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quarta-feira, agosto 01, 2018

EXAME COM FEITIÇO

Para os filósofos, a tentativa de buscar uma explicação sobre os fenómenos à volta do homem levou os pensadores clássicos a inventarem mitos ou primeiras tentativas de descrição e explicação racional. Mas não era ainda razão pura. Com os mitos, surgem também as crenças metafísicas, religiosas ou divindades. Umas monoteístas, como os Judeus e “maometanos”, e outros politeístas, como os helénicos. Mas não era ainda razão pura. O povo bantu transporta e conserva ainda (em certa dose) as crenças no além, mesmo entre os alfabetizados e diplomados. “A crença no feitiço (para os Tucokwe, por exemplo) é um dado da realidade material e espiritual: todo mal ou doença, toda morte tem como causa o feitiço (Manassa, 2011:54).

Conta-se que, numa aldeia de Kisama, margem esquerda do manso Kwanza. À direita Katete e seus verdejantes campos de sisal e algodão, no tempo de outra senhora. A frequência da escola se tinha tornado obrigação para os mancebos. A igreja protestante ali implantada apelava aos pais, dias sim, semana também, que “kubeza Nzambi nyi kudilongesa kutanga nyi kosoneka ufolo wakadyanga” (louvar a Deus e aprender a ler e a escrever é libertar-se).
Entre os instruendos havia os aplicados, já mais crentes em Deus do que em deuses e em feitiço. Miguel, porém, tardava em libertar-se do que os seus amigos chamavam crendice.
- O feitiço fala alto, até no silêncio das águas do Kwanza. - Dizia Miguel. Assim, enquanto seus amigos se aplicavam na escola, ele procurava por adivinhos e adorava amuletos, sendo o de sua preferência e a quem prestava cultos diários, o “deus da sabedoria". Atestava que “com um bom feitiço nenhum aluno precisaria de estudar para fazer o exame da quarta classe”. Assim pensou e assim procedeu.
Depois da quarta classe feita no posto de pregação da Igreja Protestante Americana, os rapazes foram todos instados a requerer o exame extraordinário ao Secretário de Educação da Província Ultramarina de Angola. Decorria o ano de 1959. A vila de Katete ficou pequena, ante a presença de jovens e adolescentes que procuravam pela quarta classe que os habilitaria a serviços menos penosos nas roças e nos serviços públicos.
- Ter quarta classe é ascender à vida de muitos brancos e poucos pretos.- Dizia-se. O individuo, num posto em que o administrador é semi-kifofo, é pessoa de respeito. Na roça, você já não apanha chicote de branco iletrado e nos serviços públicos, você é mesmo kilamba. Ter quarta classe é como atravessar o Kwanza a nado, sem precisar canoa. Dizia o missionário Tailor Mulawla.
Miguel, astuto, sempre entre a ciência dos missionários e o oculto dos avoengos das bwalas de Kixinge, também requereu o exame. Antes de amarrar a trouxa com os mantimentos e as roupas de saída que usaria no dia do exame, fez-se ao interior. Tinha parentes em Ndemba Xyo e Kixinje, velhos afamados em imobilizar leões e elefantes por força de feitiço.
- Meu avô fala e o mais feroz dos leões da Kisama se ajoelha, deixando-o passar. - Gabava-se. Foi por isso dormitar em casa do avô Kateko que lhe pediu uma lapiseira que passaria a noite nos mahamba. Era BIC azul.
- Mulawl’ami, ambule ngo (deixa só, meu neto). – Dizia ele no seu Kimbundu refinado. – Os outros vão fazer exame e vão xumbar. Esses brancos são malandros. Você não vai precisar se amassar. É só sentar, pousar lapiseira sobre o papel que te derem e as respostas virão com a força e o conhecimento dos nossos antepassados. A caneta é que se vai levantar e escrever sozinha.
Os coetâneos de Miguel esmeraram-se na preparação e responderam o que sabiam. Hora e meia para exame. Lá fora, a multidão assistia a todos. Pais, irmãos, tias expectantes, muita gente a assistir e proclamar aos seus, ávidos de que transitem para a categoria de “gente de respeito”. Outros continuariam na bwala a criar porcos, a apanhar chicotes na tonga. Uns poucos, os teimosos de sempre, preparar-se-iam, nos intervalos que o pouco tempo de um campestre não permite, para se mais um exame.
Miguel fez-se também à sala do exame. Calções limpos, brancos. Únicos de saída que não usava nem mesmo para o culto religioso em que era um pisca-pisca. Folha de perguntas por cima da carteira, o tempo foi passando por ele. Dez, vinte, trinta, sessenta minutos. Miguel nem letra A tinha rabiscado. Na cabeça apenas a recomendação do avô Kateko: “A lapiseira vai levantar para escrever as respostas na folha branca que te derem”. Esfregava as mãos como um envergonhado que busca pela coragem. Lá fora, expectantes, e vendo outros meninos já saído meio satisfeitos pelo desempenho, os parentes de Miguel gritavam.
- Escreve Miguel, escreve! Miguel soneka kya, itangana yala ubita (o tempo está a passar)!
Miguel deixou o tempo passar por ele. Era tanta a ansiedade que ficou sem as unhas de tanto as roer. Às tantas, ficou mesmo com a impressão de que a esferográfica se movimentava, aos poucos, saída da posição horizontal à oblíqua. Ledo engano. Apenas ilusão de óptica. Continuava estática, no lugar em que fora depositada. Quando pensou em desistir da possibilidade de o feitiço resolver as equações e inequações matemáticas, já nem dez minutos lhe restavam. Censurado por todos, apenas o pranto lhe fez companhia na travessia do Kwanza caudaloso. Tal como a bíblia cristã, que conhece, atesta que "... assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta" (Tiago 2:26), Miguel compreendeu que nenhum feitiço lhe valeria se não se aplicasse na revisão da matéria. Foi para casa, desolado e passou a prestar mais atenção à ciência que seus amigos e coetâneos haviam abraçado há tempo.
...
Uma semana depois, Miguel foi tirar esclarecimentos. Encontrou o avô Kateko abusivamente kapukado mas com a força do costume.
- Avô, porque me intrujaste com aquele feitiço de pimpa? Os outros se tornaram gente e só eu, em mesmo Miguel, é que fico já kinangambala?
- Estás falar quê, ó mulawla Miguel? 'Fitiço' num deu certo ou você é que num deu certo no estudo e na fé?  A culpa é tua, sô indisciplinado. Coisa de branco é de branco e de ambundu é de ambundu. Como é que você leva um segredo nosso, coisa que vêm desde os nossos trisavôs e conta a pessoas estranhas? Você creu pouco, destarte o brune encravou. A força do "fitiço" que entrou na lapiseira ficou congelada. Você nunca ouvir falar mundele nzambi? - Defendeu-se o velho, deixando o neto mais irritado ainda... Por pouco saia kibetu de chagar bichos, mas avisados pela fúria de Miguel e bebedice de Kateko que não poupava nos impropérios contra o neto, os aldeões, em geral, e os parentes, em particular, se fizeram cercar dos contendores e puxaram cada um ao seu canto até a ira se esfumar.
Adaptado de estória contada por Silva Candembo e publicado pelo Jornal de Angola a 15/07/18 

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