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quarta-feira, maio 13, 2020

BALA PROVOCANTE (V)


Já não sei quem era o aniversariante. O quintal estava requintado em manjares e pessoas que há bom tempo não se viam. Ramos de palmeira e até mesmo de cedro engalava os cantos, segurando balões e outros adereços.
- Quenhê, então que está a despejar água da cozinha p'ro quintal - Indagou dona Tetê, a esposa de Pouca sorte, que recebia e acomodava os convidados e vizinhos chamados pelo cheiro e pelo entra-e-sai de pessoas e coisas de ver de-vez-em quando.
- É ninguém, mamã. Respondeu Rosalina, uma das sobrinhas de casa, convidada para dar sangue à confecção de salgadinhos e outros acepipes que os homens em falas altas e galhofa, no quintal, apreciavam com paladar aguçado.

Tinham passado trinta e picos anos desde o último pingo de água, na torneira instalada entre a porta da cozinha e o quintal que estavam agora cimentados, ao contrário do ano de 1983. 

De repente, o quintal se transformou em uma cacimba, obrigando os mais velhos, dentre eles o anfitrião Pouca Sorte, a encolherem sucessivamente os pés, as pernas e a mesinha que carregava os comíveis e bebíveis.

Na cozinha, as mulheres pensavam numa borrada dum homem qualquer que tivesse as canecas já acima do limite. No quintal, os homens botavam, silenciosos, as culpas nas mulheres que estavam na cozinha, até que Pouca Sorte mandou-lhes um grito de homem.

- Mas, vocês aí então na confecção alimentar, qual é o azar desta água. Alguém falhou na panela e entornou no chão? Passem pelo menos uma vassoura e um pano-de-chão!

- Não é aqui, ti Pouca Sorte. A água está a sair mesmo aí, no quintal. Também já se perguntamos quenhê o tio que em vez de entornar cerveja na boca serviu 'mbora no cimento do quintal. 

A afirmação de Rosalina fez Pouca Sorte viajar no tempo. No tempo em que a casa era um cubículo, sendo o beco mais largo. Era ainda tempo de água abundante nos quintais de pau-a-pique e quintais feitos de aduelas. As kavwanzas e os kangonyeros eram poucos e as balas disparadas podiam ser contadas em número e recontadas em estórias. Lembrou-se, pois, daquela briga com o diamporô Matengó disparando um balázio que se enterrou no chão. Nem aquela casa ainda era dele. Viajou ainda mais aos detalhes e locou soltou em solilóquio:
- Só pode ser. Será que encontrou alojamento na conduta que atravessa o quintal? Só pode ser.- Finalizou ... 
E não é que ninguém imaginava o disparo de há trinta e tal anos? Nem mesmo ele, Pouca Sorte, fazia ideia!

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