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quarta-feira, agosto 28, 2024

QUEM FOI O COMANDANTE KANDIMBA?

 (Tentativa de descrição dos feitos do militar Pedro Manuel Biano)

"Kandimba toka, ombonge itunda yangu!"¹
Ainda se canta em Kibala e arredores (até mesmo em Luanda), reflectindo a saudade e reconhecendo a valentia deste insigne filho de Angola que a memória colectiva deve preservar e honrar.
Este exercício visa recolher depoimentos de pessoas que estiveram perto dele, familiares, amigos, companheiros e camaradas nas gloriosas FAPLA, cidadãos do Kwanza-Sul e de Angola que coheceram o lendário Pedro Manuel Biano "Kandimba", ao que se diz "comandante do 2° batalhão da Brigada 150 e, posteriormente, comandante do Batalhão 722 (desmobilizado ao abrigo dos acordos de Bicesse com a patente de Major)", actuando na Kibala e municípios circunvizinhos.

= DEPOIMENTOS=

(i) António Pinheiro "Folhas Caídas", integrante do Posto Comando Avançado da 7ª Região Político-Militar no Waku Kungu: descreve Kandimba como "um amigo pessoal e companheiro de arma".
Segundo Folhas Caídas, Pedro Manuel Biano era filho de Biano Kutatala e Nzamba Kitumba (Nzamb'Etumba), tendo nascido na aldeia de Galileia, regedoria de Kitangeleka, comuna da Sanga, município da Cela. "Esteve comigo em várias frentes. teve como esposas as senhoras Maria Manuel, Kilakhata e Cecília. Essa última suicidou-se com a arma pessoal do comandante, na vila de Kibala, nos anos oitenta".
Segundo Folhas Caídas, Pedro Biano ganhou a alcunha de Kandimba devido a sua sagacidade, na infância, tendo em conta que era filho e seguidor dos passos do seu pai que era um exímio caçador.
"Foi o senhor Fifas, um português, empregado da fazenda do senhor João Simão Nabiças (na região de Sanga) que o nomeou Kandimba".
Acrescenta que Kandimba ingressou nas FAPLA via ODP (Organização de Defesa Popular) na aldeia de Kitangeleka. "Entre os anos de 1979 ou 1980, face a adaptação das FAPLA vindas da guerrilha à Exército Convencional, houve a necessidade de se criar a brigada 150. Ele foi seleccionado para o Regimento Militar de Katofe onde recebeu instrução militar e passou de ODP a militar regular da Brigada comandada pelo 1º Tenente Neves Ferreira. Kandimba comandou o 3ª Batalhão da Brigada 150 e, com a posterior criação dos batalhões territoriais para conter os ataques da Unita às sedes municipais, foi criado o Batalhão 722 que ficou estacionado na Kibala, sob comando de Kandimba, dependendo da 7ª Região Político-Militar (Benguela) e com um Posto de Comando Avançado (PCA) na Cela, comandado pelo Capitão Luciano Pereira".
Hoje, oficial Superior da Polícia Nacional, António Pinheiro "Folhas Caídas" explica que Kandimba actuou no triângulo Kibala-Hebo-Waku-Kungu, onde, por outro lado a Unita operava com colunas fortes como Salva Terra, Mwangay, Negritude e Grito do Povo.
"Lembro uma missão que havíamos recebido do General Armando da Cruz Neto (Chefe da 7º Região), juntando o batalhão do comandante Kandimba, do comandante Joaquim José Lunga "Cara Podre" e outras forças para desmantelar uma base da Unita em Kas)s)onge e que não correu como previsto. "Kandimba ficou ferido e tive de organizar uma ambulância para o levar ao Hospital da Região, mas ele preferiu ser levado ao soba da aldeia da Sanga para um tratamento caseiro.
Folhas Caídas diz que "Kandimba era um comandante que se impunha e que era respeitado, mas como homem também teve suas fraquezas (pouco conhecidas pelos civis).
"Quando o Chefe-de-Estado Maior, General França Ndalu e o Comandante da 7ª Região, Armando da Cruz Neto, decidiram mover a Brigada 150 para o Kwemba, Kandimba rejeitou e foram movidos à força para o Bié, de onde ele desertou temporariamente (fixando-se em Luanda), tendo sido punido e regressado, tempo depois à Kibala onde organizou o Batalhão 722. Nessa altura eu também fui movido da Cela para a Frente Centro, no Huambo", conta Folhas Caídas.

Sobre os últimos dias de Kandimba, Pinheiro diz: Um dos factos que me marcou foi em 1992. Estávamos ambos desmobilizados, à luz dos Acordos de Bicesse. Depois da negação dos resultados eleitorais a UNITA, praticamente, ocupou a vila de Kibala. Ele convidou-me para atacar as FALA e eu discordei dele, porque o inimigo estava em maior número. Ele entendeu mobilizar efectivos desmobilizados e os atacou. Conseguiu expulsar o inimigo da vila, porém, as FALA reagruparam-se, fizeram um contra-ataque e ele tombou em combate. Dois dias antes, conversámos. Ainda me chamou nomes como cobarde...

(ii) António Ferreira, Ex-Comissário Político do Batalhão 722, corrobora a versão de Folhas Caídas, quanto ao período e episódios que antecedram a criação do batalhão 722, embora diga que "foi a pedido doas sobas que estavam fartos das faltas de respeito da Unita". A propósito, Folhas caídas diz que participou da redacção do manifesto enviado ao Comissário Provincial, e deste ao Comando da Região Militar, alegando "ser pedido da população da Kibala", o que possibilitou a sua soltura da cadeia em que se encontrava após deserção. António Ferreira confirma ainda as informações prestadas por Pedro Muhongo (vide abaixo), sobre o trajecto da 150 BIL "até Kwemba e Munyangu (Munhango)".
(iii) Lino Guimarães Fernando, ex-soldado do 2º Pelotão da 8ª Companhia do Batalhão 722, com a função de activista político do pelotão: "Pedro Manuel Biano 'Kandimba' foi Comandante do Batalhão 722, pertencente à 7ª Região Político-Militar que tinha o seu comando regional em Benguela, comandada pelo general Armando da Cruz Neto 'Maluco'.
Kandimba gostava de ter a sua tropa bem disciplinada e os indisciplinados eram repudiados e castigados. Para organizar e disciplinar a tropa, tinha o seguinte slogan, 'nós somos cerca de 3000 homens. Eu prefiro ter 300 organizados a 3000 desorganizados'.
Ele descrevia a sigla FAPLA como 'Foram Armados Pelo Povo Para Libertar Angola'. Kandimba era muito rigoroso no cumprimento das missões que ordenava e as que ele próprio cumpria, esperando sempre por resultados positivos e nunca a derrota. A sua residência oficial era na rua em que ficavam as antigas instalações da Segurança do Estado, na vila da Kibala.
Operava normalmente com as primeiras três companhias do Batalhão 722, nomeadamente, 1ª, 2ª e 3ª, que ele considerava sua tropa de elite. O sargento-maior Evaristo José Bernardo, 'Xiña Wanga', da 3ª Companhia, era um dos seus estrategas nas grandes operações e dos seus principais seguidores.
Combateu no município da Kibala e, sempre que fosse requerida a sua intervenção, nos circunvizinhos da Gabela, Libolo, Hebo, Kondé, Waku Kungu, entre outros. Era muito respeitador da população e não gostava de escutar que um soldado das FAPLA maltratou ou retirou haveres de um popular.
Em meados de 1987, o 1º Pelotão da 8ª Companhia do Batalhão 722, que era comandado pelo seu irmão mais novo José Biano, destacado na montanha próxima ao bairro Kakata, depois do bairro Kapezo, foi atacado pelas Unita, tendo o chefe do pelotão perdido a sua arma de fogo do tipo a AKM. Em função deste acontecimento decidiu retirar toda 8º Companhia que se encontrava destacada na protecção da via Luanda-Huambo, incluindo nós que estávamos destacados na montanha junto às antigas bombas de combustível da Shell, para o comando do Batalhão 722 na sede municipal da Kibala, e destacado na Fortaleza.
A 18 de Dezembro de 1987, foi-nos incumbida uma operação militar, entrando pela comuna do Ndala Kaxibo, tendo o comandante Kandimba, dito ao seu irmão menor José Biano, em plena parada o seguinte: Deixaste o inimigo levar a tua arma. Não te darei mais arma. Avisei-te para ficares a cuidar da nossa mãe porque eu já sou militar, mas não aceitaste. Agora tu é que sabes se levas pedras ou cassete. Fomos com nosso colega desarmando e regressámos da missão no dia 27 de Dezembro.

(iv) José Kassola: Ele nasceu no Waku, na fronteira entre o Waku Kungo e Kibala. O irmão do Senhor Beto Kadaff, foi Motorista do comandante Kandimba. Lembro quando o Sr. Biano foi atropelado pelo seu próprio motorista que era primo dele. O homem carregava na Land Rover prisioneiros feridos da unita que seriam levados num helicóptero vindo comando da Região, em Benguela. Esteve presente o Comandante Seteko da 7ª Região. O Comandante Pedro Manuel Biano quase morria naquele incidente. O primo motorista aproximava-se do helicóptero para descarregar os soldados da UNITA feridos e capturados, para serem transferido para a Sétima Região. Ele sentiu medo das hélices, fez marcha atrás, sem olhar o Comandante Kandimba que estava a conversar com o Comandante Seteko. Pimbas! Caiu atropelado. Os óculos partiram e o Comandante Seteko levantou o Kandimba já com os olhos vermelhos.
A outra cena de que me lembro foi numa das efemérides, ou seja, feriado do Partido (MPLA), realizado às 12h00 horas, em que Kandimba quase seria capturado na Vila, mas avisou os demais chefes do Partido MPLA para que deixassem o espaço o mais rápido possível. Ele saiu sem que ninguém o visse e depois começou o fogo da UNITA dentro do recinto da festa. Ali tombou o 1° Secretário da JMPLA da Kibala, o jovem Felizardo.

(v) Pedro Muhongo: Convivi com ele de 1983 a 1986. Conheci-o na tropa, isto em Katofe (Kibala) no Regimento de Tropas Cubanas, quando foi submetido ao curso intensivo de comandante de tropas, no âmbito de correlação de forças no teatro das operações, função que já vinha desempenhando há vários anos. Estamos lembrados que a década de 80 (séc. XX) foi a época mais difícil no país para quem integrou as FAPLA. Observamos quão era difícil a situação. Essa formação visava a criação de uma unidade específica, moderna e adequada, com efectivos capazes à altura dos desafios que a situação impunha. A unidade de combate foi criada em Agosto de 1983 e, se a memória não me atraiçoa, chamava -se (na altura) 150 BIL (Centésima Quinquagésima Brigada de Infantaria Ligeira) de onde Kandimba viria a ser comandante do 3° Batalhão ora criado e ostentava o grau militar de 2° Tenente, resultante da formação recebida. Aí o conheci e seguiu-se uma vida militar intensa. Eu fazia parte da 150 BI), mas numa sub-unidade do Comando da Brigada e com frequência era chamado ao apoio do Batalhão comandado por Kandimba.
Por razões de várias missões chamados a cumprir, entre 1985, a 150 BIL foi movimenta para Malanje (9° Região Político Militar), passando por Kalulu, depois pelo Kis(s)ongo, caminhando para a região militar das FALA (forças da UNITA) chamada 93 RM, localizada no planalto (entre Kuanza-Sul e Bié), abrangendo o corredor de Kalus(s)inga, depois rumando para Malanje, mas feito o trajecto na Kitúbya, Luso, Gango, em direcção ao Povo do Hako, Kyenha, passando na Kipumba, caminhando até às margens do gigante Rio Kwanza. Na altura a barragem de Kapanda estava no início da sua construção. Aí transpusemos a margem contrária do Rio Kwanza, seguindo para Pungo a Ndongo, Kakuzu e cidade de Malanje. As missões continuaram na província de Malanje, depois para município de Kunda Dyabase, passando por Kakulama, Kela e às áreas da Baixa de Kas(s)anje. Em Janeiro de 1986, atingimos a localidade de Kafunfo e Kas(s)anje Kalukala. Aí o Kandimba ficou doente (meados de Janeiro de 1986) e foi levado ao hospital da Região Militar na cidade de Malanje. Depois que a saúde dele se restabeleceu, beneficiou de uma licença disciplinar (férias) para a terra natal (Kibala). De lá já não mais regressou ao Comando do seu Batalhão e na Kibala criou o batalhão 722, que comandou até 1992 ao abrigo dos acordos de paz para Angola (Bicesse).

(vi) Francisco Pinto, 65 anos feitos em Agosto de 2024, conta que em 1992, depois da desmobilização das FAPLA e criação do que era chamado de "Exército Nacional Único", as FAA, o Batalhão 772, organizado e chefiado pelo comandante Kandimba, havia sido extinto e o comandante desmobilizado com a patente de Major.
"Depois das eleições, era comandante da região, pelas FAA, o Cara Podre que não havia sido desmobilizado".
O antigo Oficial Operativo no Batalhão 722 e no "Exército Único" saído dos Acordos de Bicesse, avança que até Novembro de 1992, militantes do MPLA e da Unita ainda coabitavam na vila da Kibala e até diziam que "as escaramuças de Luanda não deviam ser replicadas na Kibala". Porém, conta, surpreendentemente, a UNITA retirou-se para Katofe e começou a bombardear a vila, matando várias pessoas como o professor Smith e sua mãe.
"Eu era amigo pessoal de kandimba. Ainda o aconselhei a ir a Luanda, depois de desmobilizado, mas ele me respondeu que aguentaria mais um pouco".
Tendo em conta a situação criada pela Unita, prossegue Francisco Pinto, o Comandante Kandimba teve de organizar os antigos militares desmobilizados para defender a vilar, só que não conseguiu obter o número desejado, tendo em conta a dispersão e a desmotivação de alguns para uma nova guerra.
"Em Finais de Janeiro de 1993 a Kibala recebeu reforço de tropas vindas do Waku Kungu. Como nem todos se conheciam (os da Kibala e os vindos do Waku) a Unita aproveitou infiltrar-se entre as forças e tomou a Vila. A Unita concentrou todo o seu fogo sobre os tanques e o comandante Kandimba estava no primeiro que, embora ainda disparasse, não tinha mobilidade".
Pinto narra ainda que quando foi atingido o tanque tinha esgotado as "salvas" e jura que "Kandimba não foi capturado nem enterrado pelos familiares, pois ele se retirou do local e terá morrido em local incerto".
Um dos dois tanques que se acham na rotunda (à entrada da EN 140 que nos leva a Karyangu) possui ainda a parte cimeira e o cano. O outro, desintegrado, que conserva apenas o esqueleto central e as esteiras locomotivas é nesse em que, na madrugada do dia 09 de Fevereiro de 1993, segundo Francisco Filipe tombou em combate o comandante Pedro Manuel Biano "Kandimba".
O sepultamento de Kandimba é um enigma. A respeito, Muhongo diz que seria importante perguntar aos padres que enterraram os corpos não reclamados e aferir se o do comandante estava entre estes, mas, acrescenta, que "ele mesmo dizia que quando morresse o seu corpo nunca seria enterrado".
(vii) Filipe Albino: Tombou em combate na madrugada do dia 13 Fevereiro de 1993, na Kibala.

(viii) Tiago Phande, 62 anos, ex-militar natural e residente na Kibala, narra que foi professor e incorporado em 1982 na ODP, em Mukitixi, integrando o Batalhão Interno (BI) constituído por trabalhadores da Fazenda que tinham sido desmobilizados das FAPLA. Atesta que quando Kandimba formou o Batalhão 722, o BI já existia. Acrescenta que a 12 de Junho, quando se dá o primeiro ataque da UNITA à Kibala, a Brigada 150 encontrava-se em operações militares na região de Ndal'Axipo (Dala Caxibo), ficando na vila apenas a ODP e o CPPA (polícia). A Brigada teve de regressar para desalojar a UNITA.
"Foi nesse primeiro ataque que foram dinamitados e destruídos muitos edifícios da kibala", conta, algo revoltado.
Tiago Phande confirma o relato de Folhas Caídas (António Pinheiro) sobre a deserção de Kandimba do Munyangu e sua prisão punitiva. "Isso aconteceu em 1986 quando a Brigada 150 em que ele era chefe de um Batalhão foi movida para o Bié".
Sobre os últimos anos do comandante Kandimba, Tiago afirma que "em 1993, a tropa estava desmobilizada, incluindo o próprio comandante Kandimba. Aproveitando-se da situação, a Unita, que nunca se desarmou, ocupou a Kibala e o comandante teve de reorganizar os ex-FAPLA que estavam disponíveis para expulsar a UNITA da vila. Foi nessas circunstâncias que conseguiu expulsá-los, mas eles se foram reorganizar e no contra-ataque, atingiram o comandante, cujo corpo não foi nem tomado pelo inimigo, nem sepultado pela população".
Phande conclui que após a morte de Kandimba (1993), a Unita ocupou a vila por muitos anos. OPs órgãos da administração do município estavam na Gabela e a tropa no território da Kibala era dirigida pelo comandante Cara Podre que veio a falecer em consequência de um ataque à sua comitiva, junto ao Rio Nyha (Nhia). "Não foi atingido por uma bala. Ele jogou-se no rio e o cadáver foi encontrado, dias depois sem vida".

=Glossário=
1-Kandimba venha porque cresce capim na cidade. Por outras palavras: vem escorraçar a Unita da sede municipal.
2- CPPA: Corpo de Polícia Popular de Angola.

NOTA: Você pode contribuir, escrevendo para o e-mail: Lcanhanga@hotmail.com

quinta-feira, agosto 22, 2024

O KAMBWIJI DE 10 KG E OS 250 ANOS DA VELHA ROSÁRIA

A idosa na primeira foto é a minha mana Maluvu-a-Kyoko ou Rosária Albano. Calculadamente, deve ter 80 ou mais uns anitos. Porém, diz que "se eu (narrador) tenho 50, ela não pode ter menos de 250 anos" e justifica que me viu a nascer quando ela já era mãe de uma kalumba.

Chamou-me com urgência, no dia 01 de Agosto, e explicou a razão:
_ Lembrei-me de uma cena ocorrida quando tinhas 5 ou 6 anos.
_ O que se passou, mana?
_ Um dia, saí da Munenga e fui ao Rimbe visitar-vos. Mal cheguei, apareceu o mano António (eu tratava por mano o teu pai, porque o pai dele era também meu tio) a carregar dois kambwiji pequenos e tu carregavas um portentoso kambwiji. Então perguntei: mano António, como é que você, enquanto pai, leva dois animais pequenos de pouco peso e o filho é que carrega o animal mais pesado?
_ Ó mana, isso aconteceu?! E o que foi que ele te respondeu?
_ Não foi ele que respondeu. A criança que eu estava a acudir é que respondeu altiva e resmungona.
_ Que eu te respondi, mana?
_ Disseste, num linguajar Kibala bem afinado, "wathithi kwamunzembe, Ndonga-a- Ngulu wandongile!"¹
_ Oh! Foi mesmo, mana?
_ Disseste e põe também essa cena no teu livro. E olha: o livro que me deste, onde eu estou, o teu sobrinho Segunda Januário "Kabengo" levou. No próximo que vais escrever me põe lá de novo.
Levei a mão à cabeça, a pensar, a matutar. Como é que uma velha iletrada valoriza tanto um livro ao ponto de tê-lo todos os dias sobre a cabeceira "junto da Bíblia", segundo me contou?
_ Não tem problema, mana! Olha, na semana passada fui à Kibala e dentre as coisas que escrevi, lembrei-me da frase "wathithi kwamuzembe" e meti na crónica que já saiu no Jornal do Kwanza-Sul e Benguela (Jornal Litoral). Quando eu publicar outro livro, essa parte dos kambwiji vai entrar e vou escrever que foi a mana quem me contou a cena. Quanto ao livro que o Segunda "Kabengo" levou, vamos já resolver.
_ Mas, vais resolver quando, ó Luciano? Eu tinha sempre o meu livro ao lado da Bíblia e quando mandasse alguém ler a Bíblia para mim, também lia o livro, naquela parte que entra o meu nome e a lavra no Kanzangiri.
Fui revistar o carro e, por sorte, havia três livros: um para o Augusto, jovem que foi meu aluno primário e que declarou coisas de me alegrar o coração, e outro para a mana Rosária "Maluvu" Albano que continuou com as estórias. E contou ainda:
_ Olha a nossa mãe Kyoko Ky'Eteta (Mariana) era oleira. Produziu panelas de barro e com estas comprou um cabrito e com o cabrito comprou uma fazenda junto ao rio Mukonga.
_ Ai é?! Não é que a irmã dela Kilombo Ky'Etinu "Maria Canhanga" também fabricava panelas de barro? Mas, no dia em que lhe recordei disso e perguntei "por que é que agora, que a mãe já é idosa e podia retomar a fabricação de panelas e outros artefactos de argila, já não o faz", sabe o que me respondeu?
_ Weli eji ki?²
_ Respondeu que era a pobreza que a impelia a fazer moringues e panelas de barro.
_ Mas, agora a mãe está cega como é que ia triturar a argila, fazer os rolos, formar as panelas, alisar e cozer?
_ Sim, mana Rosária. Eu abordei-a antes de perder a visão. Às vezes ficamos a falar do passado e do presente.
_ Continua a fazer isso, mano. Nós já temos muita idade, mais de 250 anos. Daqui a nada vamos vos deixar e vocês é que vão continuar a contar as coisas. Foi por isso mesmo que te chamei, não havia outro problema, meu irmão. Era somente esse.
Feito o mahezo³, começou a minha vez de trazer à memória alguns tópicos de sua vida.
_ Ó mana, lembro que na sua fazenda, na Mukonga, a mana trepava (com verga) às palmeiras para cortar desdém...
_ Sim. Quando eu era jovem, há homens que não torravam farinha comigo. Eu trepava mesmo como os homens.
_ Mas também se conta que um dia a mana quase caiu...
_ Quem foi que te disse? Você afinal é um pouco mais velho. O que aconteceu é que, ao cortar o cacho, vi uma cobra que estava a olhar para mim. Com medo de que ela fosse cuspideira, perdi força e larguei a verga, caindo. A minha sorte foi o facto de a altura ter sido pequena. Dali em diante nunca mais trepei em palmeiras.
= Genealogia =
Maluvu-a-Kyoko "Rosária" é filha de Kyoko Ky'Eteta. Kyoko é filha de Kiteta. Kiteta é filho de Kyole Muryanga.
Eu sou filho de Kilombo Ky'Etinu⁴. Kilombo é filha de Kitinu, irmão mais velho de Kiteta, ambos filhos de Kyole Muryanga. Logo, temos bisavó comum, Kyole Muryanga.
= Notas =
1- Não desprezes o homem de baixa estatura. Quem é alto nunca toca aos céus. Ndonga-a-Ngulu (baixinho) venceu-me uma vez.
2- O que foi que te disse?
3- Introdução ao tema da conversa.
4- A antroponímia tradicional é matrilinear, ou seja, o filho (a) recebe o apelido da mãe (Maluvu filha de Kyoko). Apenas nos casos el que o progenitor é notável (rei, soba, ou destacado membro da corte) é que o filho adopta o apelido paterno (KilomboKy'Etinu).

quinta-feira, agosto 15, 2024

ALDEIA DE PEDRA ESCRITA: NÓTULAS

Até 1984 inexistia a aldeia de Pedra Escrita. Vamos à origem do topónimo. O penedo acomodava uma frase publicitária da Estalagem Boa Viagem, pertença da família Olímpio, também conhecida por "Bar do Olímpio", no Lus(s)us(s)o, e foi apelidado pelos populares locais e outros que por lá foram passando como "a pedra escrita".

O surgimento da guerrilha, por volta de 1983 e o recrudescimento de ataques às aldeias e viaturas, acções de implantação de minas terrestres na rodoviária, em 1984 e anos subsequentes, fez parar os trabalhos na Fazenda Hoji ya Henda (antiga Fazenda Israel) e desapareceu o acampamento que albergava os trabalhadores de origem ovimbundu.
Já os trabalhadores locais (a exemplo de meus pais) tinham abandonado a fazenda em 1979/80 e construído suas aldeias e aldeolas fundadas por laços de parentesco, no Limbe que fica a 2 quilómetros a oeste de Pedra Escrita (estrada Kibala-Dondo).
Entre 1984 e 1985, grande parte da família Trinta, descendente de Katoto e fundadora do Limbe, regressou à procedência. A aldeia de Katoto migrava das margens do Rio Ryaha à Sangwisa (antes de se desdobrar nas actuais três aldeias que se estendem ao longo da EN 120).
Os ovimbundu que habitavam na Fazenda Hoji ya Henda, alguns locais descendentes de Kalombo e Tumba Grande, assim como a família "Xika Yango" (Raimundo Carlos), essa última oriunda do Mbangu-yo'Teka e que se haviam fixado na aldeola no Limbe juntaram-se em pequenos "songo" (pequenos aglomerados ou quarteirões) na zona de Pedra Escrita.

Outros continuaram dispersos em suas lavras e pequenas aldeolas familiares até que o Comandante António Infeliz João proibiu que houvesse pessoas a viverem nas lavras ou dispersas, aglomerando-as todas na aldeia de Pedra Escrita que se agigantou. Já no ano de 1993 contava com os aglomerados (songo) da Igreja Cheia da Palavra de Deus, os do Sétimo Dia, os do Kuteka (família Raimundo Carlos e Maria Canhanga) os de Kalombo e Tumba Grande, os "Mbalundu" oriundos e descendentes de ovimbundu que tinham trabalhado na fazenda e os antigos "recuas" da Kis(s)ala, Lwaty e indivíduos de outras proveniências que, não podendo constituir um aglomerado, se foram acomodando em outros, de acordo às afinidades que foram criando. A família Napoleão dos Santos, por exemplo, oriundos do Longolo (Lwati), sendo primos de Maria Canhanga (Kilombo Ky'Etinu), fixaram-se no "songo" dos de Kuteka. Este conglomerado recebeu, anos depois, outros oriundos do Kuteka, Hombo, Mbanze de Kuteka e Kiphela, aldeias que se acham longe do asfalto, nas proximidades dos rios Longa e Muxixe (antes de este afluir ao Longa).

Estima-se que a aldeia de Pedra Escrita tenha mais de 500 famílias o que "obrigou" a administração do Estado a implantar equipamentos sociais como: njango comunitário (inoperante há década), escola primária com 3 salas e 2 wc (estes ocupados pelos professores por falta de dormitório), início da construção de um posto médico (obra inacabada e abandonada que se acha perto da escola), implantação de uma linha de transporte de água bruta da montanha a oeste até à aldeia e, finalmente, a construção de outro posto médico que se acha junto à EN120. O fontanário, apesar da falta que faz aos aldeões, deixou de jorrar água há mais de seis anos.

Conta-se que "um agricultor esquartejou a tubagem com a grade do seu tractor e não repôs a tubagem até hoje". Os aldeões informam ainda que o assunto foi levado à administração, "mas o homem tem costas largas" e não dá importância aos apelos do povo que voltou a abastecer-se da "ndunga" (poço) situada na zona baixa aonde confluem, no tempo chuvoso, todos os resíduos fecais animais e humanos.

As consequências disso não são difíceis de adivinhar: propagação de doenças, enchentes no posto médico, mais despesas com medicamentos, aumento de mortes, etc.

Conhecendo o dinamismo da nova governação do Kwanza-Sul e adivinhando-se novas rotinas e orientações de trabalho a vir de Mara Quiosa (sem que se substituam necessariamente os inquilinos dos "palácios" da Munenga e de Kalulu) pede-se-lhe que se mande repor a água na aldeia de Pedra Escrita e que se busquem sinergias para a construção da casa dos professores e enfermeiros (exemplos que traz de Cabinda), podendo contar com a parceria do autor desta prosa e de outros que se venham a interessar pela causa.

A referida aldeia contará nos próximos tempos com uma biblioteca que é obra benemérita de um cidadão bem identificado, nascido na aldeia de Bangu-yo'Teka, cujos pais foram pioneiros na constituição do actual conglomerado.

quinta-feira, agosto 08, 2024

AS KAPULANAS DE MAPUTO

 O "sonho de avião" é antigo. A viagem no Boeing 737-700 da companhia "Bandeiras" é que é recente. O avião apresentava o interior limpo e arrumadinho, embora não lhe faltasse um dos 120 assentos a gemer sempre que o ocupante fizesse algum movimento mais impactante sobre ele.

A viagem era de 4horas, lingando países lusófonos situados em oceanos distintos.
Para quem viaja nos livros e jornais antes de se fazer à terra de destino, a ponte que os pilotos não se coíbem de sobrevoar era prenúncio de chegada enquanto outros perguntavam-se ainda "que pont'éssa" e "que país estamos a sobrevoar"?
_ É Katembe-Maputo ou o inverso. A cidade já foi Lourenço e o país é o das kapulanas. _ A voz perfurante entre tantos outros cochichos ouviu-se saindo do meio do avião. Era do Samora.
_ Ah! Afinal chegámos? E quê isso de kapulanas? É nome de comida?!
_ Não. Comida é xima com Agostinho Neto.
_ Xima com Agostinho Neto? Como é o que nosso guia imortal entra na comida?
_ Guia imortal? Isso é o quê?
_ Guia eterno. Conselheiro de todos os tempos. Estrategista intemporal. Percebes? Mas conta lá como é isso de comida ser xima e Agostinho Neto.
_ Ah! Vocês que vêm da região austral atlântica lusófona não sabem o que ele fez em 1976? - Inquiriu António, intrometendo-se na conversa, enquanto preparava o corpo para abandonar o assento resmungão.
_ Quê que fez o amigo do presidente Machel?
_ Mandou para cá um navio de carapau para selar a amizade entre os dois presidentes e os dois povos.
_ E daí? _ O angolano quase concluía, mas esticou ainda mais a corda da conversa, fazendo com que fosse o moçambicano a dar a machadada final na conversa.
_ Eufóricos, como éramos naqueles anos do triunfo da nossa revolução, passamos a chamar o peixe carapau "presidente amigo", só quê...
_ Neto morreu...
_ Não. Ainda estava vivo. Outros países como a Tanzânia também afinaram as relações com Moçambique e "presidente amigo" ficava vazio ou impreciso.
_ Então desistiram do peixe e passaram a comer xima acompanhado de matapa...
_ Matapa também. Sempre houve. É prato típico nacional de Moçambique, assim como nhima de cabrito, mas o peixe carapau ganhou o nome Agostinho Neto e se foi popularizando. Já lá vão mais de 3 gerações.
_ Kapulana também é comida típica daqui? _ Voltou a questionar o angolano, já mais aliviado e satisfeito com a atribuição do nome do seu primeiro presidente à espécie pelágica que habita as águas temperadas.
_ Kapulana é um tecido tradicional muito popular em Moçambique. É caracterizado por suas cores vibrantes e padrões distintos e é usada para fazer roupas, acessórios e peças de decoração. A kapulana, por cá, tem uma grande importância cultural e social, sendo utilizada em cerimónias como o lobolo, oferecida como presente.
_ Lobolo ou Libolo? Para nós, Angola, Libolo é um município que tem uma equipa de Futebol que actua no campeonato principal.
_ Aqui é cerimónia de entrega de dotes e pedido de noivado de uma rapariga. Vocês também devem ter, calculo.
_ Sim. É alembamento. Na verdade, no Kimbundu vernáculo diz-se kulemba. Os portugas é que passaram a dizer alembamento e assim ficou aportuguesado.

quinta-feira, agosto 01, 2024

O ÚLTIMO POLÍCIA

A patrulha, transportada em turismo branco, estava parada na rotunda do Cemitério do Alto das Cruzes e abordava, aleatoriamente, viaturas que vinham do Largo do Ambiente e do Miramar em direcção ao Kinaxixe.

Saído cansado do trabalho, às dezanove e vinte de uma semana prenhe de pilhas de papéis para despachar, reuniões algo intermináveis e imprevistos ao longo da jornada, apenas a casa, a filha derradeira e o netinho me vinham à cabeça.
A habitual saudação "boa noite papy" e "boa noite avô, me trouxeste o quê", à chegada, têm sido o bálsamo para aliviar toda a tortura do dia-a-dia de um meio-operário e meio-intelectual de gabinete.
Usando um carro de idade avançada, sem mais força suficiente para transpor a acelerador leve a rampa do Intercontinental e fazer a curva à direita, foi, exactamente, ainda a terminar de "escrever" o ângulo recto que o polícia se colocou à frente, fazendo-me sinal para parar e estacionar.
_ É o quê então? Fiz o quê ou o quê que devia fazer e não fiz? _ Caiu-me um céu de interrogações ditas em surdina.
À diante de mim estavam já duas outras viaturas abordadas, sendo que uma delas tinha a porta aberta, vendo-se a perna do condutor pousada sobre o pavimento, enquanto um elemento de farda azul, caki, lia os documentos ã frente da viatura que tinha os faróis à meia luz.
Meio aborrecido, todavia obediente, estacionei entre o carro branco da polícia e o que fora abordado antes de mim.
Como sempre, apressei-me em baixar o vidro e procurei pelo interruptor da lâmpada que acendi às pressas, antes que o homem, alto, 1,76 ou mais, pele escura e massa muscular a apontar-lhe uns 85 ou 90 quilogramas, me dirigisse aquelas palavras de "dá cá isso, mostra lá aquilo, por que não tem aquil'outro?".
O homem abeirou-se de mim, sem pressa, mas também não se fazendo demorar. Controlei-lhe os passos, os gestos e até as ideias e, antes mesmo de me dirigir a saudação, levei a mão ao casaco e retirei a carteira da algibeira que ficou à mostra, esperando que me pedisse os documentos.
_ Boa noite meu director!
_ Boa noite, senhor agente! _ Respondi-lhe meio desconfiado.
Antes, levei os olhos aos ombros dele a tentar descobrir o grau da patente que não tinha. Tratei-o apenas por "senhor agente" o que não é dislate.
_ Caro condutor, desculpe a abordagem. Vejo que está com a carteira na mão. Não precisarei de lhe pedir os documentos. Estamos a fazer uma abordagem preventiva e pedagógica. Sabe que há muita delinquência e não sabemos quem anda nos carros, se são pessoas em segurança, ou raptadas. Normalmente, fazemos revistas dos carros.
Enquanto se explicava, eu transformava a "raiva" do impacto inicial em cordialidade. Afinal, fora uma abordagem inesperada e primeira naquela hora e local de passagem diária, pelo menos de segunda a sexta-feira de todos os meses que já somavam dois anos e tal.
Mal o homem terminou de pronunciar a última palavra do discurso explicativo, baixei os vidros traseiros e aumentei a iluminação interior para que visse que não havia nada mais para além do vácuo e da minha vida, mas ele, diligente e mostrando que é bem-educado, retorquiu.
_ Também não precisarei de revistar a sua viatura. Muitos não gostam, por isso é que lhe estou a explicar. Aliás, para se revistar tem de haver ou mandado ou indícios que nos levem a desconfiar de algo e cumprir com esse procedimento. _ Explicou, deixando-me mais tranquilo e feliz também.
_ Afinal ainda temos bons polícias. O senhor é muito polido e cortês. Muito obrigado! Polícias como você podem até parar-me cinco vezes no meu trajecto do trabalho a Viana. Pena é que são poucos! _ Brinquei.
O homem fez uma continência e o imediato sinal de que eu estava liberado.
_ Obrigado, senhor polícia! Você transformou positivamente a minha noite! _ Disse-lhe a sair.
E como não é todos os dias que assim acontece, deixo este testemunho. Fui abordado (11.07.2024), cortês e cordialmente, por um agente da polícia. Afinal, ainda resta "um agente" que age como a sociedade espera que todos se comportem.