O parque automóvel é pertença de Oka (José Carlos Cunha). A aldeia é Cambau, na comuna libolense de Quissongo (Kisongo). Manuel Cunha, pai de Oka, aqui fez sua vida comercial e agrícola, tornando-se num dos homens mais respeitados pelos nativos. Oka que nasceu "acidentalmente" na vila de Calulo (Kalulu), perto de 35 km, cedo ganhou o gosto pelo conhecimento da terra, dos processos produtivos e de suas gentes. Os coetâneos e os makulu (mais velhos) contam que aos 13 anos já era "um dos motoristas do pai", metendo-se ousadamente em picadas com a sua Ford em busca de café e makoka dos postos comerciais e de recolha. Muitas vezes ficou "perdido pela mata" com a Ford enterrada na lama até o pai aparecer em socorro. "Há vezes em que a comida da viagem acabava e o rapaz, embora habilidoso e corajoso ficava a chorar. Afinal filho de patrão era também nosso patrão". - Conta o antigo cozinheiro.
- Filho alheio do velho Cunha e dona Marília, tem dias em que passa e a gente vê só o carro passou. Assim é porque tem pressa ou vai se encontrar com alguém. Outras vezes, pára mesmo para nos saudar e conversar. Todos, aqui no Quissongo sede, somos amigos dele. - Conta o septuagenário que diz ter estudado a iniciação com o Oka ou Sô Cunha.
As palavras elogiosas não vêm apenas de homens. As mulheres imitam um antigo pregão da "mãe comerciante", dona Marília: wenjié, wenjié! mbiji ya matona yeza kyá!
No Cambau, uns 18 km depois da sede do Quissongo, fica a fazenda e uma casa-acampamento. Os rapazes olham para os carros, tractores e retro-escavadeiras e fabricam sonhos. Tal como na infância dos quarentões de hoje, os rapazes de Cambau não desperdiçam as latas de óleo, margarina e até de conservas de sardinha. É com essas que reproduzem fielmente os equipamentos do parque, constituindo-se nos seus prediletos brinquedos do dia a dia.
Zito e Mingo são dois desses rapazes. Hábeis no ver, "gravar" as características e reproduzir. Zito tem um monta equipamentos e Mingo um camião cisterna. Ambos têm dez anos e estudam a primeira classe.
- A escola (construída pelo FAS) só abriu esse ano. Contam.
Mingo, Zito e demais meninos de Cambau alimentam o sonho de ser grandes, "assim como sô Cunha", dizem. Pensam em um dia conduzirem os tractores, buldozers, motoniveladoras e carros da fazenda. Por isso, estudam e sonham.
No ano passado, explicaram, todos os meninos e meninas receberam "brinquedos de fábrica": carros, motos, bolas, bonecas, fogões e muitas coisas. Mingo é quem mais fala.
- Alguns brinquedos já se estragaram e outros guardamos. Há vezes em que o Sô Cunha nos dá também rebuçados, leite e papas.
Os rapazes contam tudo sem reserva. Falam também dos medos em frequentar o rio em tempo de chuva por causa do Jacaré que "bate com a sua cauda e arrasta as vítimas para seus matuku (esconderijos sob a água)".
- É por isso que Sô Cunha meteu aqui chafariz de furo (artesiano). relataram.
São mais de uma dezena de fontanários espalhados pelas aldeias da região onde Cambau se destaca com as suas casas alinhadas, todas cobertas de chapas de zinco, mantendo, à entrada, equipamentos sociais como a escola, lavandaria, o posto médico e o jango social. A aldeia tem luz eléctrica 24horas ao dia.
- Esse senhor tem bom coração. A luz dele divide com o povo. Na fazenda dele, todos os trabalhadores (perto de 50) são mesmo daqui de Cambau. As chapas ele mesmo é quem ofereceu. Oxalá Deus "lhe" abra ainda mais as portas. Hoje, nem mesmo o Quissongo sede torra farinha com Cambau em termos de boniteza. - Finalizou Velho Joaquim, abordado à passagem do parque automóvel.
Oxalá que na próxima visita Cambau e arredores tenham rede telefónica para que a minha crónica não seja publicada em Calulo nem haja necessidade de regressar apressadamente à vila. Oxalá que Oka e os cambauenses realizem sonhos e continuem a crescer juntos.
Texto publicado no Caderno "Fim-de-semana" do Jornal de Angola do dia 19/11/2017