Era
sábado de um ano bissexto. A aldeia de Pedra Escrita tinha deixado de ser um
amontoado de gentes de várias origens e começava a se tornar numa comunidade
homogénea. Toneco, o coordenador, recebera a missão de fazer daqueles retalhos,
juntados à força de balázios pelo Comandante Infeliz, um conglomerado comum,
vivendo as pessoas em harmonia. E já eram mais de mil e quinhentas vidas,
distribuídas por não menos de duzentos lares. Contados os que emigraram para
longas e curtas estadas, estariam aí umas duas mil almas.
Cinco e
meia da manhã. Kilombo, a coordenadora da OSA, e Cati, sua adjunta, estavam a
rondar o terreiro das reuniões comunitárias. Os olhos distribuíam ora para a
casa de Toneco ora para a casa de Mangodinho. As reuniões aconteciam ao raiar
do sol, seis ou sete horas, a depender do sinal do Soba ou, no caso deles que
não têm ainda soba, quando o secretário mandar tocar o sino. Depois são mais
dez minutos para a concentração dos adultos.
Antigo
homem de reconhecimento, nas FAPLA, Toneco parecia adivinhar a intenção das
mulheres. Lembrou-se dum Lema de então é pô-lo em prática: "se o
adversário madruga eu não durmo". Passou pela porta traseira e foi avisar
o Mangodinho que também estava desperto.
- O mano
se ausenta por uns instantes. Pode ir à lavra comunitária. Vamos medir a
temperatura cá dentro e depois mando-o chamar. - Apelou Toneco.
Enquanto
isso, no terreiro já era alta a temperatura. Kilombo e Catarina agitavam as
bandeiras.
- Esse
Mangodinho e o comparsa dele Toneco, só porque querem se distribuir os cargos
de soba, estão a querer nos atrofiar? Não pode ser! Cati, vais ver, min´rmã.
Comigo, nenhum homem desta aldeia torra farinha. Vamos se destapar e ver se é
homem que fez mulher ou mulher que nasce homem. Isso é abuso. É discriminação.
Isso não é lei. Quem é que disse que onde toma banho homem não toma banho
mulher? - A voz de Kilombo era audível em quase todo o bairro. Tamanha era a
fervura da mulher.
Cati,
mais branda, entretanto, ia também, de quando em vez, alimentando aquela
fogueira de palavras.
- Lhes
deixa, Mana Kilombo. Se não nos deixarem frequentar a tal lagoa vou lhes rogar
uma praga que a água toda vai secar. - Ajuntou.
- Xê,
Mana Cati, escolhe outra praga. Essa de secar a água vamos ter fome. Vem só
chuva grande de arrastar o tanque e ponto final. A Banga deles acaba, sacanas
de merda, e ficamos todos como no antigamente.
As duas
abraçaram-se por instantes, sem desarmar a vigília ocular que mirava a casa de
Mangodinho e a de Toneco que estava de ouvidos ao terreiro e de lápis sobre o
papel.
Às seis e
meia, já o sol rasgava a montanha de Manyangwa, aquela que viaja norte-sul,
barrando a visão leste-oeste.
- Ndrim,
ndrim, ndrim... - Rapaz Cordeiro, sobrinho de Toneco, tocou o sino.
A
comunidade, homens de um lado e mulheres de outro, formaram duas alas. O centro
foi alargado para couberem quatro cadeiras: a do Secretário Toneco, as dos
arguentes Kilombo e Mangodinho, mais uma de reserva.
- Isso é
abuso. Já estão a ver? Como é que o gajo do Zequeno não vem, se nós já estamos
aqui desde as cinco horas? - Atirou Kilombo que se preparava para o ir buscar à
força.
- Não faz
isso, mana Kilombo. Manzequeno também tem família. Tem mulher e filhos. Você
não sabe o que se passou em casa dele. Como é que falas assim do outro? -
Acudiu Katembo, uma senhora de quarta classe do tempo de Agostinho Neto.
Toneco
pediu licença para mandar ir buscar uma lapiseira. Na verdade, era para mandar
um rapaz correr até à lavra comunitária e avisar a Mangodinho que quando lhe
fosse dada a palavra começasse por reportar o estado da lavra e o dia da
chegada do professor.
- Bom dia
minha comunidade! - Cumprimentou Toneco.
- Bom dia
nosso secretário. - Respondeu a multidão.
- Bem.
Camaradas, irmãos, meus conterrâneos. A terra é nossa, a aldeia é nossa e os
problemas também são nossos. Somos nós que temos que resolver para ver se nossa
aldeia vais mais à fren...?
- À
frente. - Completou o povo.
- Bem.
Estamos aqui chamados pela mana Kilombo que está à frente das mulheres
organizadas da nossa aldeia. Isso é bom quando a voz da mulher se faz sentir na
hora dos assuntos. Mas a mulher, mesmo em casa, tem que saber gritar. Gritar
bem para não espantar os filhos nem a aldeia. Não é assim?
- É assim
mesmo. - Respondeu a assistência.
Lá atrás
ainda se ouviu uma voz a resmungar: E reclamar é mal? Mas foi abafada por
outras mulheres que pretendiam ouvir. O sol estava a subir e era hora de dar
matabicho às crianças.
- Pois é.
- Continuou Toneco. - O mano Zequeno teve um assunto urgente, mas não tarda ele
estará aqui. Podemos já ouvir a mana Kilombo e quando ele chegar falar também o
que estiver na cabeça dele. Em princípio, o problema todo está aqui. Toneco
exibiu um saco preto amarrado o que levou estupefação à assistência.
- Como é
que o problema do acesso das mulheres à piscina fica num saco? -
Questionaram-se.
Kilombo
falou. Volteou tanto que acabou baralhando até as suas apoiantes. Toneco teve
de manda-la parar. Mangodinho chegou, saudou e expôs também.
-
Queridas irmãs e irmãos. Atrasei-me porque as aulas dos nossos filhos e irmãos
recomeçaram segunda-feira. O professor vem no mesmo dia. Temos de lhe mostrar a
escola reparada que está aí e a lavra que fui ver. Se fuba vamos continuar a
contribuir, as verduras não precisamos mais. Lá já tem tudo.
A
multidão, Kilombo incluída, fez um interrupção ao discurso e brindando-o com
uma estrondosa salva de palmas.
-
Obrigado pelas palmas. Mas são do nosso Secretário. É ele o nosso chefe...
Sobre o assunto desta assembleia, devo dizer que me chateou o que encontramos
na "peixina". Estávamos mesmo a pensar em distribuir horário de banho
e de limpeza. Ou então, quem sujou limpa já. Mas, logo no primeiro dia,
encontramos adubo. Isso é bom?
O
secretário chamou da plateia uma senhora.
- Mana
Cati, põe essas luvas e faz, favor. Abre só esse saco.
A mulher
ao ver o que havia, no interior, fez meia-volta e pôs-se ao fresco.
- Mana
Kilombo, favor nos ajuda. - Pediu Toneco.
Kilombo
coçou a nuca, mas fez coragem e calçou as luvas. Porém, ao reparar a fralda de
que ela mesma se havia esquecido no recinto de banhos, também recuou.
Toneco,
abriu o saco e deixou cair o lixo para que todos vissem. Daí em diante foram só
apupos às duas senhoras.
- Pois,
mamãs. É esse o problema. Mas vou falar com o Manzequeno, que está aqui, para
encontrarmos meio termo. Homem e mulher têm direitos iguais. Até também na
valorização do esforço dos outros e na higiene para não atrairmos mais doenças
que matam muita gente. Não é assim?
- É assim, mesmo nosso secretário. - O
povo respondeu e cada um fez-se a caminho dos seus afazeres, sem que Toneco
tivesse a necessidade de bater o martelo. Ponto final.