Quando lhe disseram "se prepara, dia 42 vais a Teixeira de Sousa", Mangodinho rir era só rir que deixava à mostra o último dente de siso. Preparou as imbambas, beijou os filhos, um a um. À mulher, deu um selinho só. Antes de meter o pé fora de casa, revisitou as palavras que guardara no ouvido e no caderno de notas.
Começou a ensaiar, a treinar treinamento de criança da kabunga.
- Nguneza, ngunaye, ngunasakwila, nakuzanga cinji, kizundamo, mafo, walwa, ixi, xima, mujimba, mulelenu, muxahenu, mulambenu ... enu!.. - Sabulou para ele próprio e para o surdo vento, num misto de saudade e vulama¹ que Lamba lhe deu, já voam oito anos, e que o faz dormir no Leste e acordar na capitalíssima.
Nas missivas que recebe, até nos áudios e vídeos, Lamba, a sua inspiradora, diz-lhe "estar saudosa e desacompanhada", contando luares e estrelas infinitas.
- Nguneza. Prepara kalembula, matamba, kingombwa, xima nyi ifo e tudo mais. Quero comer até me arrebentar. Aliás, esqueci uma coisa. Kandonda num esquece. - Recomendou Mangodinho ao entrar no avião.
O grande kalunga lwiji² já tinha ficado para trás. Por cima das nuvens brancas que pareciam ter invertido o seu sentido de orientação, o filósofo das embalas foi meditando:
- Quando estamos em baixo, as nuvens estão por cima de nós. No avião elas estão de baixo de nós, abrindo-se um outro céu azul infinito. Ou tem mais coisas cá em cima?
Às nuvens, entre a terra firme e o infinito azulado, cor de mar, aditou o espanto sobre o andar curvilíneo dos rios que pareciam preguiçosos e relutantes em dirigir-se ao mar.
- Eh! Issêasssim? Mam! - Ora se levantava, ora monologava sentado, inquietando o passageiro vizinho.
A viagem demorou hora e tal. Quase duas. Esperava encontrar alguém para o receber e gritar-lhe tambwokenu! Não aconteceu, não fez reclamação. Apenas pensou:
- Lamba deve andar às compras ou já a preparar a forragem para o estômago.
Faminto de iguarias que apenas o leste e nordeste e deram a provar, Mangodinho fez de propósito. Não jantou no dia anterior à viagem e também não matabichou.
Conhecedor da vila Teixeira de Sousa e dos caminhos de corta-mato, Mangodinho não demorou fazer-se à casa de Lamba, sua musa.
- Lamba, cheguei! - Gritou dez metros, antes da casa que conservava a mesma tinta sobre os adobes salpicados de cimento escasso e areia farta.
- Kenhê? - Gritou um homem lá dentro com autoridade de quem andou aos copos.
Mangodinho diminuiu o passo. Fingiu tropeçar para reforçar o caminho, os contornos da casa, as lembranças e as ideias também. Das ideias, sobretudo as mais audazes, viria a precisar.
- Mas... - Tentou gritar e mandar a todos os ventos velozes um porra que lhe é característico.
No descampado em que se acha plantada a casa de Lamba, os adolescentes que jogavam à bola, crianças há sete anos, ainda o reconheceram e começaram a cochichar.
- Ewe, mana Lamba! Kota Porra então chegou. Agora vai ser como com o ti Cizenge?
Alimentado pelo que lhe chegou aos ouvidos, Mangodinho puxou coragem. Pôs força nas pernas que teketavam nervosas. O cérebro dizia avança. As pernas e pés queriam desistir. Avançou até à porta e pôs um berro de homem corajoso.
- Lamba, estás aí?
- Kenhê? - Voltou a responder Cizenge.
- Porra! Issêabuzu! Ainda não morri e já estão a me lundular? Fiadacaxa, sacana de merda. Põe-te a andar! - Falou Mangodinho com toda a ira que lhe estava na garganta.
Mangodinho e Cizenge trocavam ainda mimos, procurando ocupar espaço no terreno e na audição da multidão que se fazia à volta. Mangodinho com um pé já dentro da salinha parecia que ia desalojar o consorte.
Cizengue estava ainda com roupas interiores e mal conseguia ver onde estava sua farda e botas. Tinha disbundado metade do ordenado policial, mas tentou mostrar autoridade de quem fez instrução para-militar, embora denotasse gagueira, dadas as elevadas doses etílicas de véspera.
- Kenhê você, mukwakwiza de merda?! Achas que me amedrontas? Tua sorte é que vim sem a minha kalashe. - Desafiou Cizenge.
Não demorou, chegou Lamba, carregada de coisas e ávida de mandar Cizenge embora.
- Mana Lamba, estão então a ser dar mulambenu na tua casa. Kota Porra voltou e o ti Cizenge num foi embora. - Contaram os jovens da bola.
- Mama yami! Vou fazê cumu então?! - Interjeitou.
Atrás, olhos nela, um coro ululante fez-se sala adentro, expectante no desfecho.
- Lamba lyeza!
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¹- Mixórdia que faz o cidadão emigrante esquecer a sua origem. Os do centro de Angola usam o termo "migosta".
²- Mar, imensidão.
Crónica publicada no Jornal de Angola de 01.05.2022