que venho assistindo aos que ainda são conhecidos como "melhores amigos do homem", lugar que vão, nas cidades, perdendo para o telemóvel.
Vejo cães abandonados, aparentemente sem dono, alimentando-se no lixo, e sofrendo pedradas de "meninos também sem família". Quando enfermos ou mortos por doença ou atropelamento, apodrece nas estradas até decomposição total. É, para mim, muita falta de zelo e amor.
Defendo que quem não consegue cuidar um cão que não compre/receba (mesmo que de oferta). E se tiver, que faça como o meu pai tratava o Atenção que não comia nada cru e quase se fazia à mesa connosco. O Tigre foi mais "meu filho" do que dele e comia à mesma hora que nós.
* Cão sem dono.

segunda-feira, março 22, 2021

PATRÍCIA & UM PATRÍCIO

Ela era loira, quase albina, e ele negro "etíope" de cabelo grisalho, barba aparada e porte atlético. Parecia atirador num filme de pistoleiros.

Patrícia tinha ares de cow girl: botas altas e negras. Negras da cor do patrício e alta como aquele patrício. Aos dois, quando se pensa num western, só faltavam os equinos. Ela era meiga. Meiga como junco.
Cruzaram à entrada do restaurante Zé dos Cornos, nas Honduras.
Fazia sol e as ondas atlânticas projectavam os ventos às montanhas. Trazido de África, o vento esvoaçavam as roupas leves daqueles dias quentes, mostrando o que o pudor procurava, sem sucesso, guardar em Patrícia. E as tiras avermelhadas, o deserto sem relva, entre os montes aquém gola e a faixa de gaja, ficavam ao léu.
Sentaram-se, por casualidade, à mesma mesa. Castanha como takula. Patrícia enfiou um tubo entre a boca e o copo, sorvendo o fluído de coco. Ao patrício foi servido um destilado de cana-d'açucar e aromatizado.
Planejavam calados, enquanto os pés incontinentes procuravam abraços. Eram únicos nas Honduras.
E quando os pratos começaram a chegar, Patrícia não se conteve e partiu ao ataque:
- Please, can you speak Portuguese or English? I'm from Portugal. I'm on hollidays (por favor, podes falar Português ou Inglês, sou Portuguesa e estou de férias).
- Muito gosto. Sou angolano. I'm here for work (Estou em trabalho).
Apresentados, magicamente encostaram os assentos em direcção ao outro. O suor começava a baixar. Eram reacções físico-químicas num laboratório de tédio. Patrícia estava determinada em atacar. Afinal, tinha um motor solitário 3.9 em busca ardente de estrada plana e longa. O seu íntimo reclamava velocidade há muito postergada.
- Diz lá, tu não comes sopa como entrada?
- Nós não. A nossa entrada é mandioca fervida e jinguba ou mbomba e banana que, regra geral, tomamos em família, minutos antes da refeição principal.
Entre olhares discretos do patrício e incursões territoriais velados de Patrícia, correu mais alguma surdina. Foi pouco tempo que levou o jovem a pedir mais um trago.
Patrícia fizera da palhinha uma palha recortada a dentes. Era tanta a sede por um patrício.
- E tu comes galinha com puré em vez de arroz?
- Sim. Nós comemos funji. Com o arroz alimentamos as galinhas. A galinha e os ovos é que se tornam alimentos para um patrício como eu.
- E os ossos? Vejo que os comes todos!
- É isso mesmo. Os ossos lembram-me o esforço em alimentá-la até chegar à fase da cabidela. Filosoficamente, nós procuramos comer grande parte da galinha, desperdiçando apenas os dejectos, as unhas, o bico, o papo e as penas.
- Mas é uma pena que não deixes ossos para o gatinho!..
- O gatinho? Os felinos são caçadores. Felizmente, nós amamos a natureza e protegemos todos os bichos domésticos e selvagens. Não damos veneno aos ratos, porque pode afectar as galinhas e os cães. Deixamos os ratos para o repasto dos gatos.
- E o cachorro?
- Ah, pois é! O cachorro. Os nossos cães adoram umas bolas de pirão embebidas em molho e ossos triturados. Isso quando não são dias de caça.
- E o que acontece em dias de caça, ó, ó patrício?
- Bem, Patrícia. Sei que é assim que te chamas.
- Sim. Chamo-me Patrícia.
- Pois é. Trataste-me por patrício e revejo-me em Lumumba.
- E quem é esse Lumumba?
- É o Patrice Lumumba cujo exemplo de luta pela liberdade e apoio aos povos subjugados nos valeu o epíteto colectivo de patrício. Mas voltemos ao cão.
- Pois é. Dizias que os vossos cães só comem ossos quando não há caçada...
- Sim Patrícia. Já imaginaste uma rede rota apanhar peixe? Então, pensa no cão que vai repleto de carne temperada à caçada. Dorme na primeira sombra!
- É por isso que vejo os patrícios a comer os ossitos da galinha e a desprezarem a sopa?
- Nim! Às vezes damos a sopa ao cachorro, quando não é de feijão. Mas os ratos são mesmo para o gato!
Selaram o kisoko na madrugada, dando voltas à terra redonda. As viagens, os odores e os prazeres tornaram-se um só.

segunda-feira, março 15, 2021

GALINHA COM DUAS MOELAS

No tempo ainda da trafulha, um jovem tecnocrata foi chamado ao governo (jovem naquela época em que a média etária era de sessenta e cinco. Ele tinha cinquenta e seis). 

Constrangido por ter sido levado àquele grupo de má-fama, mas sem como dizer não, lá o jovem adulto decidiu entrar, para não ser expurgado ou mesmo expatriado, tendo assumido o grande desafio de liderar o Organismo mais importante do seu governo. Kambudi era o coordenador das principais empresas de commodities e, por isso, responsável pela entrada de moeda externa e demais compromissos externos do Estado. Em linguagem terra-a-terra, diríamos que tudo passaria por ele, embora o chefe máximo não fosse ele. Longe desse poder, os seus dependentes reclamavam, dia sim, semanas também: - Chefe, os outros andam de Mercedes e nós sempre de kupapata. Pode fazer algo-algum junto daqueles exportadores sob dependência de Voss'Excelência? 
- Cuidado. - Dizia ele, a olhar para o seu anelar que conservava uma modesta aliança de ouro monocromático com meros dois milímetros de largura e um de espessura.
- Há indivíduos ávidos de um pequeno pedido para descontarem um grande buraco.
Olhou para o anelar e mediu com palavras.
- Você pede a falangeta e eles cortam o dedo todo para justificar com o seu pedido. Cuidado!
Os dias foram passando. Ele na sua filosofia ética do exercício pleno da probidade. Os seus miúdos, sedentos de extravagâncias induzidas por vozes bairrentas, a reclamar a fome da barriga cheia, sempre ao ataque.
- Chefe, chefe! Olha a meta, chefe. Datamos quase a terminar o mandato. Os outros fizeram pé-de-meia. Pelo menos, faça-nos sentir o roncar de um motor com cilindrada. - Apelou, quase se ajoelhando, um neófito na equipa.
Era dia de feriado e o chefe decidira gastar o dia com os liderados, num exercício de coesão. Kambudi Neto era, na verdadeira acepção da palavra, um Líder que ensinava com exemplos de hombridade, firmeza, bom ser e bem fazer. Era acérrimo seguidor de Machel, para quem os governantes deviam "ser primeiros nos sacrifícios e últimos nos benefícios",
- Jovem, imagine que tem uma capoeira e um cozinheiro. Já viu galinha com duas moelas?
- Não chefe.
- Então, quando a ordem for para matar uma galinha e lhe aparecerem duas moelas no prato, desconfie. A capoeira pode fechar!
- Mas chefe, que tem a ver a capoeira e a empresa?
- Note bem. A capoeira é a empresa. Os activos são as galinhas. Se você manda o cozinheiro (gestor da empresa) matar uma galinha e te apresentar duas moelas no prato, é porque uma galinha levou para casa. Tenha cuidado em fazer pedidos de cabidela a um cozinheiro que gosta de galinha! - Rematou Kambudi.
O repasto prosseguiu, apimentado com isso e aquilo, lições de vida e frases para fazer o tempo voar. Os mais atentos retiveram a lição. Outros agiram como a flecha fleumática: entra de um lado e sai pelo outro.


GALINHA COM DUAS MOELAS

segunda-feira, março 08, 2021

A TUTELA DOS SOBREVIVOS

Um homem de negócios, com três irmãos mais novos, casado e pai de quatro filhos, morreu num acidente de aviação.

Kexi Jina era a figura mais influente da sua família e comunidade. Sempre velou pela harmonização familiar e educação dos seus parentes. Os seus filhos: Lamba, Maka, Vitangi e Neso frequentavam as melhores escolas, juntamente com seus primos.
Preocupados com a educação de seus quatro sobrinhos, Mukwasenu, Mucinenu e Mukwatenu, os irmãos do finado, reuniram-se para acertar como proporcionar uma educação aceitável aos meninos órfãos.
Chegados à casa de Kexi Jina, o finado, e junto da viúva, Mukwasenu anunciou que ficaria com os sobrinhos Lamba e Neso. Mucinenu não mugiu nem tugiu. Dele apenas se ouviu silêncio. 
Mukwatenu, o irmão caçula, embora estivesse ainda a formar-se e sem vida estável ou estruturada, decidiu tomar Vitangi como sua protegida.
- Manos, não vejo outra solução senão levar a sobrinha Vitangi para minha casa e crescermos juntos. Onde eu comer, onde eu dormir e onde eu tirar para estudar ela também usufruirá, pois este foi o sonho do nosso finado irmão, ter os filhos e os sobrinhos todos formados. - Disse, ao que Mukwasenu, irmão mais velho, concordou e elogiou.

De Mucinenu, irmão intermédio, nada se ouvia. Maka estaria condenada a ficar com a mãe que já decidira voltar ao Congo Democrático, sua terra de procedência.

Perante tal situação e quanto o irmão mais velho fazia as contas e já bastante chateado pela falta de atitude de Mucinenu, Mukwatenu voltou a anunciar:
- Já que o mano "Muci" não abre a boca, levo também a "Kamaka" juntamente com Vitangi e assim a cunhada fica mais aliviada. Vamos dar a educação familiar e a formação que o mano Kexi Jina sempre desejou para os seus filhos e sobrinhos. - Rematou, ganhando uma salva de palmas por parte de Sambukila, a viúva, e do irmão Mukwasenu.

No seu canto, cachimbo na boca e boina ligeiramente inclinada a cobrir-lhe parte do rosto, Mucinenu parecia distante daquele cenário. Não tinha emitido sequer uma opinião. Quando os dois manos se preparavam para se despedir e anunciar os dias em que voltariam para levar os sobrinhos, Mucinenu pediu a palavra.
- Alto ai! Um momento. Também quero falar.
- Falar o quê, se quando devias ter tomado decisão não o fizeste e forçaste o nosso irmão caçula a assumir uma responsabilidade para a qual não está preparado? Não tens direito à⁹ palavra e não amasses a nossa paciência. - Repreendeu Mukwasenu, o mais velho entre os três.
- Não, mano, por favor. Deixe-me falar. - Suplicou Mucinenu.
- Mano vamos ouvir o que ele vai falar. Mesmo sabendo que nada alterará o que já aqui foi decidido. Só espero que não venham poucas vergonhas dessa boca. - Ironizou Mukwatenu.
- Ok. Vocês se dividiram os sobrinhos. Tudo bem, eu concordo. E quem vai ficar com a viúva? Deixaram-na para mim? Se é isso que vocês pretendiam, eu aceito e fico com ela!

segunda-feira, março 01, 2021

UMA RODADA PARA AS "PROCURADORAS"

A sala tinha um movimento de pessoas entrantes e saintes. Algumas mesas, ocupadas por notáveis mediatizados eram palco de olhares discretos ou mesmo mais direccionados.

Pessoas entravam, pessoas saiam e os garçons, movimentavam-se de lado a outro, ora em saída, ora entrando, perguntando, respondendo, levando e trazendo. Tudo corria numa troca de pratos, talheres, copos limpos e usados.
A mesa n° 3 era, até então, a mais calma. Pouco se pedia. Estava ocupada três damas, duas delas com um terço de corpo vestido e o resto à mostra. Uma cadeira estava propositadamente vazia. Passou a ser o centro das atenções quando, do alto do seu conhecimento, o chefe de sala gritou:
- Por favor, uma rodada para as procuradoras!
Estavam há hora e meia "kanjonjando" cada uma um copo de fino (cerveja em copo). Uma das supostas procuradoras tinha o cabelo-extensão até aos glúteos e fazia gestos libidinosos ao pegar o corpo alto e fino do copo de cerveja. A outra tinha um corte de rapaz desocupado, sorvendo o líquido borbulhante com a ajuda de um caniço plástico. Apenas uma, a terceira das procuradoras, se achava melhor vestida e com gestos moderados. Parecia discreta e tinha o cabelo e pintura de gente.
- Três digníssima por cá? - Perguntou ManZekenu a um dos garçons.
- Sim, kota. Isso mesmo procuradoras. É comum lugares como esse ter procuradoras. Ao fim do dia acontecem muitas coisas, nos balneários, nos carros e outros locais além-bar.
ManZekenu ainda ignorante, voltou a fazer uma circunscrita viagem visual para conferir os falares, as cores, as silhuetas, os gestos e até os odores.
- Mas, ó puto, a minha prima Visolela é procuradora junto da DNIC. Essas manas procuram junto de que instância? - Interrogou inconformado com a explicação anterior.
- Aqui, mesmo, kota.
A curiosidade do ManZekenu subiu ao pico. - Aqui, a beira-rio, num restaurante flutuante, sem esquadra, embora haja quadrilhas a solta, três procuradoras a procurar o quê?
- Relaxa, kota. Procuradora é pessoa que procura. Elas procuram por quem as pague algo para comer e principalmente para beber. O resto é questão de acerto entre a procuradora e o pagador!