Nascia o mês de junho de 2005. Luanda transitava entre o
calor do meio-dia e o frio da meia-noite. Viana, Terraço, tinha sido o destino
depois de uma semana repleta de trabalho e provaçoes. Três colegas de serviço,
em companhia da irmã de uma das co-laboradoras voltavam a Luanda sonolentos e
cansados, depois de pé de dança para os dotados nesta vertente lúdica e alguns
tragos para outros. O Vemba tinha aproveitado fazer as suas, sempre oportunas,
reportagens que alimentavam a sua página cultural nos noticiários nocturnos da estaçao
radiofónica LAC. A viagem de ida, numa mini-coluna de duas viaturas e sete
pessoas e o convívio até ai corriam à feição.
- Sigamos com calma (vagar)e os condutores, Vemba e Adilson, não
devem ultrapar os cem quilómetros horários. - A voz Soberana fazia-se ouvir,
apesar de meio turva, dada a madrugada. Reclamava caldo regado para às seis
abrir a emissão da 995, também baptizada como Estaçao Azul.
Já a primeira das duas viaturas se tinha afundado no
horizonte visual. A cidade sonhava ainda, antes de acordar. Mal se fizeram anunciar as luzes da Avenida
Deolinda Rodrigues, o Kia Avla, em que seguiam os tres mais uma, decidiu
ziguezaguear, levando-os à assassina árvore engordava e se pintava de sangue
nas barbas do que é hoje o Comando Provincial da Policia de Luanda.
Era ainda no tempo das vias estreitas, entremeadas por um
largo e longo "chourição" arborizado que separava os veículos a
caminho de Catete e aqueles que visitavam a capital. Do outro lado da via, qual
Lucifer vestido de branco, com os braços abertos, aguardava-os a Snt'Ana
sepulcral antro com seus lúgubres lençóis.
- Sono? Embriaguez? Imperícia? Outra coisa não verbalizada? -
As perguntas gritantes e mudas permanecem. Quem as podia responder já cá não
está. Porém, a embriaguez e outras coisas meditadas em surdina posso descartar.
- O rapaz que girava o volante e pedalava a velocidade nao
era de trambiquices nem bebedices. Era rapaz de muito juízo na cabeça. Só podia
ser sono. Embriaguez nao. Malandrice também nao. – Declararam as velhas e kotas
do bairro que o viram nascer e crescer.
De repente, tão rápido quanto o acidente, curiosos, polícias,
bombeiros e jornalistas fizeram-se ao local, qual maratona sabática em dias de
campanha eleitoral. Choveram apelos na rádio Kyanda para que se mobilizassem
meios e homens para salvar os infelizes.
- São jornalistas. Salvem os nossos colegas. - Verberou-se
suplicante nos 999 de frequência e nas bocas atónitas dos presentes e ausentes
preocupados.
Juntaram-se sinergias para o desencarceramento dos ocupantes
do veículo encolhido e abraçado à árvore máscula. Três dos quatro corpos
ensardinhados suplicavam socorro às vidas que rapidamente eram sugadas pelo
abismo faminto.
Machados, serras, tudo que os bombeiros usam e o povo guarda
no escuro para se defender na hora do "dá-me teu suor", pouco servia
para cortar o volante, o tejadilho e desfazer as portas. O motor recuado no
embate contra a árvore arrastou tudo para trás.
- Por favor, estiquem o carro porque temos os pés longe dos
corpos. - A voz Soberana, ainda distante do seu estado físico real, fazia-se
suplicante.
Ouvida, o Avla seria esticado,
deppois de amarrado de frente, à mesma árvore que também sangrava, e puxado
pelo camião dos bombeiros.
Antes de terminar o desencarceramento, já um dos sinistrados,
Vemba, desfalecia no terreno. Não se
ouvira dele sequer um ai.
Chegados ao Maria Pia, levados em duas viagens pela carrinha
da patrulha policial, primeiro os ocupantes do lado esquerdo e depois os do
lado direito, os companheiros de viagem e desgraça encontrariam Leonardo
Inocêncio, jovem chegado das terras de Fidel, mãos afinadas e firmas no
infalível bisturi. Sem ordenado ainda, mas com a mente casada com Hipócrates,
mostrava aí a sua proeza altruística.
- Doutor será que ainda viverei? - Perguntou-o o Soba
preocupado, depois de confirmar o finamento do colega e amigo Vemba.
- Vives, meu amigo. Vives, podes crer! - Respondeu convicto,
o cirurgiao, no fim do seu trabalho.
Dez anos depois, sem que as imagens faciais pudessem ser
revisitadas, ei-los juntos, a frequentar um mesmo curso destinado a
administradores da Função Pública. Em "conversa puxa conversa",
médico e paciente revivem o dia do acidente e de imediato se identificam.
- És tu que estavas naquele acidente de jornalistas? – Ingadou
Leonardo.
- Sim. Sou eu doutor. Éramos quatro. Morreram duas pessoas e
sobreviveram duas. - Explicou o sobrevivo Soba.
- Por favor, quero confirmar. Vamos sair e mostra a cicatriz.
- Orientou o cirurgião com a mesma autoridade que usa no Hospital perante os
pacientes.
Mostrada a cicatriz abdominal, o "kimbanda kya
Putu" voltou a questionar: - E qual dos pés sofreu cirurgia?
- O esquerdo, Doutor Inocêncio. - Confirmou o Soba, mostrando
também a cicatriz na perna que tinha o tornozelo quebrado.
- Pois é. És tu mesmo. - Confirmou o médico. Abraçaram-se aí
mesmo, no corredor longo e iluminado do edifício.
- É meu paciente. É verdade. - Disse Leonardo à vintena de
colegas que aguardavam pela perícia. - "A ferida é minha". Conheço as
minhas impressões. - Ironizou.
Abraçaram-se novamente perante o olhar pasmado da turma e do
professor. Choveram agradecimentos e recomendações ao médico anestesista que
com Leonardo trabalhou na madrugada daquele primeiro de junho.
- Obrigado Dr. Leonardo Europeu Inocêncio, por ter, com sua
perícia, impedido que o abismo me sugasse ao seu leito negro.