Estou enfermo, na África do Sul, acompanhado pelo Beto Spina
e Didi Domingos, meus dois amigos desde a adolescência. O Beto é o meu “canino”
confidente e o Didi, enquanto piloto aviador, é conhecedor do país do arco-íris.
O Hospital-Hotel em que estamos alojados é o mesmo que dá
tratamento ao ícone maior da tolerância africana, Nelson Mandela. É uma pena
que neste momento em que escrevo essas linhas não me lembre do nome e tenho de
fazer um esforço para sair e ver o letreiro. Mas, confesso, era inimaginável um
hospital onde o paciente pudesse ter também alojados os seus acompanhantes. Por
isso trato-o por Hospital-Hotel.
Apesar do requinte e serviços de última geração, o
Hospital-Hotel é um equipamento construído e mantido por homens falíveis. Na
última noite, o meu quarto-enfermaria teve uma pequena fuga de água e, na
aflição, refugiei-me na enfermaria seguinte onde estava um idoso com o cabelo
todo esbranquiçado. O quarto-enfermaria era simples como o meu. Havia um grande
movimento no corredor. Rezas, espetáculos tradicionais que me fugiam do
entendimento e muito mais. Havia também um polícia, mas algo distanciado do
corredor, a quem as pessoas se dirigiam em caso de anormalidade no quarto do
ancião.
- Imagine o meu espanto quando olhei para a foto que ocupava
o espaço-topo da banca de cabeceira do idoso acamado?!
Era a foto de Nelson Mandela. Quase cai de susto.
- Nelson Mandela aqui? - Não quis acreditar e refiz a pergunta
colocada a mim mesmo.
- Eu no hospital de Nelson Mandela?
O idoso repousava na sua cama de hospital, já sem a
respiração assistida mas muito fragilizado pela idade e pela enfermidade. Tinha
os olhos fechados e parecia estar no quinto sono. Mesmo assim, ousei em saudá-lo
no meu torpe Inglês.
- Grand Father, good
morning!
Uma voz vinda do fundo da alma, tão fraca mas cheia de vida
quanto podia, respondeu-me.
- Good morning. Are you from Moza?!
Fiquei mais estupidificado ainda ao receber aquela resposta
à minha saudação e, sem demora, tentei refinar o meu pobre Inglês:
- No, grand father, I´m
came from Angola.
Pois isto, o ancião ergueu os olhos e respondeu-me com uma
voz muito mais nítida.
- Oh, well come and not be afraid.
Engasguei-me. A frase seguinte que me saiu da boca foi em Português
- Sim, avó! - Respondi-lhe
alegre.
Minha enfermidade
e minhas preocupações com o quarto que tinha infiltração de água tinham meticulosamente
passado. Lembrei-me de que quando voltasse a Angola teria de me gabar do facto
e peguei no telefone para gravar o resto da conversa, sem que o mais velho
desse conta disso.
E, Nelson Mandela pediu-me, num Português melhor do que a
minha dicção do seu Inglês, que me sentisse à vontade no seu quarto-enfermaria,
indicando-me a cama ao lado que estava vaga.
- Por favor, senta
neste cama e deixa mais velho dormir um cabocado.
- Thank you very much, my grand father. – Respondi-lhe felicíssimo.
Momentos depois, lá apareceu o gerente da parte hoteleira da
instituição a comunicar-me sobre um novo quarto para onde haviam sido
transladados os meus pertences. O homem, alto e calvo, mas de elegância e
polimento incontestáveis, começou por desculpar-se pelos transtornos ao que
respondi apenas com um “do not worry”.
Já com o Beto, e ao encontro do Didi que estava alojado
noutro hotel, o Hill Park, contei o que vivi naquela tarde e fomos espalhando,
entre os angolanos com quem cruzávamos, a minha boa nova. Uns estavam crédulos.
- É normal aqui na África do Sul um responsável estar ao lado de gente normal. - Diziam.
Outros, entretanto,
estavam um tanto ou quanto renitentes em acreditar. Foram estes que me fizeram
puxar do telefone para reproduzir as últimas palavras que Mandela me dissera no
seu quarto-enfermaria, antes do gerente me arranjar outro aposento.
A frase “Por favor, senta neste cama e deixa mais
velho dormir um cabocado” ainda ecoava nos meus ouvidos.
Ao procurar pelo arquivo de sons gravados, o meu telefone
tocou. Trim, trimmmm, trimmmmm. Era o
despertador que me apelava para a hora da higiene matinal.